A Quaresma nos convida à reflexão sobre nossa finitude, a conversão ecológica e o compromisso com a Casa Comum, renascendo das cinzas para uma vida mais simples, consciente e sustentável.
Frei Oton Júnior, ofm
O início das preparações pascais traz um elemento inquietante: as cinzas. Aquele pó, cuja matéria e nome da cor se equivalem, nos faz recordar que, no passado, recente ou remoto, algo foi fustigado pelas chamas e resultou em poeira, incapaz de voltar a ser o que era, para todo o sempre.
Contemplar e tocar as cinzas nos traz sentimentos difusos: há ocasiões, objetos, sentimentos que ao se tornarem cinzas nos darão a sensação de alivio. Que bom que acabou! De outra parte, reconhecer que algo ou alguém hoje nada mais é do que cinzas poderá nos entristecer no mais profundo de nós.
Reconhecer-se pó (que sou e que serei) deverá nos fazer humildes. Perante o pó toda vaidade, toda discórdia, toda vilania, se mostram frágeis e inúteis. As Escrituras nos recordam: “Lembra-te: és pó, e em pó te hás de tornar” (Gn 3,19). Como os discípulos de Jesus, talvez queiramos dizer: “Senhor, essa palavra é dura. Quem a pode suportar? (Jo 6,60).
Essa não é uma pregação que agrade aos tempos atuais. As redes sociais e a sociedade como um todo propagam uma vida de prazeres, de felicidade permanente, de relações fluidas. Se a vida se resume em comprar, em consumir, em ostentar, como falar de sobriedade e privação? Pois, sim, estamos no fio da navalha: por um lado, o cristianismo já propagou uma vida espiritual baseada em austeras penitências que beiravam à insanidade, mas isso não deveria nos fazer cair no extremo oposto, na lógica estoica do “comamos e bebamos porque amanhã morreremos” (1Cor, 15,32).
Francisco, o Papa argentino, nos lembra que “a espiritualidade cristã propõe um crescimento na sobriedade e uma capacidade de se alegrar com pouco. É um regresso à simplicidade que nos permite parar para saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos nem entristecermos por aquilo que não possuímos. Isto exige evitar a dinâmica do domínio e da mera acumulação de prazeres” (Laudato Si, n.222).
Tudo isso, sem a renúncia às melhorias que alcançamos como humanidade: “A sobriedade, vivida livre e conscientemente, é libertadora. Não se trata de menos vida, nem vida de baixa intensidade; é precisamente o contrário. Com efeito, as pessoas que saboreiam mais e vivem melhor cada momento são aquelas que deixam de lambiscar aqui e ali, sempre à procura do que não têm, e experimentam o que significa dar apreço a cada pessoa e a cada coisa, aprendem a familiarizar com as coisas mais simples e sabem alegrar-se com elas” (Laudato Si, n. 223). E ainda: “ninguém pode amadurecer numa sobriedade feliz, se não estiver em paz consigo mesmo. E parte duma adequada compreensão da espiritualidade consiste em alargar a nossa compreensão da paz, que é muito mais do que a ausência de guerra” (n. 224).
A Campanha da Fraternidade de 2025 ao trazer como tema a Ecologia integral visa justamente alertar a nós seres humanos a respeito de toda essa integralidade de vida. “A paz interior das pessoas tem muito a ver com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque, autenticamente vivida, reflete-se num equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida.[…] Uma ecologia integral exige que se dedique algum tempo para recuperar a harmonia serena com a criação, refletir sobre o nosso estilo de vida e os nossos ideais, contemplar o Criador, que vive entre nós e naquilo que nos rodeia e cuja presença «não precisa de ser criada, mas descoberta, desvendada” (n.225).
Estamos a tal ponto? Reconhecemos que não. Há todo um caminho a ser seguido, uma conversão a ser almejada, mas não só uma conversão de ordem religiosa, que nos faça fazer exercícios de piedade, por melhores que sejam. Eis a hora de uma conversão ecológica. “Para que a conversão ecológica se realize, é necessário reconhecer que não temos correspondido à nossa vocação de guardiões da Casa Comum, missão colocada em nossas mãos por Deus Criador, nem tampouco à amizade e fraternidade comuns deixadas por Jesus Cristo. Ou seja, a contrição, reconhecer nossos pecados e pedir perdão a Deus e aos outros, que é tão acentuada na Quaresma” (Texto-Base da CF-2025, n. 57).
A Igreja do Brasil nos dá algumas dicas que podem nos ajudar neste processo: “A conversão ecológica deve incluir a revisão de nossas relações com os animais, a preservação de suas moradas nos biomas, a redução da produção industrial (alimentos ultraprocessados) e do consumo excessivo de carne. Isso comporta adotar padrões de alimentação saudáveis e sustentáveis, redescobrindo as comidas tradicionais das diferentes regiões do país” (Texto-Base da CF-2025, n. 60).
O Jubileu da Esperança, que estamos celebrando, nos indica igualmente a necessidade de uma conversão que se concretize em ações concretas de cuidado: “a dimensão espiritual do Jubileu, que convida à conversão, se combine com estes aspectos fundamentais da vida social, de modo a constituir uma unidade coerente. Sentindo-nos todos peregrinos na terra onde o Senhor nos colocou para a cultivar e guardar (cf. Gn 2, 15), não nos desleixemos, ao longo do caminho, de contemplar a beleza da criação e cuidar da nossa casa comum” (Francisco, 11.02.2022).
As queimadas mundo afora, inclusive no Brasil, deixam um rastro de cinzas. Não cheguemos a tal ponto. Que nossa esperança na vida nova em Cristo nos faça renascer das cinzas, desperte nosso coração ao cuidado da Casa Comum e a uma ecologia que integra a todos e a cada pessoa, imagem e semelhança do Criador.