Fechar o luto com fé na ressurreição para se abrir ao amor de quem partiu, de modo que o amor dele permaneça unido a nós como teias de fios que se entrelaçam, invisivelmente, na eternidade do tempo…
Frei Jacir de Freitas Faria, OFM [1]
Há uma coisa cujo sentido sempre buscamos, mas o sentido não vem, senão pela fé. Quando ela chama alguém, nos desesperamos e, dependendo do grau de relação, sofremos muito. Estou falando da morte e do luto que a sucede. A quaresma e a Sexta-feira da Paixão sempre nos fazem refletir sobre o sentido da morte.
Pois bem, para falar dela, o texto que inspira a nossa reflexão de hoje é Jo 8,51-59. Nele encontramos a afirmativa de Jesus, no versículo 51: “Sealguém guardar a sua palavra, jamais verá a morte”. Na sequência, intrigados, os judeus disseram: “Agora sabemos que tens um demônio. Abraão morreu e os profetas também, e tu dizes: Se alguém guardar a minha palavra jamais verá a morte”.
Essa passagem de Jo 8,51-59 faz parte do episódio da vida de Jesus, quando ele foi participar, no Templo de Jerusalém, da festa das Tendas, na qual se celebrava a passagem do povo de Deus pelo deserto, vivendo em tendas, durante 40 anos. Nela, diariamente, o povo levava água da fonte de Siloé para o templo.No oitavo dia, havia uma procissão de água e luzes. Abraão, Moisés e a lei eram os temas refletidos a partir de leituras bíblicas. Jesus chega, observa e faz o discurso de que ele era a luz revelada e a água que mata a sede. Quem guardasse a sua palavra jamais veria a morte. Jesus falava de sua origem divina. A resposta dos seus ouvintes judeus foi lógica, se Abraão e Moisés morreram, como assim, Jesus não iria morrer? Jesus tinha clareza de que se Deus é vida, Nele não existe a morte.
Partindo dessa afirmativa de Jesus, considerando a nossa condição mortal e a certeza de que pela fé alcançaremos e imortalidade em Deus, proponho refletir sobre a morte e o luto, na esperança de que um dia ressuscitaremos para uma vida eterna, quando encontraremos com os nossos entes queridos que já partiram, fizeram sua Páscoa antes de nós, quando, então, entraremos na luz eterna de Deus que não se apaga nunca.
A morte faz parte da condição humana. Por que morremos? Quem já não sofreu com a morte de um amor, de um pai, de uma mãe, de um parente ou de um amigo? Só quem passou por isso sabe o quanto dói. Eu vivi intensamente essa dor, com a Páscoa de meus pais. Infelizmente, há também as mortes provocadas pelas guerras que matam incansavelmente, como as da Rússia e Ucrânia, bem como a do Hamas (Palestina) e Sionistas (Israel).
No passado, a morte era celebrada com intensidade. Nas casas, o falecido estava rodeado dos parentes. Na última agonia, uma vela era colocada nas mãos do falecido, daí a expressão velório à luz de velas. Os familiares expressam o sofrimento por meio roupas pretas ou tarjas pretas na roupa. O caixão era produzido pelos familiares. O tempo passou, surgiram as funerárias para preparar o corpo no caixão. A morte passou a ocorrer nos hospitais, nos Centro de Tratamento Intensivo (CTI). O falecido é velado em velórios públicos. O enterro é rápido. Parece que o morto perdeu sua dignidade e deve ser esquecido logo. A morte faz parte da condição humana, embora que, em tempos pós-modernos, nós a ignoremos.
No entanto, quando ela chega, os corações dos vivos dilaceram numa dor que parece ser interminável. Bate no peito, a cada segundo, o desejo incomensurável de ver quem amamos, mesmo sabendo que no espaço, no tempo físico, na vida terrena, isso nunca mais será possível.
No jogo da vida, as cartas mudam de posição. Os mortos, contemplando a Deus, nos veem de outra forma, em outro tempo, em outro modo de amar. Para os mortos, o nosso tempo deixa de existir. Já o tempo dos vivos se resume em viver a dor do luto. Passar pelo luto para romper o tempo da morte.
O luto é uma experiência forte para muitos de nós! O entardecer de um enlutado é uma dor doída. E como eu senti isso. Quando o dia se fecha nas suas energias vitais, uma dor súbita chega sempre com um vigor inexplicável. E como dói saber que não há o que fazer, a não ser sentir a dor e canalizá-la para a memória do falecido, rezar e seguir a faina do dia que parece declinar como a morte. Quem sabe o dia seguinte será diferente? Não! Não será, pelo menos nos primeiros dias, semanas e meses. Quando o outro dia amanhece, a dor é a mesma. Tudo gira em torno do trágico da vida, e perguntas sem fim acompanham o dia a dia: Por que isso está acontecendo comigo? Por que eu não agi desse ou daquele modo? Por que eu me descuidei na assistência devida? Por que eu não amei mais? Os porquês se tornam infinitos. Nada de resposta convincente, mas apenas possibilidades que não são mais passíveis de realização. Tudo passa, e o que podia ter sido feito não mais poderá ser realizado. Eu podia ter amado mais, mas não amei. Eu podia, mas não posso mais. Agora, tudo é passado. E como dói perguntar sem poder voltar ao túnel do tempo.
Todos nós devemos encontrar o nosso modo para fechar o luto. Caso contrário, adoecemos e morremos, ainda que permaneçamos vivos. Entramos em depressão, pois ficamos o tempo todo buscando a felicidade onde ela não mais existe, no “amor” de sua vida que já foi embora. O falecido não mais vai resolver os meus problemas, ele não mais vai completar o dia, as horas de solidão, o recarregar as energias. Fechei o luto por minha mãe com fé e escrevendo a minha experiência de enlutado, na sugestão de uma senhora que foi me visitar, naqueles tenebrosos dias de agosto de 2016. Fui para o computador e escrevi umas páginas com lágrimas de luto. No fim, senti-me aliviado. Tudo ficou registrado no meu livro, O medo do inferno e a arte de bem morrer (Editora Vozes).
Fechar o luto com fé na ressurreição para se abrir ao amor de quem partiu, de modo que o amor dele permaneça unido a nós como teias de fios que se entrelaçam, invisivelmente, na eternidade do tempo; como uma borboleta que sai do casulo/corpo, que nos unia fisicamente, para estar em todos os espaços e tempo, espalhando o amor. O olhar de quem morre atravessa o tempo e o espaço, pois eles pertencem ao tempo de Deus.
Com o tempo, a própria condição humana se encarrega de amenizar a dor, mas libertar-se dela é impossível. A dor transforma-se em saudade, em memórias de um bom tempo vivido. O ainda vivente parece conversar com o falecido, estreitar laços que nunca foram alinhados. Lembranças de um tempo que já passou e não volta mais. Lembranças! Somente lembranças! E nada mais! Com a morte, o falecido devolve a Deus o dom da vida recebido dele. Para nós, resta seguir o caminho das flores que oferecemos aos nossos mortos. Flores de amor eterno que transformam nossas lágrimas em altares de morte/vida/ressurreição na eternidade no tempo, no amor e no perdão.
No tempo cronológico de uma vida terrena que tem início e fim, viajamos ao lado de pessoas e amores que vão e que vêm, destinos comuns e variados, mas todos chegam à estação final, à morte que nos espera do outro lado da ponte da vida. Para quem tem fé, como ensinou Jesus, essa morte se transforma em vida eterna, em Deus que é a luz que nunca se apaga.
A conclusão de tudo isso se resume em três pontos. Primeiro, a morte faz parte da finitude de nossa vida. A vida é uma arte, um eterno rodízio do nascer e morrer. Uns vão e outros vêm. E a vida continua o seu curso. Segundo, a morte, no entanto, é o princípio de sabedoria para quem entendeu o seu sentido. Entenda isso, e a dor da morte natural vai ser mais amena, vai passar. Receba a morte, não a das guerras, como irmã, como ensinou São Francisco de Assis. Ainda que sejamos um Abraão e um Moisés que já morreram, acredite em Jesus que também disse: “antes que Abraão existisse, eu sou” (Jo 8,58)”. Terceiro, vivamos a fé em Jesus ressuscitado, praticando a justiça, a paz e a verdade que vem da palavra Dele até o dia nossa Páscoa definitiva. Desse modo, não conheceremos também a morte, pois viveremos para sempre na vida eterna. Por fim, quem está de luto, feche-o, pois a vida continua. Paz e bem!
[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. Presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de treze livros e coautor de quinze. Publicou recentemente Bíblia Apócrifa: Segundo Testamento (Vozes, 2025). São 784 páginas com a tradução de 67 apócrifos do Novo Testamento sobre a infância de Jesus, Maria, José, Pilatos, apocalipses, cartas, atos etc. Canal no Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ