No ano 2000, elegeu-se o dia 18 de maio como Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
Frei Oton Júnior, OFM
“Olhando para o passado, nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar reparar o dano causado. Olhando para o futuro, nunca será pouco tudo o que for feito para gerar uma cultura capaz de evitar que essas situações não só não aconteçam, mas que não encontrem espaços para serem ocultadas e perpetuadas. A dor das vítimas e das suas famílias é também a nossa dor, por isso é preciso reafirmar mais uma vez o nosso compromisso em garantir a proteção de menores e de adultos em situações de vulnerabilidade” (Francisco, Carta ao Povo de Deus, 20.08.18).
Uma chaga de nosso tempo. O exemplo mais desalentador de nossa falta de humanidade. Relações abusivas dentro e fora de casa causam cada vez mais consternação, sobretudo quando envolvem crianças e adolescentes, mas a sensação é de muitas vezes estar ‘enxugando gelo’, tamanho é o desafio de criar uma barreira protetiva capaz de impedir tais atos.
Os escândalos sexuais tomaram a cena nos últimos anos e descortinaram uma realidade frequente, mas que tendia a ficar às sombras. No mundo civil, várias iniciativas foram implementadas a fim de proteger as vítimas de abuso e punir seus agressores. Da parte da Igreja, os últimos pontificados se conscientizaram da gravidade do problema e propuseram uma série de medidas que ajudam a combater tamanha perversidade.
Segundo a associação Childhood Brasil: “o abuso sexual é toda forma de relação sexual entre um adulto e uma criança ou adolescente, com o objetivo de satisfação desse adulto e/ou de outros adultos. Pode acontecer por meio de ameaça física e verbal, ou por sedução/manipulação. Na maioria dos casos, é cometido por pessoa conhecida da criança ou adolescente, em geral, um familiar. Pode acontecer com ou sem contato físico, e não somente em relações sexuais com penetração, como carícias, falas erotizadas, exibicionismo, voyeurismo (prazer em olhar), exibição de material pornográfico, entre outras. As situações de abuso sexual não envolvem pagamento ou gratificação da criança ou adolescente ou de algum intermediário”.
A exploração sexual, por sua vez, é caracterizada pela relação sexual de uma criança ou adolescente com adultos, mediada pelo pagamento em dinheiro, favores ou presentes – ou seja, crianças e adolescentes são tratados como mercadorias. A exploração sexual de crianças e adolescentes acontece em diferentes contextos: a atividade sexual agenciada (por cafetões/cafetinas ou redes de exploração), no tráfico para fins de exploração sexual, na pornografia, no turismo com motivação sexual e no contexto das rodovias e das grandes obras, cenários que aumentam o risco da ocorrência de exploração sexual.
O cenário propício para a exploração sexual é a má condição socioeconômica da população. Em algumas regiões do país, incitar as filhas à prostituição é visto como critério de sobrevivência do restante da família. Some-se a isso o tráfico de pessoas, diretamente relacionada à vulnerabilidade social, as promessas sedutoras de uma vida melhor – desejo legítimo de todo ser humano, mas corrompido por más condutas.
Segundo a especialista no combate ao tráfico de pessoas, Heloisa Greco, que ajudou na elaboração do Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas (2017 a 2020) [cujo link está disponível no fim deste texto], “mais de 90% dos profissionais que nos forneceram informações concluíram que a pobreza e o desemprego são as principais razões pelas quais as pessoas se tornam vítimas desse crime, sobretudo nos casos de trabalho forçado”. E continua: “A pandemia da COVID-19 tem aumentado as vulnerabilidades socioeconômicas. Estes novos fatores de risco expuseram as vítimas a mais exploração, abuso e violência, enquanto as restrições à circulação impediram atividades que podem resultar na detecção de casos de tráfico de pessoas”, acrescenta Greco.
No ano 2000, elegeu-se o dia 18 de maio como Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A data foi escolhida em alusão ao “Caso Araceli”, ocorrido em 1973, quando a criança Araceli Cabrera Sanches, de oito anos de idade, foi sequestrada, drogada, espancada, estuprada e morta. Na época, foram identificados três autores, dois deles, membros de uma tradicional família capixaba. Apesar de denunciados, o processo foi anulado e encerrado sem punição.
O antigo fantasma do “homem do saco”, um desconhecido vestido de preto que aterrorizava as crianças, se revelou, infelizmente, como alguém de proximidade, da confiança da criança e do adolescente (um tio, um padrasto, um amigo próximo). As denúncias muitas vezes são escassas, a apuração nem sempre é facilmente conduzida, as consequências são minimizadas. Aos poucos a sociedade vai se conscientizando a respeito dessa violência, mas ainda há um longo caminho a ser feito.
Iniciativas eclesiais
Como foi dito, a Igreja tem se empenhado no enfrentamento ao abuso e exploração de menores. O problema, bem o sabemos, é antigo, mas começou a ganhar mais visibilidade nas décadas mais recentes. Bento XVI ao se dirigir à Igreja da Irlanda, um dos país onde primeiro eclodiram os abusos sexuais por parte do clero, assim se pronunciou: “Em diversas ocasiões desde a minha eleição para a Sé de Pedro, encontrei vítimas de abusos sexuais, assim como estou disponível a fazê-lo no futuro. Detive-me com elas, ouvi as suas vicissitudes, tomei nota do seu sofrimento, rezei com e por elas” (19.03.10).
No pontificado de Francisco, a problemática veio à tona sobretudo a partir da viagem ao Chile, em 2018. Na ocasião, houve rumores de que havia abusos e acobertamentos da parte dos bispos. De imediato, o Pontífice não considerou devidamente as denúncias. No entanto, após pedir averiguação e ver a confirmação dos casos, tratou de tomar medidas concretas, o que deu mais propulsão em torno da proteção de menores na Igreja.
Passamos a elencar três iniciativas que vemos como mais significativas a respeito da proteção de menores e adolescentes ligados à Igreja:
A primeira delas não está ligada diretamente a uma disposição do Papa, mas que já existia e continua fazendo um trabalho muito importante de conscientização e denúncia das explorações de menores. Trata-se da Rede Um Grito pela Vida, que no Brasil tem intensa atuação em várias regiões do país, sobretudo naquelas em que a realidade da exploração é mais intensa. A Rede é formada por cerca de 150 religiosas/os de diversas Regionais e Congregações. Em 2006 a Rede foi incorporada à CRB Nacional e integra a Rede internacional da Vida Religiosa Consagrada Talitha kum, uma organização presente em 90 países, apoiando ativamente vítimas, sobreviventes e pessoas em risco. A missão da Talitha Kum é acabar com o tráfico de pessoas por meio de iniciativas de conjunto, focadas em prevenção, proteção, reintegração social e reabilitação de sobreviventes, na denúncia e na defesa, promovendo ações que reduzam as causas sistêmicas.
Uma segunda iniciativa é a criação, pelo papa Francisco, da Comissão para a Proteção dos Menores, ligada à Doutrina da Fé. Essa comissão tem acompanhado os trabalhos das diversas dioceses do mundo, bem como auxiliado na elaboração de protocolos e ações efetivas a esse respeito.
Da parte diretamente do Santo Padre, há vários documentos, locuções, encontros com vítimas, o que demonstra o desejo de enfrentar concretamente a questão dos abusos. Como exemplo, podemos lembrar o Moto Próprio Vos Estis Lux Mundi (2019).
Por fim, temos de citar a criação do Núcleo Lux Mundi, uma parceria entre a CNBB e a CRB Nacional, que visa assessorar e implementar a criação de protocolos de proteção, ações de denúncia, averiguação, proteção das vítimas e condenação dos culpados. No momento, há um curso on-line em andamento voltado à Vida Religiosa para tratar do tema dos abusos de forma integral.
Medidas preventivas
É muito importante conversar com crianças e jovens sobre o corpo, sobre o que é e não é permitido. É necessário ouvir, tirar dúvidas e ficar atento caso a criança mude de comportamento e passe a demonstrar atitudes diferentes das habituais.
Para denúncias, pode-se recorrer ao Disque 100, aplicativo Direitos Humanos e o site da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Todos esses serviços são gratuitos e possuem funcionamento de 24 horas por dia, todos os dias. Também é possível acionar o Conselho Tutelar para que algumas situações sejam averiguadas. Para entrar em contato com a Polícia Militar disque 190.
Como conclusão, é importante recordar as motivações de Francisco: “Os crimes de abuso sexual ofendem Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e lesam a comunidade dos fiéis. Para que tais fenômenos, em todas as suas formas, não aconteçam mais, é necessária uma conversão contínua e profunda dos corações, atestada por ações concretas e eficazes que envolvam a todos na Igreja, de modo que a santidade pessoal e o empenho moral possam concorrer para fomentar a plena credibilidade do anúncio evangélico e a eficácia da missão da Igreja” (Francisco, “Vos Estis Lux Mundi”, 09.05.19).
Para saber mais dessa desafiante realidade acesse:
Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas (2017 a 2020): chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/relatorio-nacional-trafico-de-pessoas_2017-2020.pdf
Associação Childhood Brasil: https://www.childhood.org.br/
Rede Um Grito pela Vida http://gritopelavida.blogspot.com/p/quem-somos.html
Motu Proprio Vos Estis Lux Mundi: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/motu_proprio/documents/papa-francesco-motu-proprio-20190507_vos-estis-lux-mundi.html
Outros documentos pontifícios a respeito da proteção de menores: https://www.vatican.va/resources/index_po.htm