A tradição apócrifa da Apresentação de Nossa Senhora no Templo e os laços familiares em relação ao Reino (Mt 12,46-50)

O texto sobre o qual vamos refletir hoje é Mt 12,46-50. Trata-se da passagem na qual Jesus afirma que sua mãe e seus irmão são aqueles que fazem a vontade de seu Pai que está nos céus.

Frei Jacir de Freitas Faria [1]

O texto sobre o qual vamos refletir hoje é Mt 12,46-50. Trata-se da passagem na qual Jesus afirma que sua mãe e seus irmão são aqueles que fazem a vontade de seu Pai que está nos céus. Esse relato é lido no dia em que a Igreja celebra a festa da Apresentação de Nossa Senhora no Templo. Celebrada na Igreja do Oriente (Ortodoxa) desde 543 E.C., e incorporada no calendário litúrgico da Igreja do Ocidente (Romana) no século XVI, no dia 21 novembro de 1585, pelo Papa Sisto V, quando o culto a Maria foi revigorado, essa festa é considerada pela Igreja Ortodoxa como uma de suas Doze Grandes Festividades litúrgicas.

A passagem evangélica de Mt 12,46-50 destaca a relativização que Jesus fez dos laços familiares no seguimento do Reino. Para Jesus, ser discípulo é fazer rupturas. É deixar a família, o mar, a profissão e o velho sistema de vida. Jesus não despreza sua mãe, mas a incorpora no discipulado. Ela vai ser considerada sua apóstola da primeira hora. No entanto, surgem as perguntas: Que relação existe entre essa passagem e a festa da Apresentação de Nossa Senhora no Templo? Não parece estranho Jesus rejeitar sua mãe e seus irmãos? Como Maria se relacionou com a sua família?

Para entender esses laços parentais e a fala de Jesus, gostaria de apresentar a tradição mariana, conservada no apócrifo Protoevangelho de Tiago.[2] Sua autoria é atribuída ao apóstolo Tiago, com certeza o Menor, que fora o primeiro bispo de Jerusalém, também conhecido como o “Irmão do Senhor” ou filho de Zebedeu. Possivelmente é uma obra de entre 150 e 200. Foi escrita em Alexandria por um judeu-cristão, que a compôs em grego. Na sua origem, este apócrifo era chamado de Natividade de Maria. Na Idade Média, o francês Guilherme Postel, em 1581, o intitulou de Protoevangelho. Pensava-se que ele seria uma introdução ao Evangelho segundo Marcos.

Nascimento de Maria

Protoevangelho de Tiago conta como Joaquim teve a sua oferta rejeitada no templo por não ter dado descendência para Israel. E ele vai para as montanhas jejuar e lamentar. Ana faz o mesmo em casa até o dia em que o anjo do Senhor lhe aparece, e diz: “Ana, Ana, o Senhor Deus ouviu a tua oração. Conceberás e darás à luz e, em toda a terra, se falará de tua descendência”. Ana respondeu: “Tão certo como vive o Senhor Deus, se nascer um fruto de meu seio, seja menino, seja menina, eu o levarei como oferenda (para ser consagrada) ao Senhor, meu Deus, e ele o servirá todos os dias de sua vida”.

Ana, então concebeu uma menina. No nono mês deu à luz. Ela perguntou à parteira: “A quem dei à luz?”. A parteira respondeu: “Uma filha!”. Ana exclamou: “Hoje minha alma foi enaltecida”. E deitou a criança. Quando se completaram os dias prescritos pela lei, Ana fez as purificações pelo parto, deu o peito à criança e a chamou de Maria.

Quando Maria completou seis meses, sua mãe a colocou no chão para ver se permanecia em pé. Ela deu sete passos e voltou ao colo de sua mãe. Sua mãe a tomou nos braços, dizendo: “Tão certo como vive o Senhor, meu Deus, não andarás por esta terra, até que eu te conduza ao Templo do Senhor”. E preparou-lhe um santuário em seu quarto e não permitia que nada de profano e de impuro lhe tocasse o corpo. E chamou as donzelas judias sem mácula para entreter-se com ela.

Joaquim deu uma festa para celebrar o primeiro ano de vida de Maria. Naquele dia, Joaquim apresentou a menina aos sacerdotes. Estes a abençoaram, dizendo: “O Deus de nossos pais abençoa esta criança e dá-lhe um nome glorioso e eterno por todas as gerações”. E todo o povo respondeu: “Assim aconteça! Amém!”. E os sacerdotes apresentaram-na aos chefes dos sacerdotes, que a abençoaram, dizendo: “Oh! Deus Altíssimo, lança teu olhar sobre esta menina e concede-lhe a mais ampla bênção, além da qual não haja outra”. Sua mãe levou a criança ao santuário do quarto e lhe deu o seio.

O dia da apresentação de Maria no Templo de Jerusalém

Sucediam-se os meses para a criança. A menina atingiu os dois anos, e Joaquim disse: “Vamos levá-la ao Templo do Senhor, para cumprir a promessa que fizemos, a fim de evitar que o Soberano Senhor nos puna ou que nossa oferta seja rejeitada”. Ana respondeu: “Esperemos o terceiro ano, para que ela não sinta falta de seu pai e de sua mãe”. Disse Joaquim: “Esperaremos”.

Quando a menina chegou aos três anos, disse Joaquim: “Convidemos as filhas dos judeus que são puras, para que tomem suas lamparinas e as conservem acesas para acompanhá-la. Desse modo, a menina não voltará atrás e seu coração não será preso por nenhuma coisa fora do Templo do Senhor”. E assim o fizeram, até chegarem ao Templo do Senhor. Ao chegar ao Templo, Maria subiu velozmente os 15 degraus do Templo, sem sequer olhar para trás e nem procurar pelos pais.

O sacerdote a recebeu e, depois de beijá-la, abençoou-a, dizendo: “O Senhor exaltou teu nome por todas as gerações. Em ti, nos últimos dias (na vinda do Messias), o Senhor mostrará a salvação aos filhos de Israel”. E o sacerdote a fez sentar-se no terceiro degrau do altar, e o Senhor fazia descer sobre ela a sua graça. Ela dançou com os pés e foi amada por toda a casa de Israel.

Joaquim e Ana voltaram para a casa, louvando e glorificando a Deus, Soberano Senhor, porque a menina não tinha voltado para junto deles. E Maria viveu no Templo de Jerusalém, como consagrada, desde os 3 aos 12 anos.

Conclusão

Da festa da Apresentação de Maria no Templo decorrem três pontos, a saber:

– Os três primeiros anos de Maria foram marcados pelo enaltecimento da criança. Até uma festa de aniversário é dada para comemorar o seu primeiro ano de vida. A alegria dos pais e do povo, incluindo aí as autoridades religiosas, pode parecer exagerado diante dos costumes da cultura judaica daquela época. Uma mulher nunca seria enaltecida pelo judeu por causa do seu nascimento. Ao contrário, ainda hoje, é costume entre judeus ultraortodoxos rezar ao levantar-se “Obrigado, Senhor, por não ter nascido mulher!”. A narrativa apócrifa quer ressaltar o valor de Maria, sua pureza, entendida como santidade, desde o nascimento. Maria vive sem colocar os pés no chão e tem um santuário no seu quarto, o que corresponde à teologia do Puro, o ser separado de pessoas e objetos, para encontrar a santidade.

– A festa da Apresentação de Nossa Senhora só tem sentido se celebrada para ressaltar o valor de nossa consagração, adesão, a Deus, tendo como inspiração a preparação de Maria, no Templo de Jerusalém, para ser a mãe de Deus. Há de se repensar essa teologia da separação puro e impuro, a qual, infelizmente, está voltando com força entre católicos e evangélicos.

– Jesus não rejeitou a sua mãe. Ele tentou mostrar o valor da opção radical pelo reino. A tradição apócrifa conservou a memória de que Maria, seguindo a orientação posterior de Jesus, não conviveu com seus pais, rompendo laços familiares. Maria foi uma nazireia, uma consagrada ao Senhor. A tradição da Igreja Copta (Egito) afirma Maria estava com seis anos, quando seu pai Joaquim morreu. Ana morreu dois anos depois. E Maria permaneceu servindo a Deus no Templo do Senhor até a proximidade de sua menarca. Bom, mas essa é outra tradição apócrifa a ser tratada em outra oportunidade.

  


[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. Presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de doze livros e coautor de dezesseis. Canal no Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ  Última publicação: Os murais do Santuário Santo Antônio, de Divinópolis (MG), no simbolismo do Três na Trindade e na Crucifixão de Jesus:  interpretação bíblica, teológica, catequética e franciscana das pinturas de Frei Humberto Randang. Belo Horizonte: Provincia Santa Cruz, 2024.

[2]FARIA, Frei Jacir de Freitas, Bíblia Apócrifa: Segundo Testamento. Petrópolis: Vozes, 2025, p. 121-137. Nessa obra, você terá em mãos, em 784 páginas, a tradução e comentários dos livros apócrifos do Novo Testamento.  

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