As Sete Dores de Nossa Senhora, tradicionalmente meditadas na espiritualidade cristã, transcendem o âmbito religioso e podem ser interpretadas como metáforas das dores sociais que assolam o Brasil hoje.
Frei Laércio Jorge de Oliveira, OFM
As Sete Dores de Nossa Senhora, tradicionalmente meditadas na espiritualidade cristã, transcendem o âmbito religioso e podem ser interpretadas como metáforas das dores sociais que assolam o Brasil hoje. Cada dor revela estruturas de sofrimento coletivo, desigualdade e resistência, convidando-nos a questionar as injustiças e a buscar transformação.
- A Profecia de Simeão: O Anúncio das Dores que Virão
“Uma espada trespassará tua alma” (Lc 2,35). Simeão profetiza que Maria testemunhará o sofrimento de seu filho. No Brasil atual, muitas mães recebem “profetizações” de dor ainda no nascimento de seus filhos: a violência estrutural, a falta de acesso à saúde digna, a mortalidade materna e infantil, a criminalização da pobreza.
- Quantas mães, especialmente negras e periféricas, já sabem, desde o parto, que seus filhos estarão mais vulneráveis à violência policial, ao desemprego, ao encarceramento em massa?
- Como a sociedade naturaliza essas “profecias” de exclusão?
- A Fuga para o Egito: Migração e Deslocamento Forçado
A Sagrada Família foge da perseguição de Herodes, tornando-se refugiada. Hoje, milhares de brasileiros vivem migrações forçadas: indígenas expulsos de suas terras, famílias despejadas por especulação imobiliária, venezuelanos em Roraima, nordestinos em êxodo por secas e falta de oportunidades. Como o Estado e a sociedade tratam esses “refugiados internos”?
- Por que ainda há quem criminalize a migração, feche os olhos aos Yanomami ou critique os cortiços urbanos sem propor soluções?
- Jesus Perdido no Templo: Juventude Desamparada
Maria e José perdem Jesus por três dias, encontrando-o só no Templo. No Brasil, milhares de jovens estão “perdidos” no abandono: sem escolas de qualidade, sucateadas por políticas públicas falhas; sem perspectivas, recrutados pelo crime ou pelo desemprego juvenil (que atinge 20%); mortos em operações policiais (como no caso do massacre do Jacarezinho). Onde estão os jovens das periferias? Quem os busca?
- A quem interessam suas mortes precoces?
- Maria Encontra Jesus a Caminho do Calvário: A Dor das Mães da Luta
Maria vê Jesus carregando a cruz, humilhado e condenado injustamente. No Brasil, essa cena se repete nas mães que acompanham filhos presos em condições desumanas, nas mães de vítimas da violência estatal (como as Mães de Maio e Mães de Acari), nas que peregrinam por justiça.
- Por que o sistema penal é mais cruel com os pobres?
- Como a mídia trata a dor dessas mulheres, muitas vezes racializadas e silenciadas?
- Jesus Morre na Cruz: O Estado que Mata e Abandona
A crucificação de Jesus foi uma execução estatal, legitimada por um poder político-religioso. No Brasil, o Estado também crucifica: nas operações policiais com “autos de resistência”, nos hospitais sem UTIs na pandemia, nos presídios que são masmorras, nos corpos negros e periféricos que seguem sendo os mais assassinados.
- Quem são os “Barrabás” soltos hoje, enquanto inocentes são condenados?
- Qual a responsabilidade da mídia e da justiça nessa “pena de morte não declarada”?
- Jesus é Descido da Cruz e Entregue à sua Mãe: O Luto que Vira Luta
Maria recebe o corpo do filho torturado. Quantas mães no Brasil hoje recebem corpos de filhos vítimas de chacinas, feminicídios, suicídios por depressão (crise agravada na pós-pandemia)? O luto dessas mulheres, porém, não as paralisa: transforma-se em movimento, como o Mães da Sé ou Mães do Cárcere.
- Como a sociedade apoia (ou ignora) essas mulheres?
- Por que a dor delas precisa virar protesto para ser vista?
- O Corpo de Jesus é Sepultado: A Necropolítica e a Desumanização
O sepultamento de Jesus poderia ser o fim, mas é prenúncio de ressurreição. No Brasil, porém, muitos corpos são “sepultados” simbolicamente antes da morte: são os desaparecidos da ditadura, os mortos sem identificação, os indígenas sem terras, os LGBTQI+ assassinados. A necropolítica (conceito de Achille Mbembe) decide quem merece viver e quem pode morrer.
- Onde está a esperança?
- Nas ocupações, nas favelas que resistem, nas comunidades eclesiais de base, nos coletivos antirracistas?
Das Dores à Resistência
As dores de Maria não são apenas passivas: são dores que interrogam, que denunciam, que exigem mudança. No Brasil, a espiritualidade pode ser um caminho para a conscientização social, mas é preciso ir além: questionar quem lucra com essas dores, quem as naturaliza e como podemos, coletivamente, ressignificá-las em lutas por justiça. Afinal, como dizia Dom Hélder Câmara: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles não têm comida, me chamam de comunista.” A verdadeira devoção às dores de Nossa Senhora exige ação.
Perguntas para Reflexão:
- Como você, em sua realidade, testemunha essas “sete dores sociais”?
- Quais estruturas precisam ser rompidas para que menos mães (e menos pessoas) sofram essas violências?
- O que a resistência das mulheres marginalizadas ensina sobre esperança e transformação?
Bibliografia:
- Teologia e Espiritualidade
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- Sociologia, Violência e Desigualdade
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- Migração e Deslocamento
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- Gênero, Raça e Resistência
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RIBEIRO, Djamila. Quem Tem Medo do Feminismo Negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma Vida. São Paulo: Pólen Livros, 2019.
- Sistema Penal e Violência de Estado
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987.
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- Movimentos Sociais e Luto Político
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