“Gostaria que voltássemos a ter esperança de que a paz é possível. Que do Santo Sepulcro, onde neste ano a Páscoa será celebrada no mesmo dia por católicos e ortodoxos, irradie a luz da paz por toda a Terra Santa e pelo mundo inteiro”.
Frei Laércio Jorge de Oliveira, OFM
Desde sua eleição em 2013, o Papa Francisco tem sido um dos pontífices mais influentes e controversos da Igreja Católica moderna. Inspirado no convite a São Francisco de Assis, – “de ir e reconstruir a Igreja”, seu pontificado reflete um projeto eclesial marcado pela opção preferencial pelos pobres, pela defesa da ecologia integral e por uma postura pastoral que busca conciliar tradição e modernidade. Na América Latina – e especialmente no Brasil –, sua liderança ressoa de maneira singular, influenciando tanto a hierarquia eclesiástica quanto os movimentos sociais ligados à fé.
A escolha do nome “Francisco” não foi casual. O santo medieval na existência, mas universal na ação, conhecido por seu voto de pobreza e sua conexão com a natureza, serve como modelo para Bergolio. O sociólogo francês Émile Poulat, estudioso do catolicismo contemporâneo, afirma:
“O Papa Francisco resgata a radicalidade evangélica de São Francisco, traduzindo-a para um mundo globalizado. Ele não fala apenas aos católicos, mas a todos que se preocupam com a justiça social.” (POULAT, 2019, p. 112).
Essa inspiração se manifesta em gestos concretos: desde a recusa de residir no palácio apostólico até a ênfase em uma “Igreja em saída”, que vai às periferias do mundo {existenciais, econômicas, eclesiais,… }. O pontificado de Francisco representa, em muitos aspectos, uma revalorização da Igreja latino-americana. Na encíclica “Evangelii Gaudium” (2013) ecoa temas caros à sua personalidade, como a crítica à “economia que mata” e o chamado a uma Igreja “pobre para os pobres”.
O teólogo brasileiro Leonardo Boff, avalia:
“Francisco devolveu à Igreja latino-americana sua voz profética, vivendo a profecia na prática.” (BOFF, 2020, p. 78).
O Brasil, como o maior país católico do mundo, tem uma relação especial com o pontífice. Sua influência é visível na atuação de setores como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e no apoio às causas indígenas e ambientais, como o Sínodo da Amazônia (2019). Sua visita em 2013 (JMJ Rio) foi marcada por grande manifestação de afeto popular. Para o antropólogo Roberto DaMatta,
“Francisco consegue dialogar com a religiosidade popular brasileira, que é afetiva e menos dogmática. Ele fala a linguagem do povo, não da burocracia eclesiástica.” (DaMATTA, 2021, p. 145).
No entanto, seu papado também enfrentou resistências. Setores conservadores, incluindo parte do clero brasileiro, criticavam suas posições sobre divórcio, homossexualidade e ecumenismo. Além disso, o crescimento evangélico no Brasil coloca desafios à influência católica.
Se São Francisco de Assis foi um revolucionário em seu tempo, o Papa Francisco não buscou sê-lo, mesmo o sendo, no século XXI. Seu legado na América Latina e no Brasil está ligado a uma Igreja que busca ser mais misericordiosa e menos dogmática, sem abandonar suas raízes. Como ele mesmo afirmou em uma homilia:
“Uma Igreja que não serve, não serve para nada.” (PAPA FRANCISCO, 2015).
Seu pontificado deixou marcas profundas – especialmente entre os que acreditam que a fé deve andar de mãos dadas com a justiça, preservando o direito dos povos.
Assim como seu onomástico[1], Francisco hoje nos deixa seu testamento: “Gostaria que voltássemos a ter esperança de que a paz é possível.”
Em sua última aparição pública, no domingo de Páscoa, 20 de abril, o Papa Francisco realizou a tradicional bênção Urbi et Orbi da Sacada Central da Basílica de São Pedro. Diante de uma multidão de 50 mil pessoas que acompanhavam a Missa de Páscoa, o pontífice pediu que sua mensagem fosse lida pelo mestre de cerimônias, Dom Diego Ravelli.
“Gostaria que voltássemos a ter esperança de que a paz é possível. Que do Santo Sepulcro, onde neste ano a Páscoa será celebrada no mesmo dia por católicos e ortodoxos, irradie a luz da paz por toda a Terra Santa e pelo mundo inteiro”, disse o Papa em sua mensagem.
O Papa Francisco faleceu na madrugada desta segunda-feira, deixando uma profunda marca em milhões de fiéis ao redor do mundo com seu pontificado centrado na compaixão, justiça social e diálogo inter-religioso.

MENSAGEM URBI ET ORBI DO PAPA FRANCISCO – PÁSCOA 2025
Cristo ressuscitou, aleluia!
Irmãos e irmãs, Feliz Páscoa!
Hoje ressoa finalmente na Igreja o Aleluia, que corre de boca em boca, de coração a coração, e o seu cântico faz chorar de alegria, no mundo inteiro, o povo de Deus.
Do sepulcro vazio de Jerusalém chega até nós um anúncio sem precedentes: Jesus, o Crucificado, «não está aqui; ressuscitou!» (Lc 24, 6). Não está no túmulo, está vivo!
O amor venceu o ódio. A luz venceu as trevas. A verdade venceu a mentira. O perdão venceu a vingança. O mal não desapareceu da nossa história e permanecerá até ao fim, mas já não lhe pertence o domínio, não tem qualquer poder sobre quem acolhe a graça deste dia.
Irmãs e irmãos, especialmente vós que passais pela dor e pela angústia, o vosso grito silencioso foi ouvido, as vossas lágrimas foram recolhidas e nem sequer uma só se perdeu! Na paixão e morte de Jesus, Deus tomou sobre si todo o mal do mundo e, com a sua infinita misericórdia, derrotou-o: erradicou o orgulho diabólico que envenena o coração humano e semeia violência e corrupção por toda a parte. O Cordeiro de Deus venceu! Por isso, hoje exclamamos: «Ressuscitou Cristo, minha esperança» (Sequência Pascal).
Sim, a ressurreição de Jesus é o fundamento da esperança: a partir deste acontecimento, ter esperança já não é uma ilusão. Não! Graças a Cristo crucificado e ressuscitado, a esperança não engana! Spes non confundit! (cf. Rm 5, 5). E não se trata duma esperança evasiva, mas comprometida; não é alienante, mas responsabilizadora.
Quem espera em Deus coloca as suas mãos frágeis na mão grande e forte d’Ele, deixa-se levantar e põe-se a caminho: juntamente com Jesus ressuscitado, torna-se peregrino de esperança, testemunha da vitória do Amor e do poder desarmado da Vida.
Cristo ressuscitou! Neste anúncio encerra-se todo o sentido da nossa existência, que não foi feita para a morte, mas para a vida. A Páscoa é a festa da vida! Deus criou-nos para a vida e quer que a humanidade ressurja! Aos seus olhos, todas as vidas são preciosas! Tanto a da criança no ventre da mãe, como a do idoso ou a do doente, considerados como pessoas a descartar num número cada vez maior de países.
Quanto desejo de morte vemos todos os dias em tantos conflitos que ocorrem em diferentes partes do mundo! Quanta violência vemos com frequência também nas famílias, dirigida contra as mulheres ou as crianças! Quanto desprezo se sente por vezes em relação aos mais fracos, marginalizados e migrantes!
Neste dia, gostaria que voltássemos a ter esperança e confiança nos outros, mesmo naqueles que não nos são próximos ou que vêm de terras distantes com usos, modos de vida, ideias e costumes diferentes dos que nos são familiares, porque somos todos filhos de Deus!
Gostaria que voltássemos a ter esperança de que a paz é possível! A partir do Santo Sepulcro, Igreja da Ressurreição, onde este ano a Páscoa é celebrada no mesmo dia por católicos e ortodoxos, se irradie sobre toda a Terra Santa e sobre o mundo inteiro a luz da paz. Sinto-me próximo dos cristãos que sofrem na Palestina e em Israel, bem como do povo israelita e palestiniano. É preocupante o crescente clima de antissemitismo que se está a espalhar por todo o mundo. E, ao mesmo tempo, o meu pensamento dirige-se ao povo, em particular, à comunidade cristã de Gaza, onde o terrível conflito continua a gerar morte e destruição e a provocar uma situação humanitária dramática e ignóbil. Apelo às partes beligerantes que cheguem a um cessar-fogo, que se libertem os reféns e se preste assistência à população faminta, desejosa de um futuro de paz!
Rezemos pelas comunidades cristãs do Líbano e da Síria – este último país a atravessar uma fase delicada da sua história –, que anseiam por estabilidade e participação no futuro das respetivas nações. Exorto toda a Igreja a acompanhar com atenção e oração os cristãos do amado Médio Oriente.
Dirijo também um pensamento especial ao povo do Iémen, que está a viver uma das piores crises humanitárias “prolongadas” do mundo devido à guerra, e convido todos a encontrar soluções através de um diálogo construtivo.
Que Cristo ressuscitado derrame o dom pascal da paz sobre a martirizada Ucrânia e encoraje as partes envolvidas a prosseguirem os seus esforços para alcançar uma paz justa e duradoura.
Neste dia de festa, recordemos o Sul do Cáucaso e rezemos pela rápida assinatura e aplicação de um definitivo Acordo de paz entre a Arménia e o Azerbaijão, que leve à tão desejada reconciliação na região.
Que a luz da Páscoa inspire propósitos de concórdia nos Balcãs Ocidentais e apoie os responsáveis políticos a trabalhar para evitar uma escalada de tensões e crises, bem como inspire os parceiros da região a rejeitar comportamentos perigosos e desestabilizadores.
Que Cristo ressuscitado, nossa esperança, conceda paz e conforto aos povos africanos vítimas de violência e conflitos, especialmente na República Democrática do Congo, no Sudão e no Sudão do Sul, e apoie todos quantos sofrem devido às tensões no Sahel, no Corno de África e na Região dos Grandes Lagos, tal como os cristãos que em muitos lugares não podem professar livremente a fé.
Não é possível haver paz onde não há liberdade religiosa ou onde não há liberdade de pensamento nem de expressão, nem respeito pela opinião dos outros.
Não é possível haver paz sem um verdadeiro desarmamento! A necessidade que cada povo sente de garantir a sua própria defesa não pode transformar-se numa corrida generalizada ao armamento. A luz da Páscoa incita-nos a derrubar as barreiras que criam divisões e que acarretam consequências políticas e económicas. Incita-nos a cuidar uns dos outros, a aumentar a solidariedade mútua, a trabalhar em prol do desenvolvimento integral de cada pessoa humana.
Neste momento, não falte a nossa ajuda ao povo do Myanmar que, atormentado por anos de conflito armado, enfrenta com coragem e paciência as consequências do devastador sismo em Sagaing, causador da morte de milhares de pessoas e de sofrimento para muitos sobreviventes, incluindo órfãos e idosos. Rezemos pelas vítimas e pelos seus entes queridos e agradeçamos de todo o coração a generosidade dos voluntários que levam a cabo as operações de socorro. O anúncio do cessar-fogo por parte de vários intervenientes no país é um sinal de esperança para todo o Myanmar.
Apelo a todos os que, no mundo, têm responsabilidades políticas para que não cedam à lógica do medo que fecha, mas usem os recursos disponíveis para ajudar os necessitados, combater a fome e promover iniciativas que favoreçam o desenvolvimento. Estas são as “armas” da paz: aquelas que constroem o futuro, em vez de espalhar morte!
Que o princípio da humanidade nunca deixe de ser o eixo do nosso agir quotidiano. Perante a crueldade dos conflitos que atingem civis indefesos, atacam escolas e hospitais e agentes humanitários, não podemos esquecer que não são atingidos alvos, mas pessoas com alma e dignidade.
E, neste ano jubilar, que a Páscoa seja também uma ocasião propícia para libertar os prisioneiros de guerra e os presos políticos!
Queridos irmãos e irmãs
Na Páscoa do Senhor, a morte e a vida enfrentaram-se num admirável combate, mas agora o Senhor vive para sempre (cf. Sequência Pascal) e infunde em cada um de nós a certeza de que somos igualmente chamados a participar na vida que não tem fim, na qual já não se ouvirá o fragor das armas nem os ecos da morte. Entreguemo-nos a Ele, o único que pode renovar todas as coisas (cf. Ap 21, 5)!
Feliz Páscoa para todos!
Bibliografia:
BOFF, Leonardo. Francisco de Assis e Francisco de Roma: Uma Nova Primavera na Igreja? Petrópolis: Vozes, 2020.
DaMATTA, Roberto. O Brasil na Era Francisco: Religião e Sociedade em Transformação. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
POULAT, Émile. Catolicismo em Crise: Do Concílio Vaticano II ao Papa Francisco. Paris: Éditions du Cerf, 2019.
PAPA FRANCISCO. Evangelii Gaudium. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2013.
TESTAMENTO DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS, nº 23: “Uma saudação me revelou o Senhor, que disséssemos: O Senhor te dê a paz” (cfr. 2Ts 3,16). https://www.capuchinhos.org.br/texto/testamento-de-sao-francisco
[1] Uma saudação me revelou o Senhor, que disséssemos: O Senhor te dê a paz (cfr. 2Ts 3,16).