Refletir sobre o trabalho hoje exige atualizações profundas que considerem dignidade, justiça social e o impacto das novas tecnologias, propondo um modelo que coloque o ser humano no centro das relações laborais.
Frei Oton Júnior, ofm
Refletir sobre o mundo do trabalho é algo sempre necessário, mas essas reflexões precisam estar suficientemente atualizadas para acompanhar as rápidas transformações sociais. Recorrer a imagens do passado, como a ideia bíblica de que o trabalho continua a criação de Deus ou deter-se nas multidões de operários reunidos nas portas das fábricas, ao som de megafones exigindo melhores salários, é evocar cenários que já não representam a realidade atual.
Durante a Revolução Industrial, no século XIX, a Igreja se manifestou oficialmente, pela primeira vez, sobre as questões trabalhistas por meio da encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII. Nela, há reflexões ainda relevantes para o mundo do trabalho, como a exigência de respeito à dignidade do trabalhador: “Quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do Cristão. […] O que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços” (Rerum Novarum, n. 10).
Desde então, a Igreja tem se posicionado continuamente sobre o papel do trabalho na sociedade. No magistério do Papa Francisco, o tema foi recorrente. Na Evangelii Gaudium, documento que muitos consideram o programa de seu pontificado, o Papa criticou a lógica econômica vigente com uma frase que se tornou emblemática: “Esta economia mata”. Ele denuncia um sistema que marginaliza e exclui grandes parcelas da população, deixando-as sem trabalho, sem perspectivas, presas num beco sem saída. O ser humano, afirma, é tratado como um bem de consumo: utilizado e depois descartado (cf. Evangelii Gaudium, n. 53).
Francisco defendeu que “não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado”. Para ele, o verdadeiro crescimento exige mais do que números econômicos: requer decisões e políticas voltadas à distribuição justa da renda, à criação de empregos e à promoção integral dos pobres, para além do assistencialismo (cf. Evangelii Gaudium, n. 204).
Ele afirma ainda: “Nosso sonho vai além de garantir comida ou sustento digno. Queremos prosperidade e civilização em todos os seus aspectos: educação, acesso à saúde e, especialmente, trabalho. É no trabalho livre, criativo, participativo e solidário que o ser humano expressa e engrandece a dignidade de sua vida. Um salário justo garante acesso aos bens destinados ao bem comum” (Evangelii Gaudium, n. 192).
No décimo aniversário da encíclica Laudato Si’, o Papa também voltou seu olhar para o trabalho ao refletir sobre o cuidado com a casa comum. Ele afirmou que qualquer proposta de ecologia integral que inclua o ser humano deve valorizar o trabalho: “A intervenção humana que favorece o desenvolvimento prudente da criação é a melhor forma de cuidar dela, pois torna o ser humano um instrumento de Deus na realização das potencialidades da criação” (Laudato Si’, n. 124). E amplia a noção de trabalho para além do manual, incluindo qualquer atividade que transforme o mundo e reflita a relação do ser humano com os outros e com o ambiente (cf. Laudato Si’, n. 125).
O Papa disse ainda: “O trabalho deveria ser o espaço de desenvolvimento pessoal em várias dimensões: criatividade, projeção de futuro, desenvolvimento de capacidades, vivência de valores, comunicação e espiritualidade. Por isso, diante da realidade social atual, é necessário manter como prioridade o acesso ao trabalho para todos, acima dos interesses empresariais e de uma racionalidade econômica duvidosa” (Laudato Si’, n. 127).
Note que Francisco utilizou o verbo no condicional – “deveria” – porque reconhece que a realidade está distante desse ideal. Jornadas longas, tarefas repetitivas, a lógica da uberização guiada por algoritmos, a chegada da inteligência artificial e outras transformações têm impactado profundamente o mundo do trabalho.
Recentemente, ganhou destaque no Brasil a reivindicação pelo fim da escala 6×1 (seis dias trabalhados para um de descanso). A proposta parte do princípio de valorizar a convivência familiar, o lazer. Em outras palavras: ter vida para além do trabalho. “Isso tira do trabalhador o direito de passar tempo com sua família, de cuidar de si, de se divertir, de procurar outro emprego ou até mesmo se qualificar para um emprego melhor. A escala 6×1 é uma prisão, e é incompatível com a dignidade do trabalhador” – argumenta a deputada Erika Hilton (PSOL-SP). [1]
Na mesma linha, está o Movimento Vida Além do Trabalho (VAT), que defende, entre outras medidas, a redução da jornada semanal de trabalho, de 44 para 36 horas, sem prejuízo salarial.
“O sentimento é que se trabalha muito, se recebe insatisfatoriamente e resta pouco tempo para o descanso, o ócio, o lazer, a sociabilidade com a família e os amigos, o estudo, o cuidado com a saúde física e mental, a vida sexual e outras tantas dimensões que compõem o ser humano para além do trabalho”.[2]
A Confederação Nacional do Comércio (CNC), por sua vez, afirma que não é possível reduzir a jornada de trabalho sem a correspondente redução de salários. A entidade representa mais de 4 milhões de empresas, responsáveis por 23,8 milhões de empregos diretos e formais. “Embora entendamos e valorizemos as iniciativas que visam promover o bem-estar dos trabalhadores e ajustar o mercado às novas demandas sociais, destacamos que a imposição de uma redução da jornada de trabalho sem a correspondente redução de salários implicará diretamente no aumento dos custos operacionais das empresas”. [3]
A estabilidade, antes valorizada, tornou-se um privilégio raro. Muitos trabalhadores enfrentam sofrimento psíquico diante da falta de reconhecimento e de perspectivas. Outros são iludidos pelo discurso do empreendedorismo e, em busca de autonomia, abrem mão de direitos trabalhistas. Na prática, essa ideia de ser “empresário de si mesmo” acaba acentuando a precarização e a vulnerabilidade socioeconômica. A antiga classe operária industrial fragmentou-se em diversas categorias desorganizadas, como motoboys, trabalhadores de aplicativo e vendedores ambulantes, que frequentemente trabalham para grandes empresas sem garantias legais.
Diante dessa nova configuração, surge a proposta de uma nova teologia do trabalho. Como escreve Malesic (2022): “À medida que a estabilidade do trabalho da era industrial se torna cada vez mais rara, os termos usados por teólogos, filósofos e pelo magistério para descrever o significado moral do emprego, como carreira, ofício, vocação e cocriatividade, começam a perder sua relevância”. [4]
Num cenário de tantas transformações e desafios, refletir sobre o trabalho hoje é repensar sua centralidade na vida humana a partir de novas referências. Não basta mais apenas valorizar o emprego formal ou clamar por direitos trabalhistas tradicionais, embora estes ainda sejam fundamentais. É preciso ampliar o horizonte e reconhecer que o trabalho, para além de uma obrigação econômica, deve ser compreendido como um espaço de dignidade, realização pessoal e contribuição social.
A proposta de uma nova teologia do trabalho, nesse sentido, aponta para a necessidade de ressignificar o sentido do labor num mundo em que os vínculos são frágeis, as jornadas exaustivas e a lógica de produtividade desumanizante. A dignidade do trabalhador não pode ser medida apenas pelo rendimento, mas pelo seu bem-estar integral, físico, mental, social e espiritual. Essa visão exige políticas públicas mais ousadas, uma economia a serviço das pessoas e uma ética que coloque o ser humano no centro, e não à margem, dos processos produtivos.
Em tempos de algoritmos, plataformas e inteligência artificial, a pergunta central continua sendo a mesma: qual é o lugar do ser humano nesse novo mundo do trabalho? Se quisermos uma sociedade mais justa e sustentável, é urgente garantir que esse lugar seja de protagonismo, respeito e esperança.
Referências
[1 e 3] Fim da escala 6×1: como funciona escala 4×3 em proposta que reduz carga horária de trabalho para 36 horas – BBC News Brasil.
[2] E para saber mais: Jornada de trabalho na escala 6×1: a insustentabilidade dos argumentos econômicos e uma agenda a favor dos trabalhadores e das trabalhadoras – Instituto Humanitas Unisinos – IHU
[4] Por que precisamos de uma nova teologia do trabalho – Instituto Humanitas Unisinos – IHU