Mês de maio e o testamento mariano do Papa Francisco  

Mês de maio e o testamento mariano do Papa Francisco  

Sendo Maria a Mãe do Senhor, as devoções a ela elevadas deveriam guardar uma atenção para tudo o que se refere ao cuidado de mulheres e de crianças em situação de vulnerabilidade.

Fr. Jonas Nogueira da Costa, ofm.

Durante 12 anos do pontificado do Papa Francisco vimos um gesto muito delicado de devoção mariana. Sempre que o Papa chegava de alguma viagem ou de outras situações particulares ele se dirigia à Basílica de Santa Maria Maior e depositava flores no altar da Virgem venerada como Salus Popoli Romani.

Também não se deve esquecer da cena icônica quando, no auge da pandemia do COVID-19, ele atravessa sozinho a Praça de São Pedro e reza por todo o mundo, aos pés do Crucifixo de São Marcelo (crucifixo de veneranda memória, graças à libertação de uma epidemia ocorrida em 1522, em Roma e outros lugares da Itália) e ao ícone acima referido, de Maria Salus Popoli Romani.

Traduzindo do latim o título do ícone, venera-se Maria como saúde ou protetora do povo romano, o que, em tempos de pandemia, não somente do povo romano, mas do mundo todo.

Uma antiga legenda diz que esse ícone teria sido pintado pelo próprio evangelista São Lucas, mas o argumento não sobrevive aos estudos de arte que situam o quadro por volta do século VII e repintado no século XII[1].

Também a Basílica que custodia o ícone é de venerável memória. O próprio Papa Francisco nos diz da história dessa basílica recordando que

A verdade sobre a maternidade divina de Maria encontra eco em Roma, onde, pouco depois[1], foi construída a Basílica de Santa Maria Maior, o primeiro santuário mariano em Roma e em todo o Ocidente, no qual a imagem da Mãe de Deus – a Theotokos – é venerada com o título de Salus populi romani[2].

E é nesse lugar, onde gerações de cristãos celebraram a glória de Deus com Maria, é que Francisco escolheu como o último lugar de sua peregrinação. Se depois de cada longa viagem ele depositava flores no altar da Mãe do Senhor, agora, depois de sua viagem de 88 anos de vida, quer depositar seu corpo nesse lugar, como o penúltimo ato de devoção a Maria, uma vez que o último é o definitivo, dado na eternidade, na ausência de tempo e espaço da morte, em que, na comunhão dos santos a devoção é traduzida como abraço dos que se amam.

Este é o testamento mariano do Papa Francisco: uma vida de louvor e serviço a Deus, na humildade, sob o olhar de Maria.

Não podemos começar o mês de maio ignorando esse fato devocional que é expressão de uma autêntica espiritualidade mariana do Papa Francisco e que alcança todos nós, como uma brisa de ternura muito aconchegante.

Mas vale lembrar que o mês de maio deve ser vivido dessa forma, ou seja, como uma brisa de ternura aconchegante.

A relação do mês de maio com a Mãe do Senhor remete aos cultos pagãos, quando na primavera do hemisfério Norte se celebrava a primavera e os cultos à deusa Flora. Esse culto, como muitos outros, foi ressignificado pelo cristianismo e atribuído à Maria como um tempo de saudar a Senhora do Céu.

Vale lembrar que os considerados meses marianos surgiram no Ocidente, num período em que havia pouca referência à liturgia como forma normativa, assim, desenvolvendo-se de forma paralela ao culto litúrgico. É evidente que isso coloca alguns problemas de natureza litúrgica e pastoral merecedoras de uma abordagem adequada[3].

A abordagem devocional do mês de maio não pode, de modo algum, suplantar a dignidade e a grandeza da Páscoa do Senhor (dizemos isso porque o mês de maio coincide com o Tempo Pascal). Não raras vezes nos deparamos com uma missa em que se esquece a Páscoa e escolhe todos os cantos voltados para a Mãe do Senhor.

Deve-se optar pela delicadeza de uma brisa aconchegante. Para isso é preciso primeiramente conhecer o ethos devocional de um povo, para não gerar nenhuma forma de estrangulamento religioso. Feito isso, traduzir esse ethos em diferentes manifestações de amor à Mãe do Senhor, que inclusive não precisam ser exclusivamente dentro das missas (aliás, hoje em dia parece que tudo tem que ser missa e não existisse outras formas de liturgia e piedade na Igreja). Aqui cabe a criatividade que não abdica do sentimento de piedade mariana traduzido em coroações, ladainhas, procissões e outras expressões com o lugar privilegiado da liturgia na nossa vida, dentro do Ano Litúrgico.

E nisso, a figura do Papa Francisco, como sempre, é um verdadeiro exemplo de como se dá a piedade mariana, pois ela não é espetáculo, mas vivência de amor filial, de oração e de simplicidade. Dizendo isso, não apresentamos nada que se oponha aos atos de devoção já consagrados em nossas comunidades, mas que esses atos devem ser delicados e autênticos gestos de amor, o que confere veracidade e beleza.

Muitas expressões de devoção mariana são repetições do que fizeram nossos pais quando pequenos sob os olhos apaixonados nos nossos avós. Isso não é ruim ou descartável. A devoção mariana passa por tradições familiares. Mas nem por isso tem que ser uma mera repetição, como se não existisse uma atualização da compreensão litúrgica em nossas vidas e como se não existisse a necessidade de rever a devoção mariana no sentido de que ela não pode ser alienada da contexto sócio-político-econômico em que vivemos.

Sendo Maria a Mãe do Senhor, as devoções a ela elevadas deveriam guardar uma atenção para tudo o que se refere ao cuidado de mulheres e de crianças em situação de vulnerabilidade. A Mãe de Deus é louvada nos gestos de solidariedade e justiça para com mulheres e crianças e esse elemento não pode ser periférico nos nossos atos de devoção. Isso porque se a devoção mariana não nos dá um olhar diferenciado, que gera compaixão, sobretudo diante de mulheres e crianças em situações de sofrimento e miséria, é porque essa considerada devoção não se adequa a uma autêntica espiritualidade mariana.

Concluímos agradecendo a Deus que nos concedeu o dom do Papa Francisco. Ele nos fez sonhar uma Igreja em saída e nessa imagem vimos também a Virgem Maria como Igreja em saída no corpo de mulher.


[1] “Pouco depois” da proclamação do dogma cristológico-mariano da maternidade divina de Maria, dado em Éfeso, no ano de 431.


[1] MELLO, Alexandre Awi. “Ela é minha mãe”. Encontros do Papa Francisco com Maria. 5ed. Aparecida: Editora Santuário; São Paulo: Loyola, 2017, p. 45.

[2] FRANCESCO. Maria. Donna che apre sentieri. Ciniselo Balsano: Paoline, 2024, p. 110.

[3] MAGGIONI, Corrado. Maria nel mistero di Cristo celebrato dalla Chiesa. Roma: If Press, 2024, p. 125.

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