Crônica do Monte Alverne

Crônica do Monte Alverne

No ano de 2024, celebramos os 800 anos dessa experiência de Francisco no Alverne e pedimos que ele nos ajude a vivenciar melhor esse legado atualmente, onde o nosso mundo tem sede constante dessa identificação plena com o Cristo.

Frei Hilton Farias de Souza, OFM

Viagem/chegada/impressões

No dia 30 de abril de 2024, parti do aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, às 14:10, no voo AZ675, da Companhia Aérea ITA Airways, rumo a Roma. A viagem foi tranquila, a aeronave estava repleta de passageiros, em sua grande maioria brasileiros. No dia 01 de maio, o voo da ITA aterrissou no aeroporto de Fiumicino, em Roma, um pouco antes das 7:00. Passei pelo controle de passaportes e, em seguida, peguei minha bagagem e saí do aeroporto. Encontrei-me com Frei Saulo José, que me aguardava no saguão do aeroporto, nos cumprimentamos e pegamos um ônibus para a estação ferroviária Termini. Ao chegar ao terminal ferroviário, encontrei-me também com Frei José Aécio, frade estudante na PUA, pertencente à Custódia do Sagrado Coração de Jesus do Brasil. Comprei minha passagem de trem para a cidade de Arezzo enquanto aguardava o horário do trem e aproveitei para tomar um legítimo cappuccino, acompanhado de um bom corneto. Enquanto tomava café, aproveitei para conversar com os confrades, Saulo José e José Aécio. Nesse ínterim, o guardião do convento do Monte Alverne entrou em contato comigo, combinando que iria me buscar na estação ferroviária de Arezzo. Às 10:22 peguei o trem Intercity 588 para Arezzo, a viagem foi muito agradável e tranquila. Das janelas amplas do vagão do trem podia-se admirar a paisagem e o impacto do mesmo passando pelos túneis. Às 12:50 o trem chegou na estação ferroviária de Arezzo. Aguardei um pouco e, em seguida, recebi um telefonema do guardião Frei Guido dizendo que me aguardava do lado de fora da estação. Cumprimentamo-nos, coloquei minha mala e mochila no carro e seguimos em direção a Chiusi della Verna, onde está localizado o santuário. Da estação de Arezzo até o santuário são 64 quilômetros, mas grande parte da estrada é estreita, com muitas curvas e subidas íngremes. O guardião me acolheu com muita simpatia e simplicidade. No percurso até o convento, ele foi me situando sobre a região, sobre a paisagem que havia se modificado com a passagem da primavera para o verão. Quando nos aproximamos da subida do santuário, foi possível ver o verde intenso das árvores dos bosques, uma paisagem que ficou gravada em minha memória. Chegamos ao convento por volta das 14:00, logo deixei minha bagagem próxima à cozinha e fomos almoçar. O primeiro impacto foi o tamanho do refeitório, a construção é datada de 1518, com muitas mesas, no estilo “monástico”, onde os frades se sentam apenas em um dos lados. Como estava com fome, almocei como um bom frade. Logo em seguida ele me indicou o quarto e o banheiro comunitário. Desfiz a mala, tomei um banho e dei uma boa relaxada. Assim, iniciei a minha estadia no Convento do Monte Alverne. Todo o mês de maio ainda foi marcado por dias frios, com ventos e fortes pancadas de chuva.

Breve descrição do convento

O convento é um complexo imenso, sua construção e características rústicas remetem em grande parte ao período chamado de Observância da Ordem. Existem vários corredores, fiquei hospedado no chamado Corredor São Boaventura, com várias antigas celas, onde, acima de cada porta, há um afresco de um santo da Ordem, vários deles mártires. Alguns desses afrescos, diga-se de passagem, não são nada atraentes para uma eventual meditação. O pavimento do corredor são placas de pedras grandes e desiguais, os banheiros são comunitários. O corredor onde me encontrava hospedado, em geral, é designado para os hóspedes. A comunidade permanente reside em outro corredor, em outra ala do convento, onde se encontra o noviciado. Além disso, existem os espaços comunitários, como cafeteria, sala de recreação, sala de televisão e o imenso refeitório. A parte mais antiga do complexo conventual é a Capela de Santa Maria dos Anjos, construída entre os anos de 1216 a 1218, e é uma das poucas construções que remontam à época de São Francisco. Ao lado da capela de Santa Maria dos Anjos encontra-se um claustro com partes datáveis do final do século XV.

Fraternidade Permanente

A vida de oração da fraternidade permanente é marcada por um ritmo diário muito intenso: na parte da manhã, reza-se o Ofício das Leituras e as Laudes, às 15:00, o Ofício de Noa. Às 19:00, rezam-se as Vésperas. Para além das horas canônicas, costuma-se, às quintas-feiras, antes das Vésperas, fazer a exposição do Santíssimo com momentos de oração e meditação. Aos sábados, antes das Vésperas, reza-se o terço. Todos os dias há Eucaristia, em que se pode escolher uma das três opções de horários para a concelebração. No domingo há seis horários de eucaristia. Sendo um santuário marcado pela presença de tantos peregrinos que buscam a figura de São Francisco de Assis, o santuário oferece diversos horários de confissões individuais.

A fraternidade permanente é composta por, para além dos 11 frades italianos, atualmente há dois frades indianos e dois congoleses que se preparam para estudar na Pontifícia Universidade Antoniana.   

Trabalho com peregrinos

Ao longo do ano, com exceção do período do inverno rigoroso, os frades prestam um trabalho muito importante de difusão da espiritualidade franciscana no santuário. Além disso, para os grupos de peregrinos que chegam ao santuário, os frades oferecem um serviço de guia pelos lugares caros à presença de Francisco de Assis no Monte Alverne. Como o convento hospeda frades de várias nacionalidades ao longo do ano, isso facilita para que as visitas guiadas possam ser feitas em várias línguas. Nesse período da minha estadia no Monte Alverne, presenciei grupos de crianças de escolas, paróquias, peregrinos que fazem o caminho a pé, pessoas que não são católicas que chegam ao santuário atraídas pela figura de São Francisco de Assis, pelo silêncio e pelo local, que fala por si só. Ao prestar o serviço como confessor, escutei testemunhos bonitos de pessoas que uma vez ao ano retornam ao santuário por causa da figura de Francisco de Assis, do lugar e da acolhida dos frades, muitos aguardam para fazer uma boa confissão, receber um conselho, conversar com algum frade ou apenas contemplar o silêncio e a natureza.

Noviciado Comum

O complexo conventual abriga também a casa de Noviciado Comum. Fazem parte desse noviciado comum as Províncias de São Francisco Estigmatizado (Toscana), São Boaventura (Roma e Abruzzo) e a Província do Santíssimo Nome de Jesus, Sicília. Atualmente acolhe também os noviços da Custódia da Terra Santa, Província da Sagrada Família (Egito) e da Albânia. É um noviciado bastante internacional. Para este ano, as nacionalidades dos noviços são: Albânia (1), Angola (1), Congo (1), Itália (1), Egito (1), Nigéria (2) e Síria (2). O coetus formatorum é composto pelo mestre (Sicília), guardião (Toscana), vice-mestre (Toscana) e um vice-mestre (Roma).

Eremitério

O Monte Alverne sempre foi destino de frades que buscavam viver mais intensamente a dimensão eremítica da espiritualidade franciscana. Já faz alguns anos que existe um espaço dedicado a essa experiência, que pode abrigar até quatro frades, como propõe a regra para os eremitérios. Esse espaço localiza-se no corredor que dá acesso à capela dos Estigmas. Atualmente vive apenas um frade da Província Toscana nesse eremitério, mas a procura, sobretudo por frades, para fazer um tempo de experiência antes da profissão solene ou ordenações, é forte. Um elemento interessante, mesmo sendo uma experiência de eremitério, o guardião é o mesmo do convento. 

Modalidades de hospedagem

Hospedaria – O complexo conventual mantém uma hospedaria sóbria, com um preço acessível, onde as pessoas podem se hospedar e, assim, participar das diversas atividades espirituais ofertadas pelo santuário. Uma vez aqui, poderão aproveitar a belíssima natureza para fazer ótimas caminhadas ou escalar o Monte da Pena. Para além de um lugar para se hospedar, a hospedaria possui um auditório chamado Sala Santa Clara, que pode acolher grupos, simpósios, etc.

Tau – Espaço de acolhida para jovens, é um complexo que favorece a hospedagem para grupos de jovens que se interessam pela espiritualidade franciscana, que queiram se aproximar da figura de Francisco de Assis e da realidade espiritual do santuário. A estrutura simples é pensada para ser gerida pelos próprios jovens.

Casa de Oração – Destina-se a pequenos grupos que queiram fazer uma experiência de um caminho de oração de alguns dias, segundo a espiritualidade franciscana. Os participantes são acompanhados por um frade da fraternidade.

Uma rápida descrição sobre inúmeros lugares importantes da memória, história e espiritualidade do Santuário: 

Capela dos Pássaros – Para os peregrinos que chegam ao santuário a pé, vindos sobretudo pela floresta ou pela direção de Chiusi della Verna, bem no pé do morro localiza-se a chamada Capela dos Pássaros, episódio retratado na obra chamada “Dos Sagrados Estigmas de São Francisco e de suas considerações”, especificamente na 1ª Consideração, em que o autor descreve a chegada de Francisco ao Monte Alverne: “São Francisco começou a considerar a disposição do lugar e da terra e, estando nesta consideração, eis que veio uma grande multidão de passarinhos de diversas espécies, os quais com cantares e bater de asas faziam todos grande festa e alegria e cercaram São Francisco de tal modo que alguns lhe pousaram na cabeça, alguns nos ombros, alguns nos braços, alguns no regaço e outros em roda dos pés. Vendo isso, seus companheiros e o aldeão maravilhando-se, São Francisco, todo alegre em espírito, disse : “Creio, caríssimos irmãos, que a Nosso Senhor apraz de habitarmos neste monte solitário, pois que nossas irmãs e irmãos passarinhos mostram tanta alegria com a nossa vinda”. E, ditas essas palavras, ergueram-se e seguiram avante e, finalmente, chegaram ao lugar de que haviam primeiramente tomado posse os seus companheiros” (FF, Primeira Consideração, p.1591). Atualmente essa capela encontra-se fechada à visitação.

Quando se chega ao antigo portão principal de entrada do santuário, rota dos peregrinos que lá chegam a pé, vislumbramos uma pequena capela, trata-se da Capela de Santa Maria dos Anjos.

Capela Santa Maria dos Anjos – Localizada na área mais antiga do complexo conventual, foi pensada nos moldes da capelinha primitiva de Santa Maria dos Anjos. Parece que foi um desejo do próprio São Francisco. É composta por uma única nave, com um grande painel do artista Andrea della Robbia, de cerâmica vitrificada, com Maria ao centro, rodeada por anjos e, aos pés, alguns santos franciscanos. Maria tem em suas mãos uma grande correia que toca ao chão. De um lado e de outro encontra-se um grande coro de madeira, utilizado pelos frades para a reza do ofício coral, sobretudo durante o inverno.  

Capela São Lourenço – Encontra-se ao lado da capela de Santa Maria dos Anjos, é um espaço alternativo, onde grupos de peregrinos linguísticos podem celebrar a Eucaristia.

Basílica da Assunção da Bem-aventurada Virgem Maria – No centro do complexo conventual encontra-se a basílica onde acontecem as celebrações eucarísticas, os Ofícios e sacramentais cotidianos. É uma construção que levou muito tempo para ficar pronta, sobretudo devido à falta de verbas. Ela só foi concluída por causa da ajuda de benfeitores da chamada “Cooperativa da Arte da Lã”, da cidade de Florência. A construção aconteceu entre os anos de 1348 e 1509. É uma construção feita em blocos de pedras, com pouca claridade e que, durante o inverno, faz um frio terrível. Destaca-se no complexo o órgão de tubos que abrilhanta as celebrações litúrgicas e, durante o verão, acontece uma série de concertos com organistas de diversas partes do mundo.

Capela das Relíquias – Localizada na lateral da nave da basílica, entre as diversas relíquias que compõem o conjunto dessa capela, encontra-se o hábito de lã que São Francisco utilizava no dia em que lhe foram impressos no corpo os estigmas. Recentemente esse hábito passou por limpeza e cuidados especiais de restauração. Também há um relicário contendo o sangue de São Francisco, trata-se de um pedaço de pano de linho que ele trazia sobre a ferida da chaga do peito para proteger da túnica de lã.

Beato João do Alverne – Num altar lateral, à esquerda de quem entra na basílica, encontra-se o corpo do Beato João do Alverne (1259-1322), um frade que viveu por trinta anos como eremita aos pés do Monte da Pena.

Sacristia – É um espaço amplo, com um grande móvel de madeira no centro e circundado por diversos armários, também em madeira maciça, que circundam todas as paredes do espaço retangular, ocupado por diversas alfaias e vasos sagrados. No alto das paredes há vários quadros pintados, a maioria representando santos importantes da história da Ordem. 

Andrea della Robbia – Em diversas capelas no Santuário do Monte Alverne encontramos várias obras do artista Andrea della Robbia. São painéis feitos de cerâmica vitrificada, constando, em geral, nas bordas dos painéis, elementos da flora regional, como pinhas, limões e uvas. Entre as várias de suas obras que constam no complexo do santuário, sobressaem o painel da crucificação, que encontra-se na capela dos Estigmas. O painel de Santa Maria dos Anjos, na capela da Porciúncula, o painel da ascensão de Jesus ao céu, o da Anunciação do Anjo a Maria e o nascimento de Jesus, todos localizados na basílica.  

Capela de São Pedro Alcântara – Datada do final do século XV, é dedicada a um dos expoentes da chamada Observância espanhola. Ao lado da capela de São Pedro Alcântara encontram-se dois pequenos oratórios, um em recordação de uma antiga e frondosa árvore, da espécie chamada faggio, onde os frades mantinham uma fonte de água santa. O outro traz a reprodução da Bênção do Livro dos Números, inúmeras vezes invocada por São Francisco.

Capela de Santa Madalena – Dentro da capelinha, no centro do altar, foi inserido um bloco de pedra, tradicionalmente Francisco utilizava essa “mesa” para consumir sua humilde refeição. Segundo a tradição que se encontra registrada no De Conformitate, IV, 190, um dia, enquanto rezava, o Senhor Jesus lhe apareceu e continuou a falar com ele sentado à mesa. Terminada a visão, Francisco chamou Frei Leão, dizendo-lhe: “Lava essa pedra primeiro com água, depois com vinho, óleo e leite e, por último, com bálsamo, porque Jesus Cristo se sentou ao redor dessa mesa.”

Onde hoje encontra-se essa capelinha, primitivamente era um espaço rústico, uma espécie de cabana. Ela está localizada no alto, à direita da escada que dá acesso ao chamado Sasso Spicco.

Sasso Spicco – Esse local é uma formação rochosa com várias fendas profundas, onde Francisco se recolhia nessas rochas para fazer o seu prolongado tempo de oração, onde a comunicação externa era feita por meio de Frei Leão, “a ovelhinha de Deus”. Ele era a ponte, sobretudo, das necessidades corporais.

Ao longo do corredor que dá acesso à Capela dos Estigmas, podemos contemplar vários afrescos nas paredes que retratam os vários episódios da vida do Poverello, alguns referentes ao seu tempo de estadia nessa montanha sagrada.

Leito de São Francisco – Nesse corredor que dá acesso à capela dos Estigmas, encontramos um portão que dá acesso a um outro espaço entre as rochas, que Francisco utilizava para suas breves pausas de descanso.

Capela de São Sebastião – Local onde o peregrino pode acender sua vela votiva e também percorrer o chamado precipício, local da famosa tentação de Francisco. Localiza-se entre a capela de São Sebastião e a capela de Santo Antônio. Durante sua permanência na montanha sagrada, Francisco, além de fazer sua experiência profunda de Deus, também enfrentou suas “noites escuras” e a tentação do demônio. Em um vão aberto e protegido por uma grade, podemos contemplar o chamado precipício, onde, segundo uma tradição, o demônio teria tentado Francisco. “Pelo que São Francisco, não tendo para onde fugir e não podendo suportar o aspecto crudelíssimo do demônio, subitamente atira-se com as mãos e com o rosto e com todo o corpo de encontro ao rochedo, e recomendou-se a Deus, tateando com as mãos sem que pudesse agarrar em qualquer coisa. Mas como prouve a Deus, o qual não deixa nunca ser tentado um servo seu além do que ele possa suportar, subitamente, por milagre, o rochedo, ao qual se havia encostado, se cavou segundo a forma do seu corpo, e recebeu-o em si como se ele houvesse posto as mãos e o rosto numa cera líquida. Assim, no dito rochedo, se imprimiu a forma do rosto e das mãos de São Francisco e, assim, ajudado de Deus, escapou diante do demônio” (FF, Segunda Consideração, p.1596).

Capela de Santo Antônio – É uma pequena capela que faz memória ao grande santo pregador e taumaturgo. Da pequena janela de vidro pode-se avistar uma belíssima paisagem.

Capela de São Boaventura – É uma pequeníssima capela, muito apropriada para o peregrino fazer suas orações pessoais. É uma memória da estadia de Boaventura no Monte Alverne, onde, segundo a tradição, escreveu sua famosa obra “O Itinerário da Mente para Deus”.

Capela dos Estigmas – É o coração do complexo espiritual do Monte Alverne. No local onde Francisco de Assis recebeu os estigmas, ao longo dos séculos foi construída essa pequena capela para preservar a memória dessa experiência espiritual do Poverello. No pavimento da capela, no local exato que, segundo a tradição, Francisco recebeu as marcas do crucificado no ano de 1224. Há uma marca protegida por um vidro e onde se mantém acesa uma lamparina, mantendo para a posteridade esse legado importante da vida de Francisco de Assis e da nossa espiritualidade.

Por isso, diariamente, após a Oração de Noa, os frades seguem em procissão até a Capela dos Estigmas, entoando a tradicional antífona franciscana em gregoriano Crucis Christi, composta para a Festa dos Estigmas, e que se encontra no Cantuale Romano Seraphicum. Na Capela dos Estigmas são feitas algumas orações franciscanas e, a cada dia, lê-se um trecho do relato dos estigmas de Francisco, retirado das Fontes Franciscanas. Em seguida retorna-se à basílica cantando a litania da Bem-aventurada Virgem Maria, concluindo-se a paraliturgia. Assim, com essa tradicional procissão, que remonta ao ano de 1431, os frades se dirigem a esse local com reverência, fazendo memória, ouvindo o relato da impressão das chagas, mantendo viva essa experiência mística-espiritual acontecida há 800 anos.

Nesse espaço litúrgico destaca-se na parede central o maior painel do artista Andrea della Robbia, retratando a cena da crucificação, tendo Cristo ao centro e, aos pés da cruz, de um lado Maria e Francisco de Assis e, do outro lado, o discípulo amado e São Jerônimo. Completa o espaço da capela o coro com as estalas em madeira maciça, trabalhada na arte de marchetaria.

Biblioteca e farmácia – No complexo conventual, alguns espaços me chamaram a atenção, como a biblioteca“antiga”, com inúmeros volumes datados a partir dos anos de 1700. Os frades também possuíam uma grande farmácia, com uma variedade imensa de medicamentos, muitos deles manipulados in loco. Havia sempre um frade com conhecimentos da medicina que administrava a farmácia e atendia inúmeras pessoas da região que tinham a farmácia do complexo conventual como referência. Para além disso, os frades ofereciam também serviço de odontologia, como extração de dentes. O que restou da antiga farmácia pode ser visitada, no espaço encontram-se muitos manuais contendo diversas doenças e o modo de tratamento, como também frascos e potes de cerâmicas onde se acondicionavam os diversos tipos de medicamentos.

Museu – Próximo à Capela de Santa Maria dos Anjos encontra-se um pequeno museu, com várias seções, onde, para além da parte de arte sacra, alfaias e vasos sagrados, há uma reconstituição da vida conventual com parte da farmácia, cozinha e o chamado fogo comum, onde os frades se reuniam durante o inverno para se aquecer, comer e partilhar a vida.

Arquivo – É uma parte restrita à entrada de visitantes, mas contém documentos preciosos, como alguns manuscritos e incunábulos. Durante um ciclo de estudos medievais que ocorreu no mês de julho, tive a oportunidade de ver alguns manuscritos raros como Legenda Maior de São Boaventura, De Conformitate, de Bartolomeu de Pisa, comentários de alguns padres da Igreja e diversos manuscritos grandes, com notação em gregoriano para o uso do coro.

Cemitério – Aos pés da floresta, não muito longe da entrada principal que dá acesso ao santuário, bem ao lado encontra-se o cemitério dos frades, construído em 1912, onde inúmeros frades da Província Toscana são sepultados.

Natureza

Todo o complexo conventual e o que diz respeito ao santuário está localizado em cima de um complexo de rochas que, por sua vez, é circundado por um imenso parque, com toda uma área de preservação, com muitas espécies de árvores nativas. Acima do Santuário do Monte Alverne existe o chamado Monte da Pena, localizado a 1.283 metros acima do nível do mar. Para chegar ao topo do monte, sobe-se através de um belo bosque, onde, no caminho, encontramos uma capelinha, onde estava localizado o eremitério do Beato João do Alverne. Durante minha estadia no Alverne aproveitei para fazer inúmeras caminhadas, experimentando trilhas novas. Diversos grupos utilizam as várias rotas existentes de caminhada para chegar ao santuário do Monte Alverne.

A presença e experiência de Francisco de Assis no Monte Alverne

O lugar fala por si só, sobretudo quando retomamos as nossas Fontes Franciscanas em mãos e fazemos um retorno às passagens que remetem à estadia de Francisco nesse monte tão caro à nossa tradição franciscana.

O monte foi doado a Francisco no ano de 1213 pelo conde de Chiusi, no Casentino, Orlando Catani, que tinha seu castelo nesse vilarejo. A doação aconteceu após o conde escutar uma pregação de Francisco. Aqui neste monte, Francisco fez sua chamada Quaresma de São Miguel, tradicionalmente iniciada na Festa da Assunção de Nossa Senhora e concluída na Festa de São Miguel. Em dois lugares que a natureza ainda mantém no seu frescor original podemos ver com os nossos olhos e tocar com as nossas mãos, o chamado Sasso Spicco, uma formação rochosa com vários veios, onde é possível se adentrar cada vez mais para uma espécie de útero da rocha. Ali, Francisco escondia-se e fazia desse espaço sua cela natural. A ligação com o exterior era feita por meio do seu confrade e secretário Frei Leão. Nesse espaço, Francisco fazia sua experiência profunda de oração e contemplação. O outro lugar é o chamado leito de São Francisco, também localizado em meio às rochas, era utilizado pelo Poverello para o seu tempo de descanso pessoal.

Texto escrito para Frei Leão no Monte Alverne: Os Louvores ao Deus Altíssimo e a Bênção do Livro dos Números.

Frei Leão, companheiro próximo de Francisco e seu fiel secretário, segundo “Dos Sacrossantos Estigmas de São Francisco e de suas Considerações”, passava por uma grande tentação, uma crise espiritual, e, durante esse momento difícil que atravessava, desejou possuir um escrito da mão de São Francisco, e pensava que, assim, desapareceria sua tentação. No entanto, Leão não tinha coragem de expressar sua vontade a Francisco. Segundo as Considerações, foi revelado através do Espírito Santo a Francisco o desejo de seu companheiro. Francisco chamou Frei Leão e pediu para trazer papel, tinteiro e tinta. Francisco presenteia Leão com os “Louvores ao Deus Altíssimo” e a bênção retirada do “Livro dos Números”, deixando ao final um tau como assinatura. Francisco pede a Frei Leão que guardasse aquele escrito diligentemente até sua morte. Diz o texto que: “Recebendo Frei Leão este escrito com suma devoção e fé, subitamente todas as tentações desapareceram e, voltando ao eremitério, contou aos companheiros com grande alegria quantas graças Deus lhe havia feito com o receber daquele escrito da mão de São Francisco (…)” (FF, Segunda Consideração, p.1594). 

Frei Leão obedeceu diligentemente a Francisco e guardou zelosamente essa pequena pele escrita dos dois lados até o final da vida, provavelmente levava esse tesouro guardado dobrado no bolso do hábito. Esse pequeno e precioso manuscrito pode ser visto e admirado atualmente numa exposição ao lado direito do altar central da Basílica inferior do Sacro Convento.

Elucubrações pessoais

Após o jantar, na praça em frente ao Santuário, pode-se contemplar um belíssimo entardecer, com a coloração do céu, as montanhas ao longe, o verde ao redor, as pedras que apoiam o complexo do Santuário, as andorinhas que esvoaçam no céu e, sentado na mureta, à beira desse grande painel saído das mãos de Deus, muitas vezes me peguei matutando acerca do período em que Francisco de Assis passou por aqui no ano de 1224, fazendo sua Quaresma de São Miguel, que iniciava-se com a Festa da Assunção de Maria e se completava com a Festa do arcanjo São Miguel. A experiência feita por Francisco com o Cristo crucificado foi muito profunda. Reporto-me onde hoje é a Capela dos Estigmas, com uma marca no pavimento para sinalizar o lugar exato em que Francisco recebeu os estigmas. No local, antes havia uma grande formação rochosa, de difícil acesso, onde Francisco se refugiou para exercitar na sua dimensão contemplativa e, onde diz as Fontes, não queria ser incomodado, por isso havia combinado com Frei Leão uma forma de comunicação, a fim de que sua experiência mística não fosse interrompida. Após a experiência mística, Francisco desceu do monte, marcado pelas chagas do Cristo crucificado impressas não somente no seu corpo externo, mas no mais profundo do seu ser. Para além dessa experiência contemplativa, fisicamente Francisco se sentia muito frágil, com dificuldade de locomoção e sentindo dores, então, é preciso se deslocar montado em algum asno, sobretudo quando retorna para Assis. O Poverello quer preservar sua privacidade e tenta esconder os sinais da Paixão que traz no seu corpo. Poucos frades têm acesso a essa experiência de Francisco. Na carta encíclica de Frei Elias, dirigida a toda a Ordem, por ocasião da morte de Francisco, comunica oficialmente a novidade (FF, EL, p.1454). Nós poderíamos pensar num paradoxo, e parece que a vida dos grandes santos, contemplativos, místicos, é marcada por inúmeros paradoxos, compreendidos somente quando se entra numa outra dimensão, na via da experiência profunda de Deus. Assim também aconteceu com Francisco, os estigmas foram o coroamento de um itinerário espiritual que iniciou diante do Crucificado de São Damião, no início da sua vocação. Os dois últimos anos de vida com o corpo físico cada vez mais alquebrado, com sérios problemas oftalmológicos e estomacais, não se deixou abater, Francisco manteve clareza no seu projeto de vida – de “viver segundo a forma do Santo Evangelho”, como retrata no seu Testamento, quando, inúmeras vezes, quase como um refrão, repete que cada momento de sua experiência religiosa foi marcado por Deus: o início da vocação, o encontro com os leprosos, a fraternidade. No ano de 2024, celebramos os 800 anos dessa experiência de Francisco no Alverne e pedimos que ele nos ajude a vivenciar melhor esse legado atualmente, onde o nosso mundo tem sede constante dessa identificação plena com o Cristo.

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