João Duns Scotus: O “Doutor Sutil”, a Filosofia e a Teologia como Ciência

João Duns Scotus: O “Doutor Sutil”, a Filosofia e a Teologia como Ciência

Ao celebrar o Beato João Duns Scotus, destaca-se a relevância de sua fé, compromisso e integração entre razão e fé, valores essenciais à busca pela verdade e proximidade com Cristo.

Frei Isaque Santos de Sá, OFM[1]

Vida e obra

No dia 8 de novembro, a Igreja e a Família Franciscana no Brasil unem-se para celebrar o Beato João Duns Scotus, figura central do pensamento e da teologia da Idade Média, cuja influência perdura no diálogo entre fé e razão. Nascido por volta de 1265, na Escócia,

Duns Scotus distinguiu-se por sua profunda erudição e pela notável agudeza intelectual dedicadas ao estudo da Teologia e da Filosofia. Seu nome, embora evoque complexidade teológica, é intrinsecamente ligado à espiritualidade franciscana, caracterizada pela adesão radical e simples ao Evangelho.

O seu legado literário compreende obras filosóficas e teológicas de imensa relevância, destacando-se o Comentário aos Livros das Sentenças de Pedro Lombardo – um texto canônico na formação teológica medieval – e o Tractatus de Primo Princípio (Tratado do Primeiro Princípio). Esta última obra é reconhecida por abrigar a mais completa e rigorosa prova da existência de Deus concebida no contexto da Escolástica.

Formação acadêmica e religiosa

João Duns Scotus desenvolveu-se em um ambiente de profunda religiosidade, manifestando precocemente um interesse pela vida espiritual. A proximidade de sua família com os Frades Menores facilitou seu ingresso na Ordem Franciscana: por volta de 1280, ele foi acolhido por seu tio, Frei Elías Duns que exercia a função de vigário na Vicária da Escócia. Com um intelecto notável e uma fervorosa devoção, Duns Scotus rapidamente se destacou entre seus confrades. A Regra de São Francisco de Assis – pautada nos votos de pobreza, castidade e obediência – não apenas serviu como diretriz de sua vida, mas moldou a vivência de sua fé em todos os seus atos e reflexões. Sua trajetória acadêmica culminou na Universidade de Paris, epicentro do saber medieval. Nesse ambiente, marcado por intensas disputas teológicas (disputatio), Duns Scotus emergiu como um dos maiores expoentes da Escolástica. Ali, aprofundou-se em temas cruciais que se tornariam centrais em sua obra, como a relação entre razão e fé, a demonstração da existência de Deus e a questão da Imaculada Conceição. Sua inteligência perspicaz e a notável capacidade de resolver controvérsias teológicas, aliadas a uma inabalável fidelidade à Igreja e à Tradição, asseguraram-lhe uma posição de destaque incontestável na academia medieval.

A Teologia como ciência

Para Santo Tomás de Aquino, a teologia é concebida como ciência (scientia) subordinada à ciência de Deus e dos bem-aventurados. Partindo deste pressuposto, Duns Scotus concebe a teologia como ciência que investiga uma verdade que provém de uma proposição de fé (Deus Uno e Trino) ou das verdades da Sagradas Escrituras, na qual, deve comprovar tal verdade a partir de um princípio único de uma verdade universal, que aqui é a Revelação Divina.

Para isso, ele parte da lógica aristotélica – que via o hábito cognitivo como uma forma de conhecimento e as ciências apodíticas como a forma mais estrita de ciência – para mostrar essa caracterização da teologia como ciência: a) de que tinha que ser um conhecimento certo; b) sem engano ou dúvida; c) ter algo necessário em seu conteúdo; d) e em seu conteúdo, deve deduzir da causa conhecida como evidência dentro do discurso.

Neste sentido,

o doutor sutil (Doctor Sutilis) mostra que há uma “ciência em si” (scientia in se), que se refere ao conhecimento em sua perfeição absoluta, isto é, o Conhecimento Divino e uma “ciência em nós” (scientia in nobis) que é o conhecimento em sua condição humana, imperfeita, adquirida por revelação (fé) e mediada pela razão (estudo). Portanto, a teologia é baseada na “ciência em si” que é o Conhecimento Divino, ilimitado em suas capacidades e de quem provém todas as outras verdades necessárias.

Filosofia e Teologia

Com isso, tona-se manifesto que a teologia (revelação) é remetida à filosofia (conhecimento). A Revelação Divina deve ser entendida por ouvintes humanos, se as verdades são entendidas de modo natural. Para Duns Scotus, as verdades só podem ser entendidas a partir de uma única verdade, onde o intelecto humano a transcende de modo que conheça a Verdade Divina de um ente infinito (ens infinitum). Em outras palavras, “a teologia pergunta pela possibilidade e pela necessidade da verdade das proposições reveladas que o força a pôr a pergunta pela possibilidade e pela necessidade de um conhecimento que transcenda a experiência natural” (HONNEFELDER, 2010, p. 40-41). Portanto, a teologia só pode ser feita se os conceitos utilizados por ela podem ser identificados por meio de uma ciência da metafísica, que transcenda a física.

Espiritualidade e testemunho

A trajetória de Duns Scotus reflete de maneira consistente sua espiritualidade franciscana. Ele demonstrou comprometimento integral com a vida religiosa, conciliando contemplação e ação, e buscando constantemente a perfeição por meio do serviço e da contribuição para a Igreja. Sua conduta religiosa destacava-se pela humildade, caridade e obediência à vontade divina, características reconhecidas por seus contemporâneos.

A devoção de Duns Scotus a Cristo e à Virgem Maria manifestava-se tanto na doutrina quanto na prática cotidiana; defendia que teologia exige vivência, integrando estudo e oração numa busca pelo amor de Deus. Relatos de discípulos confirmam que sua vida era marcada pela comunhão com Deus e relacionamento ético com os demais. Notabilizou-se também pela firmeza na defesa de seus princípios, mesmo sob resistência e consequências adversas, como observado durante sua permanência em Paris em função de sua postura diante do Papa. Duns Scotus acreditava ser a verdade um caminho de salvação, ainda que desafiasse expectativas estabelecidas.

Neste sentido, faleceu em 8 de novembro de 1308, em Colônia, Alemanha, enquanto desempenhava funções pastorais e seguia a vida regular. Sua morte foi considerada coerente com o percurso devotado à fé. Seu legado permanece influente entre teólogos, filósofos e religiosos. Seis séculos após sua morte, Duns Scotus foi beatificado pelo Papa João Paulo II, em 1993, reconhecimento oficial à sua santidade. Sua dedicação ao estudo e ao serviço religioso é referência contínua para a reflexão teológica no contexto cristão. Ao celebrar o Beato João Duns Scotus, destaca-se a relevância de sua fé, compromisso e integração entre razão e fé, valores essenciais à busca pela verdade e proximidade com Cristo.

Referências bibliográficas

ARMELLADA, Bernardino [et al.]. Manual de Teologia Franciscana. Petropólis: Vozes, 2005. (FFB)

HONNEFELDER, Ludger. João Duns Scotus. São Paulo: Edições Loyola, 2010.


[1] Licenciado em Filosofia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino e graduando em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.

Leia outras notícias