COP30: Um ato de memória e resistência: uma oração pelos “mártires da ecologia integral”.

COP30: Um ato de memória e resistência: uma oração pelos “mártires da ecologia integral”.

A celebração foi um gesto profético: lembrar que sem justiça, sem cuidado e sem compaixão, nenhum acordo climático será suficiente para salvar a vida na Terra.

Na COP30, onde chefes de Estado disputam narrativas, esse encontro entre religiosos de vida consagrada revela outra forma de luta climática: feita de memória, espiritualidade e compromisso com os feridos da história. A crise ecológica, lembram eles, não é apenas uma questão de carbono — é uma crise de sentido, de vínculos e de humanidade.

Frei Laércio Jorge, ofm[1]

BELÉM, PA  14 novembro de 2025 – No auditório do Regional Leste 2 da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), a Vida Religiosa Consagrada teceu, na tarde de ontem, 13/11, um raro momento de síntese entre a espiritualidade e os conflitos socioterritoriais mais urgentes do Brasil, celebrando o Ofício Divino das Comunidades, não como um fórum de debate, mas como um ato de memória e resistência: uma oração pelos “mártires da ecologia integral”.

A cerimônia, que ocorre no contexto da COP30 – a conferência do clima da ONU que acontece em Belém –, partiu de uma premissa sociologicamente fundamentada:

o território amazônico é um “lugar teológico” e político, onde a fé é forjada na fronteira do conflito.

Pesquisadores como Arturo Escobar (2018), Ailton Krenak (2020) e Boaventura de Sousa Santos (2021) destacam que a destruição dos territórios produz também a destruição dos corpos — especialmente os corpos dos que defendem a floresta. Segundo a Global Witness, desde 2012 o Brasil figura entre os países mais perigosos para defensores ambientais, com dezenas de assassinatos por ano.

“Recordamos que nós pisamos numa terra santa banhada pelo sangue de tantas vidas que se tornaram mártires”, ecoou a voz de um dos celebrantes, referindo-se a figuras como o missionário Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips, e tantos outros, cujas mortes escancararam a violência na região.

O tráfico humano emergiu como um dos eixos centrais da reflexão, articulando a exploração ambiental com a exploração de corpos. Irmã Neli, da Rede Vivat Internacional, narrou a gênese do movimento, que nasceu em 2005 no seio da Vida Religiosa Consagrada Franciscana, impulsionado pela irmã Gabriela Bottani, como resposta à globalização do crime. “Não poderiam ficar inertes ao comércio de gente”, disse, citando as ideias fundantes.

Os dados atualizados dão concretude à luta. O tráfico de pessoas é hoje uma das economias ilícitas mais lucrativas do planeta. A Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2022) estima quase 50 milhões de pessoas em situação de escravidão moderna,

sendo o Brasil rota e origem de vítimas — especialmente mulheres negras e jovens empobrecidas,

conforme aponta o Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas (2023). O Disque 100 e o Ligue 180 registraram milhares de denúncias relacionadas a este crime, com a rota entre a Amazônia e o nordeste brasileiro, sendo particularmente a mais crítica devido à fragilidade institucional e aos fluxos migratórios. Segundo o Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas 2022 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), mulheres e meninas representam 60% das vítimas identificadas globalmente, sendo a exploração sexual a forma predominante.

Irmã Neli destacou o crescimento da rede: das 28 voluntárias iniciais, hoje são 300 mulheres, entre consagradas, leigos e leigas, com maior presença no Nordeste e na Amazônia. Fez-se memória à história da jovem Daniela, que, após ser vítima no Camboja, denunciando o esquema de tráfico humano, foi condenada por tráfico de drogas, ilustrando assim a complexidade e os riscos do enfrentamento.

“Não é um trabalho a mais. É um serviço do reino: ‘eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância’ (Jo 10,10)”,

afirmou a religiosa, fundamentando a partir do evangelho, a base da missão.

Fabio Paes, representante do SINFRAJUP (Serviço Inter-Franciscano de Justiça, Paz e Ecologia), apresentou uma inovação simbólica e prática: o “estandarte da caminhada”. A peça, que percorrerá diferentes localidades, não é um mero símbolo, mas uma ferramenta de mobilização. “Por onde passar, deve promover mesas de debate e audiências públicas diante das necessidades locais que aquele estandarte tocar”, – uma pedagogia itinerante típica da tradição franciscana, explicou.

Esta estratégia se alinha com o que o sociólogo francês Pierre Bourdieu, em seu conceito de “capital simbólico”, descreve como a capacidade de instituições legitimadas (como as ordens religiosas) de mobilizar atenção e recursos para causas específicas. A ação direta da Vivat, hoje presente em 127 países com 17 mil pessoas envolvidas, é um exemplo claro de como a “fé encarnada” exerce pressão política sistemática.

O sociólogo José de Souza Martins (2019) e a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha (2023) têm insistido que

a Amazônia é palco de um conflito de modelos civilizatórios. O que está em disputa não é apenas o bioma, mas a própria possibilidade de futuro.

O momento de maior densidade teológica e sociológica veio com a fala de Frei Michael Perry, OFM, que conectou o legado de São Francisco de Assis – cujo centenário de 800 anos de sua morte se inicia – aos desafios contemporâneos.

“Sua vida foi embalada pela trilha sonora do Cântico das Criaturas”, disse Perry. “Este cântico celebra o início das histórias de nossas vidas, que devem questionar sobre esta cultura de morte e exploração”.

Sua reflexão ecoa as teses do Papa Francisco na Encíclica “Laudato Si'” (2015), que bebe diretamente da fonte franciscana para criticar o paradigma tecnocrático. O Pontífice argumenta que a crise ecológica é “a face mais visível de uma crise ética, cultural e espiritual da modernidade”, onde a “interligação” de todas as coisas é negada pela lógica da exploração.

Frei Michael foi além:

“Estamos falando e construindo paredes ao invés de pontes. Acumulação de ouro, poder e riqueza… Mas qual é a origem da criação? A origem da criação é a interligação… Não a exploração!”

Ao evocar a “guerra” como um divisor de águas na vida de São Francisco, ele propôs uma pergunta incômoda e atual: “Qual seria o nosso jeito de romper com o sistema que continua a fazer guerras e matar?”

A resposta, sugeriu, está no exemplo de Santa Clara: gestos silenciosos, porém profundos, que restauram a humanidade dos excluídos. Seu gesto reforça uma chave franciscana de transformação: a proximidade, a compaixão e o cuidado com as chagas do mundo. “As chagas são como a identidade franciscana que nos une aos sofrimentos do mundo”, concluiu, propondo uma espiritualidade das “chagas” – ou seja, uma fé que não foge do sofrimento social e ambiental, mas se deixa marcar por ele.

Essa reflexão ecoa autores como Leonardo Boff (2019) e Vandana Shiva (2022), que denunciam a “cultura de morte” produzida pelo neoliberalismo global e defendem a construção de alternativas baseadas no cuidado, no comum e na defesa dos vulneráveis.

O evento encerrou com um diagnóstico preocupante, partilhado por vários participantes: a diminuição de pessoas batizadas interessadas em ações sociais como a Pastoral da Criança, articulação de Fé e Política, o enfrentamento ao tráfico humano ou a defesa dos pobres. Esse diagnóstico se aproxima das análises de Marina Silveira (2024) e Pedro Ribeiro de Oliveira (2021) sobre a crise de engajamento comunitário e o avanço do individualismo neoliberal nas comunidades religiosas. É um sinal de um desafio duplo:

enquanto lutam por justiça no mundo, as comunidades religiosas precisam reencantar suas próprias bases para a missão sociotransformadora.

A ecologia integral, nesse sentido, aparece como horizonte para reconstituir a sensibilidade social e espiritual, lembrando que “tudo está interligado” — uma canção que sintetizou o sentimento da tarde, um lema que é, ao mesmo tempo, uma prece, um princípio ecológico e um programa político: “Tudo está interligado como se fôssemos um… Tudo está interligado nesta casa comum”.

A celebração foi, assim, um gesto profético: lembrar que sem justiça, sem cuidado e sem compaixão, nenhum acordo climático será suficiente para salvar a vida na Terra.

Para aprofundar:

  • BOFF, Leonardo. Ecologia Integral: A responsabilidade de todos pela Casa Comum. Vozes, 2019.
  • BOURDIEU, Pierre. “Razões Práticas: Sobre a Teoria da Ação”. Papirus Editora, 1997.
  • BRINGEL, Breno; FALEIROS, Guadalupe. “Ecologia Integral e Martirológio Socioambiental: Notas para uma Pesquisa”. In: Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 81, 2021.
  • CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. A Terra Não é Redonda. Todavia, 2023.
  • COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT). “Conflitos no Campo Brasil 2023”. Goiânia, 2024.
  • ESCOBAR, Arturo. Sentir-Pensar com a Terra. Elefante, 2018.
  • FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica “Laudato Si'”. Vaticano, 2015.
  • GLOBAL WITNESS. Defending the Defenders. Relatórios anuais.
  • LOUREIRO, Isabel; SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). O Futuro da Casa Comum. Almedina, 2021.
  • KRENAK, Ailton. A Vida Não é Útil. Companhia das Letras, 2020.
  • OIT. Global Estimates of Modern Slavery. ILO, 2022.
  • RIBEIRO DE OLIVEIRA, Pedro. Religião e Sociedade no Brasil contemporâneo. Paulinas, 2021.
  • UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime). “Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas 2022”. Viena, 2022.
  • SHIVA, Vandana. Oneness vs. the 1%. Chelsea Green, 2022.
  • SILVEIRA, Marina. Desencanto e Engajamento nas Comunidades de Fé. Paulus, 2024.

[1] Frei Laércio Jorge, OFM. Professor. Graduado em Filosofia e Teologia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino. Mestre em Ciências Sociais pela PUC-MG.

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