Com “Desiderio desideravi”, Francisco convida a superar quer o esteticismo que se compraz somente na formalidade externa, como o desleixo nas liturgias: “Uma celebração que não evangeliza não é autêntica”.
Imagem: Santa Missa na Solenidade de Corpus Christi, em 6 de junho de 2021 (Vatican Media)
Uma Carta Apostólica* ao povo de Deus sobre a liturgia, para recordar o significado profundo da celebração eucarística tal como emergiu do Concílio e para convidar à formação litúrgica. Papa Francisco publica “Desiderio desideravi”, que com seus 65 parágrafos reelabora os resultados da sessão plenária do Dicastério do Culto Divino em fevereiro de 2019 e segue o Motu Proprio “Traditionis custodes“, reafirmando a importância da comunhão eclesial em torno do rito resultante da reforma liturgia pós-conciliar. Não se trata de uma nova instrução ou de um diretório com normas específicas, mas sim de uma meditação para compreender a beleza da celebração litúrgica e o seu papel no evangelizar. E é concluída com um apelo: “Abandonemos as polêmicas para ouvirmos juntos o que o Espírito diz à Igreja, mantenhamos a comunhão, continuemos a nos maravilhar com a beleza da liturgia” (65).
A fé cristã, escreve Francisco, ou é encontro com Jesus vivo ou não é. E “a Liturgia nos garante a possibilidade de tal encontro. Não precisamos de uma vaga recordação da Última Ceia: temos necessidade de estar presentes nessa Ceia”.
Recordando a importância da constituição “Sacrosanctum Concilium” do Vaticano II, que levou à redescoberta da compreensão teológica da liturgia, o Papa acrescenta: “Gostaria que a beleza do celebrar cristão e de suas necessárias consequências na vida da Igreja, não fosse deturpada por uma superficial e redutiva compreensão de seu valor ou, pior ainda, de sua instrumentalização a serviço de alguma visão ideológica, seja ela qual for”(16).
Depois de ter advertido sobre o “mundanismo espiritual” e o gnosticismo e neopelagianismo que o alimentam, Francisco explica que “participar do sacrifício eucarístico não é uma conquista nossa como se pudéssemos nos orgulhar disso diante de Deus e de nossos irmãos” e que “a liturgia nada tem a ver com um moralismo ascético: é o dom da Páscoa do Senhor que, acolhido com docilidade, renova a nossa vida. Só se entra no Cenáculo pela força da atração de seu desejo de comer a Páscoa conosco”(20).
Para curar do mundanismo espiritual é preciso redescobrir a beleza da liturgia, mas essa redescoberta “não é a busca de um esteticismo ritual que se compraz apenas no cuidado da formalidade externa de um rito ou se satisfaz com uma escrupulosa observância de rubricas. Obviamente, esta afirmação não quer de modo algum aprovar o comportamento oposto que confunde a simplicidade com desleixada banalidade, a essencialidade com uma ignorante superficialidade, a concretude do agir ritual com um exasperado funcionalismo prático”(22).
O Papa explica que “cada aspecto do celebrar deve ser cuidado (espaço, tempo, gestos, palavras, objetos, vestes, canto, música, …) e cada rubrica deve ser observada: bastaria essa atenção para evitar privar a assembleia do que lhe é devido, ou seja, o mistério pascal celebrado na modalidade ritual que a Igreja estabelece. Mas mesmo que se garantisse a qualidade e a norma da ação celebrativa, isso não seria suficiente para tornar plena nossa participação”(23).
De fato, se faltar “o encanto pelo mistério pascal” presente “na concretude dos sinais sacramentais, poderíamos correr o risco de ser impermeáveis ao oceano de graça que inunda cada celebração” (24). Esse encanto, esclarece Francisco, não tem nada a ver “com a expressão ‘sentido de mistério’: às vezes, entre as supostas acusações contra a reforma litúrgica, há também a de tê-la – diz-se – eliminada da celebração”. O eencanto de que fala o Papa não é uma espécie de perplexidade diante de uma realidade obscura ou de um rito enigmático, mas é, “ao contrário, a maravilha pelo fato de que o plano salvífico de Deus nos foi revelado no domingo de Páscoa. Jesus” ( 25).
Como, então, recuperar a capacidade de viver plenamente a ação litúrgica? Diante da perplexidade da pós-modernidade, do individualismo, do subjetivismo e do espiritualismo abstrato, o Papa convida a retornar às grandes constituições conciliares, que não são inseparáveis entre si. E escreve que “seria trivial ler as tensões, infelizmente presentes em torno da celebração, como uma simples divergência entre diferentes sensibilidades em relação a uma forma ritual. A problemática é sobretudo eclesiológica”(31). Por trás das batalhas sobre o rito, em suma, existem diferentes concepções da Igreja. Não se pode dizer, especifica o Pontífice, de reconhecer a validade do Concílio e não acolher a reforma litúrgica nascida da “Sacrosanctum Concilium”.
Citando o teólogo Romano Guardini, muito presente na Carta Apostólica, Francisco afirma que, sem formação litúrgica, “as reformas no rito e no texto não ajudam muito” (34). Ele insiste na importância da formação, especialmente nos seminários: “Uma abordagem litúrgico-sapiencial da formação teológica nos seminários certamente teria efeitos positivos também na ação pastoral. Não há aspecto da vida eclesial que não encontre nela seu ápice e sua fonte. A pastoral de conjunto, orgânica e integrada, mais do que o resultado de programas elaborados, é a consequência de colocar a celebração eucarística dominical, fundamento da comunhão, no centro da vida comunitária. A compreensão teológica da Liturgia não permite de modo algum compreender estas palavras como se tudo se reduzisse ao aspecto cultual. Não é autêntica uma celebração que não evangeliza, assim como não é autêntico um anúncio que não leva ao encontro com o Ressuscitado na celebração: ambos, sem o testemunho da caridade, são como um bronze retumbante ou um címbalo que estrila”(37).
É importante, explica ainda o Papa, educar para a compreensão dos símbolos, cada vez mais difícil para o homem moderno. Uma maneira de fazer isso “é certamente aquele de cuidar da arte de celebrar”, que “não pode ser reduzida à mera observância de um aparato de rubricas e nem mesmo pode ser pensada como uma criatividade imaginativa – às vezes selvagem – sem regras. O rito é por si só norma e a norma nunca é um fim em si mesma, mas sempre a serviço da realidade mais elevada que ela quer salvaguardar” (48). A arte de celebrar não se aprende “porque se frequenta um curso de oratória ou de técnicas de comunicação persuasiva”, é preciso “dedicar-se diligentemente à celebração, deixando que seja a própria celebração a nos transmitir a sua arte” (50). E “entre os gestos rituais que pertencem a toda a assembleia, o silêncio ocupa um lugar de absoluta importância”, que “move ao arrependimento e ao desejo de conversão; suscita a escuta da Palavra e a oração; dispõe à adoração do Corpo e Sangue de Cristo» (52).
Francisco observa então, que nas comunidades cristãs, seu modo de viver a celebração “está condicionado – no bem e, infelizmente, também no mal – de como o pároco preside a assembleia”. E elenca vários “modelos” de presidência inadequados, ainda que de sinal contrário: “rigidez austera ou criatividade exasperada; misticismo espiritualizante ou funcionalismo prático; pressa ou lentidão enfatizada; descuido desleixado ou excessivo refinamento; afabilidade superabundante ou impassividade hierática”. Todos os modelos que têm uma única raiz: “um personalismo exasperado do estilo celebrativo que, às vezes, expressa uma mania mal disfarçada de liderança” (54), amplificada quando as celebrações são transmitidas on-line. Enquanto “presidir a Eucaristia é mergulhar na fornalha do amor de Deus. Quando nos é dado compreender, ou mesmo apenas intuir, esta realidade, certamente já não precisamos de um diretório que nos exija um comportamento adequado” ( 57).
O Papa conclui a carta pedindo a “todos os bispos, presbíteros e diáconos, aos formadores dos seminários, professores de faculdades teológicas e escolas de teologia, a todos os catequistas, que ajudem o povo santo de Deus a aproveitar o que sempre foi a fonte primária de espiritualidade cristã “, reiterando o que está estabelecido em “Traditionis custodes”, para que ” a Igreja possa elevar, na variedade das línguas, uma só e idêntica oração capaz de exprimir a sua unidade” e esta única oração é o Rito Romano resultante da reforma conciliar e estabelecido pelos santos pontífices Paulo VI e João Paulo II.
*Tradução NÃO OFICIAL!