Frei Chico, aproveite a eternidade para cantar, tocar, pôr toda a Corte Celeste para bater palma, improvisar versos de roda, imite aquele passarinho estridente, assopre sua escaleta, aquela flautinha que doía o tímpano, de tão aguda.
O corpo do Frei Chico van de Poel chegou ao salão paroquial da paróquia São Francisco das Chagas, em Carlos Prates, Belo Horizonte, às 7h da manhã, no domingo, 15 de janeiro, após 12 dias de internação.
Há um ano, após o Capítulo Provincial, Frei Chico insistia junto ao Governo Provincial para que não fosse transferido, pois tinha vários projetos em vista, e estar em Belo Horizonte o favoreceria. Assim foi respeitado. Porém, sua saúde física e mental foi decaindo ao longo do ano.
Às 8h30min foi celebrado o Ofício dos Fieis Defuntos, e não havia mesmo outra forma de bendizer a Deus por sua vida, senão cantando. Ao lado de seu caixão estavam o fruto mais robusto de sua dedicação, o Dicionário da Religiosidade Popular, – elaborado ao longo de quatro décadas – seu inseparável violão, cravejado pela palavra ‘paz’ em diversos idiomas, e o ‘Fuxico’, seu palhacinho que trazia a tiracolo, seu alter ego inconsequente, irreverente, anarquista, jovial.
Durante o dia, muitas pessoas amigas, Irmandades, e representantes de diversos setores da sociedade civil se fizeram presentes, homenageando e agradecendo a dedicação de Frei Chico para coma religiosidade popular. Muitas foram as pessoas que nos escreveram, destacando sua proximidade ao frade holandês. Quem o conheceu, sempre vai se lembrar dele!
A missa de exéquias foi celebrada às 16h, presidida pelo Ministro Provincial, Frei Hilton Farias, e contou com a presença de muitos frades, religiosos e religiosas, leigos e leigas de diversos lugares. Dom Vicente Ferreira, bispo auxiliar da arquidiocese de Belo Horizonte esteve entre os presentes. As emoções foram um misto de tristeza e alegria: tristeza da despedida, mas alegria por tamanho legado.
Após a celebração, o corpo de Frei Chico seguiu para Araçuaí, a cerca de 600 Km da Capital Mineira, onde começou sua paixão e suas pesquisas e para onde acorria anualmente, a fim de continuar a beber de uma fonte inesgotável.
Um povo, uma paixão
Frei Chico se vangloriava de ter feito seus estudos teológicos enquanto o Concílio Vaticano II estava em curso. Alguns professores estavam a serviço do Concílio e lhes transmitiam em primeira mão as decisões conciliares. Já em terras brasileiras, sem dúvida, as Conferências Episcopais de Medellín (1968) e Puebla (1979) tiveram um papel decisivo em sua vivência pastoral. A opção preferencial pelos pobres soou como música aos ouvidos do frade que, ao lado de tantos outros, estavam inseridos na realidade empobrecida do Vale do Jequitinhonha e outros rincões.
Evidentemente, num primeiro momento houve um estranhamento de Frei Chico para com aquela cultura. Por mais que sua formação tivesse lhe preparado para uma proposta mais aberta e inculturada de Igreja, o que se apresentava era diferente de tudo aquilo que imaginara. Mas, passado o choque inicial, brotou o enamoramento, que evoluiu para um matrimônio que ultrapassou as Bodas de Ouro, entre Frei Chico e a Religiosidade Popular, sobretudo, do Vale do Jequitinhonha.
Assim, ele narra nas introduções do Dicionário da Religiosidade Popular, de sua autoria: “Por dez anos, entre 1968 e 1978, tive o privilégio de morar no Vale do Jequitinhonha, nordeste de Minas. A partir de Araçuaí, em parceria com Maria Lira Marques, passei a registrar as rezas, benditos, batuques, técnicas de trabalho, remédios, sabenças e histórias do povo do Vale. O Jequitinhonha mudou o meu modo de pensar sobre a verdadeira religião: aprendi que quem pretende entender a religiosidade popular e ter o direito de explicar seus significados há de se tornar simples com os simples e pobre com os pobres. Confesso que a fé dessa gente me levou a uma espécie de conversão. Na arte de pensar como eles, estou apenas começando a tudo aprender” (2018, p.8).
Assim como fizera Ariano Suassuna e tantos mais, Frei Chico nos ensinou a reverenciar a cultura brasileira, sobretudo, dos pobres, da zona rural. Para além de um ufanismo bairrista, estava convencido – e o demonstrava ad nauseam – que o jeito do povo simples ser e rezar era genuíno e belo, sem se alienar da dureza da vida.
Em muitos aspectos, Frei Chico foi um frade contracorrente. Enquanto um determinado modelo de Igreja se fascina pelo poder e pela pompa, Frei Chico girou o olhar para o outro lado, e enxergou uma vivência religiosa singela e modesta; uma religiosidade leiga, feminina, jocosa,
muito contrastante de rubricas, gestos contidos e rostos sisudos perante o Mistério de Deus. Em suas falas, repetia que o que avaliza a verdadeira experiência religiosa é a presença de um Deus vivo, o que, no caso cristão, O reconhece como Emanuel-encarnado, morto e, acima de tudo, ressuscitado: eis o motivo da festa! “São Francisco é meu pai, Santo Antônio é meu irmão, os anjos são meus parentes, oh que bela geração” (verbete ‘parentesco espiritual’, p. 775).
Seu jeito de celebrar era espontâneo, cantante, orante, do jeito do povo, com benditos e estrofes encharcadas de vida concreta, em que os elementos da natureza, a saúde e a doença, a criação dos filhos, a vivência familiar, o comprar e o vender…tudo é visto sob a proteção das asas de Deus. “O povo não separa vida e religião” – eis uma lição a não ser esquecida.
Frei Chico não ficou na margem, não observou a mata de fora, mas se entranhou para entender as raízes da cultura e religiosidade a partir de dentro. Cabe destacar seus estudos em Portugal e seus conhecimentos das religiões de matriz africana. E se admirava: “às vezes a mesma oração que uma senhora analfabeta rezava no norte de Minas, eu a encontrei em bibliotecas europeias, com referências medievais” – peripécias da tradição oral!
Num dos cantos entoados ao redor de seu corpo, uma Irmandade deu o tom final de sua presença, numa estrofe de luto:
“ô Marinheiro é hora
É hora de viajar
É céu, é terra, é mar
ô marinheiro, olha o balanço do mar”.
Soaria estranho concluir com “descanse em paz”. Isso não combina com Frei Chico, porque muitas vezes a Eternidade é entendida como certo marasmo, um silêncio entediado. Imaginar Frei Chico “de boa”, só descansando, não encaixa.
Tentemos de outro modo:
Frei Chico, aproveite a eternidade para cantar, tocar, pôr toda a Corte Celeste para bater palma, improvisar versos de roda, imite aquele passarinho estridente, assopre sua escaleta, aquela flautinha que doía o tímpano, de tão aguda. Dê gargalhadas, toque seu violão daquele jeito rasqueado. De vez em quando, dá uma olhadinha aqui pra baixo, e nos aconselhe “a não nos esquecermos dos pobres”. Ah, e pede a Deus por nós!
Até mais, Frei Chico. Fica com Deus. Um abraço a todo mundo aí!