Em Mc 5,1-20, Jesus vai em missão para a região de Gedara, na Decápole, local considerado dos pagãos, os impuros e incrédulos. O fato de o possuído pela força do mal, chamada de demônio, prostrar-se diante de Jesus significa que Ele é superior ao espírito impuro, o mal. O demônio é um vencido de guerra.
(Mc 5,1-20)
Frei Jacir de Freitas Faria [1]
O texto sobre o qual vamos refletir é Mc 5,1-20. Trata-se do encontro de Jesus com um homem possuído pelo espírito impuro, que vivia num cemitério no meio dos túmulos, ferindo-se com pedras, e ninguém conseguia dominá-lo. A cena é digna de um filme de terror. O endemoninhado tem nome. Ele se chama legião e mora na região dos gerasenos, na Decápole. Jesus age como exorcista, ao expulsar cerca de dois mil demônios, os quais entram numa manada de porcos e se atiram no mar. Na sequência, os pagãos pedem a Jesus que vá embora da região. O homem liberto, contrariamente, pede para se tornar discípulo Dele. Diante dessa cena, perguntemos pelos significados das imagens que aparecem: homem que rasga as roupas, manada de porcos fugindo e legião de demônios? Por que inofensivos porcos aparecem na narrativa? Que relação existe entre o nome do demônio com o império romano?
O evangelho de Marcos narra que as ações missionárias de Jesus começam pela casa, acontecem na sinagoga e, na sequência, no mar, no deserto, na região dos pagãos até chegar em Jerusalém. Marcos é, portanto, o evangelho da casa, do caminho e do enfretamento dos poderes constituídos.
Em Mc 5,1-20, Jesus vai em missão para a região de Gedara, na Decápole, local considerado dos pagãos, os impuros e incrédulos. O fato de o possuído pela força do mal, chamada de demônio, prostrar-se diante de Jesus significa que Ele é superior ao espírito impuro, o mal. O demônio é um vencido de guerra.
Em Mc 1,21-28, a primeira atividade de Jesus em Israel foi a de confrontar-se com um possuído pelo Demônio, um espírito impuro que estava na sinagoga, lugar de oposição a Jesus. Agora, esse espírito impuro está também na terra dos pagãos, os gentios que se opõem a Jesus. O demônio esconjura Jesus (v.7). No evangelho de Marcos, demônio, tradução grega do substantivo hebraico, Satanás tem rosto humano (1,13); está na sinagoga (1,21-28); observa, acusa Jesus (2,6-12; 2,15-28, 3,22); está nos fariseus e nos herodianos que decidem matar Jesus; está no mar (4,35-41). Já em Mc 5,1-20, o demônio é um espírito impuro; vem do mundo da morte (túmulos); vive nos sepulcros; age dia e noite; é como uma fera que ninguém pode dominar; solta urros ameaçadores; tem instinto de morte; espalha medo, morte e terror ao seu redor e faz da vida um trapo humano coberto de chagas. Em outras passagens do evangelho de Marcos, o demônio vive no deserto com o nome de Azazel, mas também nos montes, em terras distantes ou no mar. Vale ressaltar que a figura do demônio nos evangelhos não é a mesma do capeta criado pela Igreja para impor medo, na Idade Média.
O nome de legião dado aos demônios de Mc 5 é uma referência às tropas romanas que, aos milhares, andavam soltas, sem nenhum controle e agindo com violência. As legiões romanas eram formadas de seis mil soldados.[2] O fato de Jesus perguntar pelo nome do espírito impuro faz parte do ritual de exorcismo para demonstrar o poder sobre algo.
Os demônios vêm de terras impuras, como Roma, e vivem fora da Palestina, na região da Decápole. Porcos e romanos apresentam correlação. Ambos vivem em ambientes impuros. O mar, no tempo de Jesus, é o lugar propício para o porco, pois ali residiam as potências do abismo, as forças do mal, sobre as quais Jesus também tem poder. Assim como as tropas romanas chegam aos milhares de terras impuras, uma manada de porcos possuída de demônios chega ao mar. Estamos diante de uma linguagem apocalíptica, que espera vencer o mal. Gedara estava distante muitos quilômetros do mar. Era impossível que os porcos corressem tanto tempo.
Os pagãos pedem a Jesus que se afaste de seu território. Trata-se de uma ironia. Os pagãos não querem conviver com a novidade da restauração da vida trazida por Jesus. Os espíritos impuros não querem sair da região e os habitantes pedem a Jesus que saia. Antes, a ameaça era do possesso, agora, é de Jesus. Eles preferem os romanos, o poder do mal, que a Boa-Nova trazida por Jesus. Impuros pedem que o puro se afaste. A ação de Jesus não os levou à fé. A libertação de uma pessoa questiona o sistema que as aprisiona. Além disso, a ação de Jesus mexe com a economia local, a criação de porcos.
A conclusão dos fatos tem seu ápice na frase dos ex-endemoninhado: “Deixe-me entrar na barca e seguir-te?” Temos aí outra ironia. O gentio, que esconjurava Jesus, pede para ser seu discípulo. Jesus diz: ‘Volta para a tua casa’, isto é, seja missionário entre os gentios! Você já está preparado, você passou pelo processo de mudança de vida, de desalienação, não vive mais com os mortos e atrelado ao mal. O primeiro missionário para Marcos é um gentio e não um judeu. Ele passa a proclamar a misericórdia que o Senhor fez por ele. Conhecer Deus passa pela experiência da misericórdia e do contato com o Jesus histórico. A separação não está entre judeus e gentios (pagãos), mas entre santidade (vida) e impureza (morte).
Para nós hoje, esse evangelho questiona o nosso modo de viver a fé e a divisão entre católicos e cristãos. O ultraconservadorismo católico, ancorado na máxima do puro e impuro, tem ganhado força no meio de nós. A Igreja em saída, proposta pelo Papa Francisco, recebe ataques constantemente. Muitos católicos preferem a falsa proteção da barca que conserva, que enfrentar os perigos do mar de mentiras e demônios que andam soltos pregando a divisão em meio aos túmulos dos que não se dão por vencidos. A legião romana continua viva. Há outros possessos que não querem vencer a alienação religiosa. A barca da Igreja não é um lugar de conservar o que já foi resposta a outros tempos. Os porcos já estão no mar de lamas. É preciso atirar ao mar o que desune e seguir em frente na busca da Paz e do Bem para todos.
[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos.
[2]SOARES, Sebastião Armando Gameleira; JÚNIOR, João Luiz Correia; OLIVA, José Raimundo, Marcos (Comentário Bíblico Latinoamericano), São Paulo/Aparecida: Fonte Editorial/Sinodal, 2013, p.193.