Ao iniciarmos o tempo quaresmal, ouviremos cotidianamente a palavra ‘conversão’, a liturgia como um todo repetirá a exortação a não recebermos a graça de Deus em vão (2Cor 6,1).
Frei Oton da Silva Araújo Júnior, ofm
Ao iniciarmos o tempo quaresmal, ouviremos cotidianamente a palavra ‘conversão’, a liturgia como um todo repetirá a exortação a não recebermos a graça de Deus em vão (2Cor 6,1). Elementos como a esmola, a oração e o jejum, somados à cor roxa nas celebrações ajudarão a compor este cenário de sobriedade e reflexão, em direção à Páscoa do Senhor.
Para a fé dos cristãos, a conversão não é um adereço, mas um elemento fundamental: “Convertemo-nos a Deus crendo. Cremos em Deus convertendo-nos. A conversão é um elemento integrante da fé como a fé o é da conversão” (BOROBIO, 2006, p. 276).
No entanto, não é raro a conversão ser entendida como um detalhe na vida: oração para quem não rezava, frequentação de igrejas para quem não tinha este costume, atos religiosos para quem não os tinha…mas sem necessariamente uma mudança real e sincera na maneira de viver.
Joseph Ratzinger, muitos anos antes de ser eleito Papa, assim refletia: “A fé é impossível sem essa conversão da existência, sem essa ruptura com a tendência natural. Sim, a fé é a conversão, na qual o homem descobre estar seguindo uma ilusão ao se comprometer apenas com o palpável e sensível. E aqui está a razão mais profunda por que a fé não é demonstrável: é uma volta, uma reviravolta do ser, e somente quem se volta, recebe-a. E, porque nossa tendência não cessa de arrastar-nos para outro rumo, a fé permanece sempre nova em seu aspecto de conversão ou volta, e somente através de uma conversão longa como a vida é que podemos ter consciência do que vem a ser “eu creio” (RATZINGER, 1965, p. 22).
Na história do cristianismo, há muitos relatos de conversão de pessoas que de fato mudaram radicalmente seus rumos após longo e doloroso processo, como podemos lembrar da experiência de Paulo de Tarso, Agostinho de Hipona, Francisco de Assis, Edith Stein e tantos outros. Nem sempre a conversão indicará a passagem do péssimo para o excelente, do crápula ao santo, mas significará também a passagem do bom ao ótimo, um plus na existência, uma qualificação no modo de ser e agir. Muitas pessoas após se converterem mudaram a residência geográfica, tiveram outros tipos de convivência e de maneiras de ver e interpretar a vida à sua volta.
À pessoa convertida será pedida uma mudança integral de vida. Não se trata de cumprir meramente atos religiosos, evitar isso ou aquilo, mas toda a sua existência passará a ser redefinida com base numa experiência de fé, desde os níveis familiares até os econômicos. Nos tempos atuais da Igreja, devemos pensar a conversão em chave espiritual, pastoral e ecológica, como exorta o Documento de Aparecida: “Em nossa Igreja devemos oferecer a todos os nossos fiéis um encontro pessoal com Jesus Cristo, uma experiência religiosa profunda e intensa, um anúncio querigmático e o testemunho pessoal dos evangelizadores, que leve a uma conversão pessoal e a uma mudança de vida integral” (DAp 226 a).
O Papa Francisco ressalta: “sabemos que Deus deseja a felicidade dos seus filhos também nesta terra, embora estejam chamados à plenitude eterna (…). Por isso, a conversão cristã exige rever especialmente tudo o que diz respeito à ordem social e consecução do bem comum” (Evangelii Gaudium, n. 182).
O Texto-Base da Campanha da Fraternidade de 2024 nos recorda de que esta é Campanha da Fraternidade é, a cada ano, uma iniciativa concreta para realizarmos ações que testemunhem um profundo arrependimento e uma verdadeira conversão, em âmbito pessoal, comunitário, eclesial e social. Pois, “a Quaresma é o tempo de sacrifício e penitência, mas é também um tempo de comunhão e solidariedade cada um dos homens, na verdade, é chamado a compartilhar realmente os sofrimentos e as desventuras do todos os demais. Assim, a esmola e o dom de si mesmo não devem ser atos isolados e ocasionais, mas sim a expressão de união fraterna entre todos” (introdução).
Na Mensagem para a quaresma de 2024, Papa Francisco exorta: “É tempo de agir e, na Quaresma, agir é também parar: parar em oração, para acolher a Palavra de Deus, e parar como o Samaritano em presença do irmão ferido. O amor de Deus e o do próximo formam um único amor. Não ter outros deuses é parar na presença de Deus, junto da carne do próximo”.
“Eis o tempo de conversão” cantaremos de cor nas igrejas. Aproveitemos então este período tão propício de nossa fé para revisitar nossa relação com o Senhor Deus e nosso compromisso em favor da vida, a fim de tornar o Evangelho uma Boa Notícia para todos.
Durante as sextas-feiras da quaresma, vamos refletir sobre as diferentes dimensões a que a conversão nos convida, e que a Igreja tem insistido em nos apresentar, alargando o ser cristão para além de pequenos gestos religiosos ou de mera “caridade por receita”, destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência (Evangelii Gaudium, n. 180). Longe de nós querer esgotar este tema tão rico que é a conversão. Apenas damos algumas intuições a fim de suscitar nossas reflexões.
Com a Igreja do Brasil, rezamos:
“Deus Pai,
vós criastes todos os seres humanos
com a mesma dignidade.
Vós os resgatastes pela vida,
morte e ressurreição do vosso Filho, Jesus Cristo,
e os tornastes filhos e filhas, santificados no Espírito.
Ajudai-nos, nesta Quaresma,
a compreender o valor da amizade social
e a viver a beleza da fraternidade humana aberta a todos,
para além dos nossos gostos, afetos e preferências,
num caminho de verdadeira penitência e conversão”.
(Trecho da oração da Campanha da Fraternidade de 2024)
Referências
BOROBIO, Dionisio, El Sacramento de la Reconciliación Penitencial, ed. Sigueme, 2006.
CELAM, Documento de Aparecida, 2007.
CNBB, Texto-Base da Campanha da Fraternidade de 2024.
FRANCISCO, Evangelii Gaudium, 2013.
RATZINGER Joseph, Introduzione al Cristianesimo, Queriniana, 1965.
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