Estamos em festa. Nosso irmão mais velho hoje, 02 de abril, sopra sua centésima velinha.
Frei Oton da Silva Araújo Júnior, ofm
Estamos em festa. Nosso irmão mais velho hoje, 02 de abril, sopra sua centésima velinha. Frei Raul passou a vida evangelizando através da arte, em suas obras na madeira, realçando a beleza de Deus na história do Povo, nas ações de Jesus, e na vida e missão de Francisco de Assis.
Raul Ribeiro sempre foi um homem simples, de fino trato, simpático e de olhar atento para as belezas que Deus lhe apresentava. É um contemplativo, reparador da natureza, amante dos animais – com os quais se comunica e é respondido -, de humor leve, ansioso, detalhista, um mestre disposto a ensinar quem quisesse aprender a técnica que ele mesmo tinha inventado: um tipo específico de marchetaria.
Muitos de nós tivemos a grata satisfação de conviver com Frei Raul nas casas de formação. Uma presença discreta, amigável, mas que figurava aquele frade que a gente “queria ser quando crescesse”. Em São João del-Rei, no postulantado, com o avental forrado de pó, em sua marcenaria, quando chegava a hora da missa, ele espanava apressado o corpo, lavava as mãos e o rosto e já vinha com túnica e estola para celebrar o mesmo Mistério que se deixa tocar! Deus estava ali conosco!
Frei Raul é um mineiro do interior e alguns causos faziam a alegria dos formandos, como ao perguntar se alguém já tinha usado drogas. Vendo o grupo desconcertado, ele prosseguia: “eu já. Fumei por muitos anos” – e contava como tinha sido difícil abandonar este vício. Como na vez em que ele resolveu jogar o maço de cigarros pela janela do segundo andar do seminário em Santos Dumont, e este foi cair dentro de uma piteira, cheia de espinhos. À noite, na chuva, teve que fazer grande esforço para recuperar o maço de cigarros. Não foi daquela vez que se livrava do vício!
Contava de um amor na infância, que deixara para seguir para as terras gaúchas, aos treze anos de idade.
De suas obras na madeira, fora a beleza artística e sua inspiração primeira na Palavra de Deus e na vida de Francisco de Assis, sempre chamaram a atenção os detalhes de alguns episódios. Em muitos quadros, há um cachorrinho atento à pregação de Jesus; na cura da sogra de Pedro, debaixo da cama há um par de chinelos e um penico; na pregação de Jesus para grande multidão há um rapaz com a cabeça voltada para a direção contrária, destacando-se de todo o grupo.
Mas há também fatos curiosos relacionados à recepção de sua obra. Como no pedido de uma paroquiana da cidade de São Vicente de Minas-MG. Feito o sacrário, semelhante ao da Igreja São Miguel e Almas, em Santos Dumont, anos depois Frei Raul veio reencontrá-lo na residência paroquial dos frades em São João del-Rei. A explicação para a devolução da obra se dera pela estranheza das pessoas pelo modo como o frade retratava Jesus e seus discípulos: “Em vez de representá-los com a túnica oriental típica, fê-los vestidos com ternos e gravatas, à maneira ocidental, o que desagradou a pessoa que havia encomendado o sacrário, que o devolveu aos frades de São João del-Rei”.
Certa feita, ao assistir ao DVD produzido em sua homenagem, o artista admitia: “esses desenhos são como os de uma criança: a cabeça é desproporcional ao corpo, as mãos são grandes demais. Mas são bonitos!” – Dizia isso não com uma vaidade arrogante, mas como um admirador da própria obra, em saber que sua arte nada mais era do que um instrumento para Deus poder fazer chegar a sua mensagem até nós.
“A ingenuidade presente nos seus trabalhos tem a ver com o estilo adotado por ele nas formas dos seus personagens. Ele mesmo admite que essa foi uma escolha deliberada. Cedo ainda ele fez a opção por um estilo primitivo e ingênuo para as suas obras segundo suas próprias palavras. Nesse estilo não há um rigor nas proporções das diferentes partes do corpo dos personagens (…). Esse estilo provoca uma comunicação próxima de fácil alcance. Desperta tanto na criança quanto no adulto uma percepção imediata daquilo que se quer comunicar” (SATLER, 2007, p. 7).
Desapegado, chegou a pedir ao Ministro Provincial da época para não ter residência fixa em nenhuma fraternidade. Queria passar dois meses aqui, três meses lá, depois mudaria de novo, e por aí, vai. Mas sua solicitação não foi atendida.
Ansioso, era anedótico sua maneira de rezar: se as orações demorassem mais do que ele esperava, começava a bater o pé, girar o pé no chão, rodar o terço no dedo. Ao chegar à capela para o ofício, perguntava se era “Das Comunidades”. Se a resposta fosse positiva, dava meia volta para rezar conforme a Liturgia das Horas. Na mesa do refeitório, terminava de comer e começava a batucar com os talheres. Costumava afiar as facas de serra, deixando-as todas com corte liso. Aos garfos costumava alargar os dentes. Sempre coçando o nariz, e seu lenço tinha mil e uma utilidades!
Celebrar o centenário de Frei Raul é uma oportunidade para render graças ao Senhor Deus pela beleza de sua obra e pelas pessoas que se dedicam a realçá-la no mundo. É uma oportunidade de render graças a Deus pelas pessoas simples e interioranas, mas que têm uma profunda reverência pela presença de Deus no meio do seu povo. É uma oportunidade para revisitar a vida de Francisco de Assis e de seus seguidores, trazendo-o para o nosso contexto.
Em Divinópolis, de seu quarto, se ouvia um som de gaita. Ele que brincava de tocar flauta doce, como os dedos se contorceram pela artrite, começou a testar o som da gaita. Uma nota dentro, outra fora, a melodia ia surgindo: “alecrim, alegrim dourado, que nasceu no campo, sem ser semeado”. Nasceu no campo, por pura gratuidade divina, sem mão humana que pudesse se vangloriar. Dourado, como nos recordava o mestre Jesus: “Olhai como eles crescem; não trabalham nem fiam; E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles” (cf. Mt. 6, 28-29).
Louvado seja Deus pela vida, pelo talento e pela espiritualidade de Frei Raul Ribeiro de Mello, um centenário no meio de nós.
A seguir, reproduzimos a apresentação do livro sobre sua obra: “A pregação de Frei Raul: o frade que prega a Palavra de Deus na madeira” (Província Santa Cruz, 2007, p. 7-15)
Natural de Divisa Nova, naquela altura distrito do município de Cabo Verde, no sul de Minas Gerais, Frei Raul Ribeiro de Mello nasceu no dia 2 de abril de 1924, filho de José Ribeiro de Mello e de Elizeta Cândida Mello. Foi o quarto filho de uma família de nove irmãos. O pai, que trabalhava como agricultor para terceiros, mudou-se para Cabo Verde quando Frei Raul tinha dois anos de idade, para se dedicar a um pequeno comércio e oferecer melhores condições à sua família. Em Cabo Verde, Frei Raul estudou e morou com a sua família até os treze anos de idade, quando completou o terceiro ano primário na escola local.
O contato com os frades franciscanos aconteceu na mesma cidade de Cabo Verde, onde os frades eram responsáveis pela paróquia. No fim de 1937, o pároco Frei Bonifácio van Emmerik providenciou a conversa entre o pai de Frei Raul e o Comissário franciscano, Frei Serafim Lunter, para combinar o ingresso do filho no Seminário Franciscano em Taquari RS, no ano seguinte. Tudo acertado, no início de 1938, Frei Raul seguiu para o sul do Brasil com treze anos de idade, acompanhado de outro conterrâneo: Daniel Navarro. Seus quatorze anos de idade foram completados durante a viagem para o Rio Grande do Sul. Só veio a reencontrar os pais aos 22 anos de idade, quando os mesmos já residiam em Belo Horizonte.
Um acontecimento logo na chegada ao seminário deu o tom da diferença cultural que o mineiro teve que enfrentar em terras gaúchas. Numa das primeiras refeições, foi-lhe servido chucrute. Diante do prato com cheiro estranho para a culinária e o nariz mineiros, começou a rir-se em meio ao silêncio que reinava durante a leitura no refeitório. Foi o suficiente para receber a primeira reprimenda, aplicada por Frei Teodardo Emonds. No grupo de cerca de cento e vinte seminaristas, havia três grupos distintos: os mineiros, uma minoria formada por quinze seminaristas, os gaúchos, de ascendência alemã e os gaúchos, de ascendência italiana, a maioria. Junte-se a eles a cultura holandesa dos frades formadores do seminário.
Vencidas as primeiras diferenças e o clima gaúcho, esta ora quente demais, ora frio demais para os mineiros, Frei Raul entrou no ritmo do seminário: os estudos, com forte acento no aprendizado de línguas (latim, grego, português, inglês, francês e um pouco de alemão), as amizades, o esporte, as representações teatrais, as férias no próprio seminário ou na colônia de imigrantes.
Durante a estadia no Seminário em Taquari, Frei Raul deu os seus primeiros passos no auto-aprendizado da técnica de marchetaria, escultura e desenho. Andava com um canivete no bolso e estava sempre pronto para dar forma a um ou outro pedaço de madeira que lhe chamasse a atenção. Havia no seminário um grande torno manual que, quando em funcionamento, fazia vibrar o edifício próximo, para desespero de um dos frades professores que nele tinha o seu escritório. Nesse torno, ele exercitou alguns trabalhos em madeira. Quanto à marchetaria, conheceu-a num antigo piano do seminário e numa caixa de madeira de uma empresa gaúcha. A primeira tentativa de executar um trabalho com essa técnica foi a incrustação de dois lírios num pedestal que ele mesmo fizera para servir de suporte para uma imagem.
No dia 1 de fevereiro de 1947, ingressou, junto com oito companheiros, no noviciado franciscano em Daltro Filho – RS. Do grupo inicial de oito noviços, permaneceram na Ordem apenas Frei Raul e Frei Eugênio Schmidt. No dia 2 de fevereiro de 1948, professou os primeiros votos e permaneceu em Daltro Filho até o fim de 1949, para cursar Filosofia.
Durante esse tempo, a sua curiosidade e a sua natural habilidade para o trabalho em madeira foram postas de lado em decorrência de uma mentalidade presente na altura: a dignidade do sacerdócio não era compatível com qualquer forma de trabalho manual. Não havia meio de conciliar o exercício do sacerdócio e o trabalho manual de esculpir e cortar a madeira, algo reservado aos frades sem vocação sacerdotal. A resposta a esse falso dilema Frei Raul encontrou-a no Testamento do próprio Francisco de Assis, que afirmou: “eu trabalhava com as minhas mãos e quero que todos os outros irmãos se ocupem num trabalho honesto. E os que não sabem o aprendam, não por interesse de receber o salário do trabalho, mas por causa do bom exemplo e para afastar a ociosidade.”
Concluído o curso de Filosofia, Frei Raul foi transferido para o Convento Santo Antônio, em Divinópolis-MG, no início de 1950, para cursar Teologia. Permaneceu em Divinópolis até o fim de 1957. No dia 2 de fevereiro de 1951, professou votos solenes na Ordem Franciscana, tendo sido ordenado sacerdote no dia 4 de agosto de 1957, por Dom Geraldo M. Penido Morais, Bispo Auxiliar de Belo Horizonte. A sua ordenação sacerdotal foi adiada por dois anos em decorrência de um estresse que vinha sendo acumulado há alguns anos. Nesse período, chegou a apresentar- se como candidato para ir em missão à Indonésia, mas foi desaconselhado devido ao seu estado de saúde.
Ordenado sacerdote, Frei Raul recebe a sua primeira nomeação: professor no Juvenato Franciscano Nossa Senhora Aparecida, em Muzambinho-MG, onde, junto com outros confrades, era responsável por cerca de quarenta adolescentes. Frei Raul permaneceu em Muzambinho até o fim de 1962, ano em que o Juvenato foi fechado. Desse período em Muzambinho resultou um dos primeiros trabalhos em marchetaria de Frei Raul: um encosto de cadeira em madeira decorado com aves e peixes, que se encontra, atualmente, no Seminário Seráfico Santo Antônio, em Santos Dumont-MG.
De Muzambinho, Frei Raul foi transferido para Betim-MG, onde também havia um pré-seminário e este, como o de Muzambinho, foi fechado dois anos após sua chegada em 1963. Durante a sua estadia em Betim, Frei Raul fez um curso de dois meses em artes industriais, preparando-se para o oficio que iria assumir nos anos seguintes, em Santos Dumont-MG.
Em Santos Dumont, a maturidade artística
No início de 1964, Frei Raul foi transferido para o Seminário Seráfico Santo Antônio, em Santos Dumont-MG, e aí permaneceu durante quatorze anos. No início da década de 70, o seminário foi transformado em ginásio, orientado para trabalhos manuais, e aberto aos jovens da região, a quem Frei Raul ensinava as artes em madeira que ele já dominava. Em 1965, três obras suas, em marchetaria, foram exibidas numa exposição em Belo Horizonte, entre elas um quadro circular com o tema da última ceia.
Foi em Santos Dumont que Frei Raul recebeu de Frei Edmar Polman, em 1972, a sua primeira encomenda: um altar para a igreja dedicada a Santo Antônio, no bairro do mesmo nome, vizinha ao seminário. Sobre as grossas pranchas de madeira adquiridas por Frei Edmar, Frei Raul entalhou a cena da multiplicação dos pães, a pregação de Santo Antônio aos peixes e São Francisco com o lobo de Gúbio. Os traços não são, ainda, aqueles que irão caracterizar a obra de Frei Raul a partir do seu próximo trabalho.
Pouco tempo depois, em 1973, Frei Raul concebeu aquele que é, certamente, um dos conjuntos mais importantes do seu trabalho artístico: o conjunto da Igreja matriz São Miguel e Almas, em Santos Dumont. Durante as obras de reforma da igreja matriz, Frei Raul recebeu de Frei Cristiano Teunissen a encomenda de um novo sacrário para a igreja, uma vez que a reserva eucarística estava sendo guardada em um simples cofre de ferro. Incentivado por Frei Edmar Polman, Frei Raul iniciou o sacrário em marchetaria. Antes da finalização do mesmo, Frei Cristiano Teunissen, percebendo a riqueza artística do sacrário, encomendou a Frei Raul o conjunto completo para o presbitério da igreja matriz: altar, pia batismal e coluna para sustentar o sacrário.
Com a nova empreitada, Frei Raul decidiu diversificar o material e a técnica. Em Congonhas do Campo, comprou pedra-sabão, excelente para trabalho em talha, que foi utilizada no sacrário e na pia batismal, juntamente com um tampo de cobre. A peroba do campo foi a madeira utilizada nas demais peças. O gosto pela talha em pedra-sabão levou-o a repetir a mesma técnica em obras na Igreja Santo Antônio, bairro Funcionários, em Belo Horizonte, e na Igreja São Francisco de Assis, bairro Angola, em Betim-MG.
Concluído o conjunto do presbitério da Igreja matriz São Miguel e Almas, Frei Raul pôde exclamar: “Está aqui diante de mim o melhor sermão que eu já fiz: a Palavra de Deus pregada na madeira e, por isso mesmo, mais duradoura. O que se fala soa e desaparece rapidamente”.
O grande sermão da Igreja São Miguel e Almas
Pelo seu ineditismo, pela unidade do conjunto, pela mistura de técnicas e materiais e pela temática abordada com maestria, o conjunto de obras da Igreja matriz São Miguel e Almas, em Santos Dumont, merece um comentário à parte.
A talha que circula o altar percorre as grandes etapas da história da salvação. A história principia, na parte posterior do altar, com a criação, seguida pela queda do homem e da mulher e a consequente expulsão do paraíso. Seguem as cenas relacionadas com os patriarcas, o êxodo, a monarquia e o profetismo. O recurso aos balões, como nas histórias em quadrinhos, serve para destacar e tornar mais clara a mensagem que se quer transmitir, como a profecia de Isaías 9,1s (“O povo que andava nas trevas viu uma grande luz”) ou a pregação de João Batista em Jo 1,26 (“Eu batizo com água, mas no meio de vós está quem não conheceis”). No canto do altar, fazendo a junção entre a primeira e a segunda aliança, está o texto latino de Lucas 2,1-7 (“Naqueles dias, o imperador Augusto publicou um decreto, ordenando o recenseamento em todo o império…”).
Na parte frontal do altar, dez quadros retratando a vida de Jesus, do nascimento à ressurreição, nos fornecem uma panorâmica da sua missão redentora. Diferente das outras três laterais do altar, que se sucedem de forma contínua, uma se sobrepondo à outra, esta parte frontal possui quadros bem delimitados. A técnica de talha contínua em madeira não se repetirá em obras posteriores de Frei Raul.
Finalmente, a conclusão da história da salvação é representada na última talha lateral, dedicada ao tempo da Igreja, ela mesma sacramento da salvação já presente no meio da humanidade. No início da talha, está representado um dos grandes personagens da Igreja moderna: o Papa João XXIII, junto com a sua encíclica “Paz na terra”. João XXIII, o papa do Concílio Ecumênico Vaticano II, se faz presente, indiretamente, de uma outra forma: através da catequese de inspiração bíblica, um dos grandes frutos do Concilio Vaticano II, presente na obra de Frei Raul. Logo a seguir, aparece representada a Igreja matriz São Miguel e Almas, que abriga a Igreja viva, o novo Povo de Deus, onde a salvação acontece de fato. Frei Cristiano Teunissen, o pároco, aparece representado na pequena janela da casa paroquial à esquerda da igreja matriz. O novo Povo de Deus é recebido no Reino de Deus por Jesus ressuscitado e por sua mãe, com as palavras de Mateus 25,34: “Vinde, benditos do meu pai”. As portas do paraíso, que se encontram fechadas na talha posterior, encontram-se aqui totalmente abertas. A citação do Apocalipse 21,1-5 (“Vi então um novo céu e uma nova terra”) encerra a pregação sobre a história da salvação.
Sustentando o altar, há a coluna onde são retratados em lados opostos: Caim matando Abel e o bom samaritano; a morte de Jesus na cruz e Jesus aparecendo a Tomé. A escolha e a disposição dessas cenas remetem imediatamente ao primeiro salmo da Bíblia, que retrata os dois caminhos: o caminho da morte e o caminho da vida. Em oposição ao caminho da morte (morte de Jesus e morte de Abel), está presente o caminho da vida (Jesus ressuscitado e o bom samaritano).
Na coluna que sustenta o sacrário, estão presentes quatro cenas do primeiro testamento, todas elas relacionadas com o tema do sacrifício-aliança: o holocausto oferecido por Noé após o dilúvio (Gn 8,21s), o sacrifício de Isaac (Gn 22,12.16), a páscoa no Egito (Ex 12,3s) e o anúncio da nova aliança pelo profeta Jeremias (Jr 31,33s). Entre o sacrário e a coluna, encontra-se a roda em pedra-sabão, com a cena da multiplicação dos pães, prefiguração da eucaristia.
Finalmente, na coluna em madeira que sustenta a pia batismal, estão representadas cenas biblicas relacionadas com o batismo: a cura de Naaman (2Rs 5,14), o batismo de Jesus no rio Jordão (Mt 3,16), o envio dos apóstolos e a missão de batizar (Lc 16,15s) e o batismo do eunuco etíope por Filipe (At 8,36). A pia batismal em pedra-sabão, que encima essa coluna, tem entalhadas cenas alusivas aos textos bíblicos de Mc 10,38 (Cristo, o novo Moisés e libertador), Ef 5,26s (Cristo, esposo da Igreja), ao Exultet da Vigília Pascal (Cristo, luz que resplandece nas trevas) e um texto de Santo Agostinho relativo ao batismo (“Quando os exorcismos foram pronunciados sobre vós, fostes moídos. Quando a água batismal correu, tornastes-vos massa. E quando o fogo do Espírito Santo vos tocou, fostes cozidos”).
Ao conjunto original, feito ao longo do ano de 1974, foram acrescentadas as duas estantes da palavra, em marchetaria, encomendadas por Frei Hilário Meeks, no ano de 1989, com figuras estilizadas do Cristo Pantocrator e da Imaculada Conceição.
No dia da consagração do altar, do sacrário e da pia batismal, no dia 9 de janeiro de 1975, o mesmo bispo que o ordenara, Dom Geraldo M. Penido Morais, afirmou: “Aqui está uma obra que deveria ser aproveitada para a catequese, que as professoras de catecismo deveriam aqui trazer as crianças para aprenderem a mensagem evangélica desta obra”.
As obras se multiplicam
O conjunto da Igreja São Miguel e Almas serviu para tornar público o grande artista oculto debaixo do hábito franciscano. Em 1976, Frei Raul executou o conjunto de altar e estantes da palavra em madeira canela-parda para a Igreja Santo Antônio, no bairro Funcionários, em Belo Horizonte.
A pedido de Frei Luciano Brod, em 1977, levou a cabo o grande conjunto de talhas em mogno para a Igreja São Francisco de Assis, no bairro Angola, em Betim-MG. Além das talhas para o altar, estante da palavra e pia batismal, foram feitas 45 talhas com cenas da vida de São Francisco, retiradas da biografia do santo, escrita por Tomás de Celano. Sucessivas intervenções no interior da igreja descaracterizaram a simplicidade e beleza que emolduravam de maneira única o conjunto das talhas. Numa dessas intervenções, as talhas chegaram mesmo a ser retiradas do altar, tendo sido abandonadas no salão da igreja. Posteriormente, as talhas foram restauradas e colocadas de volta ao seu lugar original.
Quando regressou a Muzambinho, em 1983, desta vez para morar na casa paroquial, Frei Raul executou as talhas que compõem o altar da igreja matriz, feitas em madeira jequitibá-rosa. Posteriormente, foram trabalhadas talhas em menor número para o altar na Igreja Santo Antônio, em Salinas-MG e na Igreja São Januário, em Ubá-MG. No ano de 1995, foram executadas as talhas para o altar da Igreja Nossa Senhora da Penha, em Barbacena-MG.
Um fato curioso desse período relaciona-se com um sacrário em marchetaria feito por Frei Raul, a pedido de uma paroquiana da cidade de São Vicente de Minas-MG. Feito o sacrário, semelhante ao da Igreja São Miguel e Almas, em Santos Dumont, anos depois Frei Raul veio reencontrá-lo na residência paroquial dos frades em São João del-Rei. A explicação para o fato de o sacrário encontrar-se em lugar diferente para onde o mesmo fora encomendado relaciona-se com a forma como Frei Raul representou os discípulos, uma característica sua, presente em toda a sua obra. Em vez de representá-los com a túnica oriental típica, fê-los vestidos com ternos e gravatas, à maneira ocidental, o que desagradou a pessoa que havia encomendado o sacrário, que o devolveu aos frades de São João del-Rei.
A obra-prima em marchetaria
Frei Raul morou em São João del-Rei em três períodos distintos: de 1980 a 1982, durante a fase de encerramento do Colégio Santo Antônio; de 1986 a 1991, no Postulantado franciscano, e uma terceira e última breve estadia no mesmo Postulantado, no ano de 2001. Foi durante a sua segunda estadia em São João del-Rei que Frei Raul concebeu e executou o primeiro grande conjunto de obra em marchetaria, que hoje forma o altar da capela do Postulantado da Cruz de São Damião.
A marchetaria, que consiste em peças de madeira a que se aplicam ou em que se incrustam diferentes pedaços de madeira, marfim, metal, madrepérola, tartaruga, de cores variadas, formando um desenho ou mosaico, é usada normalmente para decorar, com desenhos geométricos ou florais, móveis e caixas em madeira. Frei Raul faz uso dessa técnica para contar uma história visual, com a riqueza de cores e detalhes empregados por ele, o que torna o seu trabalho único.
A base utilizada para os seus quadros, nesta técnica, é feita de pranchas de uma madeira naturalmente escura, semelhante ao ébano. Conforme o próprio Frei Raul afirma, ele desconhece qual seria esse tipo de madeira. As pranchas foram obtidas quando Frei Raul morava em Santos Dumont e alguns pedaços da madeira o acompanham até hoje.
A partir do desenho por ele elaborado, Frei Raul começa recortando as peças separadamente, em folhas de madeira de 3 a 4 milímetros de espessura. Conhecedor de cada madeira, com suas texturas e cores próprias, Frei Raul sabe qual madeira utilizar para cada parte do desenho que ele deseja compor. Um detalhe importante relaciona-se com a direção das fibras: as peças a serem incrustadas na base devem ter as fibras na mesma direção, a não ser que se queira, propositadamente, um efeito diferente. Recortada a peça com ferramentas que ele mesmo fabrica, a mesma é utilizada como molde para a base onde ela vai ser aplicada. Cava alguns milímetros na base e, com a ajuda de cola, encaixa o desenho recortado na base. Por fim, com o auxílio de uma lâmina, raspa e desbasta a parte do encaixe que ficou acima do plano da base.
Peça após peça, detalhe após detalhe, os quadros vão ganhando forma e contanto histórias que o artista quer divulgar com a sua arte.
Com a paciência necessária a essa arte, foram feitos os 38 quadros que compõem o altar do Postulantado franciscano em São João del-Rei e os 30 quadros do altar no Provincialado dos Frades Franciscanos, no bairro Carlos Prates, em Belo Horizonte, sua última grande obra em marchetaria, feita ao longo do ano de 1994, quando Frei Raul residia em Ribeirão das Neves, município da região metropolitana de Belo Horizonte. É em Carlos Prates, Belo Horizonte que, segundo o próprio Frei Raul, encontra-se o seu melhor trabalho nessa técnica: o quadro com o desenho de São Francisco de Assis, na base frontal esquerda do altar.
O artista revelado em sua obra
A pregação, juntamente com a itinerância e a pobreza advinda dessa forma de vida, constituem um dos elementos fundamentais da identidade do movimento iniciado por Francisco de Assis há oitocentos anos. A pregação feita pelos frades nas praças das vilas por onde passavam era, nos primórdios, simples, numa linguagem acessível ao público ouvinte, própria de frades iletrados que compunham o núcleo dos primeiros frades do movimento franciscano.
Frei Raul, com sua obra, retoma de maneira única essa importante atividade dos seguidores de Francisco de Assis. Ao seu modo, ele repropõe em sua obra as grandes etapas, personagens e temas da história da salvação cristã. E o faz com a mesma paciência e cuidado com que eram preparados os sermões num tempo em que, na Igreja e na sociedade onde ela se inseria, a palavra falada e a pregação desempenhavam um importante papel. Por isso, as pregações eram objeto de cuidadoso preparo, feitas num ambiente de jejum e oração, para que houvesse a mais estreita relação entre aquilo que era pregado e a busca evangélica de quem pregava. Essa continuidade e unidade entre a pregação e o autor estão presentes na obra de Frei Raul, pois ele consegue transpor para a sua obra um pouco da sua própria personalidade: a mansidão, o bom humor e a cortesia de um autêntico seguidor de Francisco de Assis.
A mansidão, associada à virtude da paciência, mostram-se já presentes no cuidado com as ferramentas de trabalho que ele mesmo confecciona, com a concepção dos desenhos, com o trato e a seleção das madeiras apropriadas, com o cuidado em não desperdiçar os pequenos retalhos de madeira que sobram, à espera de que eles encontrem um fim apropriado em obras futuras.
A cortesia remete à amabilidade, à delicadeza no trato com as criaturas, sejam elas pessoas ou a própria madeira. A delicadeza na prática de Jesus de Nazaré é visível quando ele leva as pessoas a se curarem elas mesmas: “Vai, a tua fé te curou/salvou.” Francisco de Assis, numa delicadeza humana e cortesia próprias, numa noite em que um dos frades se levantou queixando-se da fome provocada por rigoroso jejum, acordou todos os demais frades e fê-los comer o pouco de pão disponível junto com o irmão que manifestava a sua fome, para que ele não se sentisse envergonhado diante dos demais. A delicadeza e a cortesia que se manifestam na personalidade de Frei Raul são transpostas para as suas obras por meio dos detalhes que nos remetem a um ambiente familiar presente em seus quadros: no cão que dorme tranquilo próximo ao seu dono, nas flores que enfeitam as casas e as paisagens, nas pequenas aves no céu, no olhar da mãe sobre o filho, nos rostos assustados na janela diante dos milagres de Jesus, nas casas retratadas como as moradias simples do interior de Minas Gerais.