“O clima continua a mudar; saqueiam-se os recursos; os conflitos e a crise econômica ameaçam os meios de subsistência de milhões de pessoas…”
Frei Oton da Silva Araújo Júnior, ofm –[email protected]
Equipe Interdisciplinar da CRB Nacional – Belo Horizonte, MG
“O clima continua a mudar; saqueiam-se os recursos; os conflitos e a crise econômica ameaçam os meios de subsistência de milhões de pessoas. Perante a crise, as comunidades rurais são as primeiras a ser atingidas, pois não dispõem de recursos para enfrentar a situação gerada pelas mudanças climáticas e pelas hostilidades, e assim são excluídas do acesso ao financiamento. Também os povos indígenas são vítimas de sofrimentos, privações e abusos. Contudo, o seu conhecimento sobre a gestão dos recursos naturais e a sua ligação com o meio ambiente podem ajudar a conservar a biodiversidade” (Francisco, 02.02.2024).
As queimadas e os efeitos no clima
As mudanças no clima não são mais hipóteses pessimistas, mas podem ser observadas e sentidas em nosso cotidiano. Nos últimos dois meses, as queimadas em biomas brasileiros, como Amazônia, Cerrado e Pantanal, têm ocorrido também em áreas de vegetação nativa primária, com alta biodiversidade, e não em áreas recentemente desmatadas. No Pantanal, 89% dos focos de incêndio foram em vegetação nativa, enquanto na Amazônia e no Cerrado, esses números foram de 53% e 67%, respectivamente.
As queimadas, historicamente associadas ao desmatamento, estão agravadas por mudanças climáticas, criando condições favoráveis para o uso do fogo. Em agosto de 2024, a Amazônia registrou o maior número de focos de queimadas para o mês desde 2010, com 38.266 incêndios, mais que o total dos primeiros oito meses de 2023. Mariana Napolitano, do WWF-Brasil, alerta que a condição da Amazônia está próxima de um ponto de não-retorno, o que poderia impactar seriamente o clima, a biodiversidade e a segurança alimentar, levando a problemas de mal nutrição em algumas regiões e obesidade em outras. Segundo a pesquisadora, “se o atual cenário de queimadas e desmatamento representa um risco para a saúde, especialmente de quem está mais perto das áreas de incêndios, e compromete a segurança alimentar das comunidades que ficam isoladas e dependem da pesca, o cenário futuro é talvez mais preocupante”, declara Mariana Napolitano (www.wwf.org.br, 06.09.2024).
Dentre as implicações desse quadro estão a insegurança alimentar, a perda de biodiversidade e a desigualdade social, pois os impactos das mudanças climáticas e da degradação da terra são distribuídos de forma desigual, afetando de maneira desproporcional as comunidades mais vulneráveis. Temos de incluir ainda que as condições climáticas mais favoráveis estão propiciando a proliferação de pragas e doenças, transmitidas por vetores, como a dengue e a malária (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, (IPCC), 2020).
O pesquisador climático Carlos Nobre, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) se diz espantado com o atual estado do Planeta: “Temos a maior temperatura que o planeta experimentou em 100 mil anos”. Sobre as atuais queimadas, que afetam boa parte do país, Nobre diz que entre 95% a 97% são causados pelo homem. A seca e as temperaturas elevadas estão diretamente relacionadas às mudanças climáticas. Isso ajuda o fogo a se propagar. Mas os incêndios são criminosos” (O Estado de S. Paulo, 12-09-2024).
Carlos Nobre aponta ainda que os biomas brasileiros, como o Pantanal, Amazônia, Cerrado e Caatinga, estão sob grande ameaça devido ao desmatamento e às mudanças climáticas. O Pantanal já perdeu 30% de sua área em 30 anos, e as queimadas e secas o afetam gravemente. A Amazônia pode perder mais de 50% até 2070 se o desmatamento continuar, comprometendo o clima global. O Cerrado também está sendo degradado, com a Caatinga avançando sobre ele, e regiões do norte da Bahia podem se tornar semidesérticas. Se não reduzirmos as emissões rapidamente, até 2100 a temperatura pode aumentar 2,5ºC, devastando esses biomas (O Estado de S. Paulo, 12-09-2024).
Reflexões eclesiais sobre as mudanças climáticas
Em 2015, ao publicar a Encíclica Laudato Si (LS), o Papa Francisco apresentou o primeiro texto de um Papa inteiramente voltado às questões socioambientais. Ao chamar o planeta de Casa Comum, Francisco rompe com todas as fronteiras e situações que podem desunir a humanidade para convocar todas as pessoas a um verdadeiro diálogo em favor desta Casa onde habitam toda humanidade e as demais criaturas de Deus.
Oito anos depois, o Papa publicou a Exortação Apostólica Laudate Deum (LD) (04.10.24). E se justificou: “com o passar do tempo, dou-me conta de que não estamos a reagir de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe, está-se desmoronando e talvez aproximando dum ponto de ruptura” (LD 2).
Laudato Si e a questão climática
Pinçar da Encíclica os trechos em que o Papa trata diretamente das mudanças climáticas seria um equívoco, afinal, como ele insiste ao longo de todo documento, “tudo está interligado” (n. 16,91,117,138,240). Isolar os temas e nos perguntar se ele tem, ou não, a ver com o clima seria não considerar a interconexão entre as diferentes realidades. Mas, didaticamente, faremos algumas escolhas, sem a pretensão de sermos completos.
Refazendo-se ao Patriarca Bartolomeu, Francisco repete que “um crime contra a natureza é um crime contra nós mesmos e um pecado contra Deus” (LS 8). Então, se tivermos de eleger uma palavra para dizer do que vem acontecendo na relação do ser humano com o planeta a palavra não é outra: pecado, que na Encíclica é entendido como ‘ruptura’ entre os seres, a terra e Deus (LS 66).
O primeiro capítulo da Laudato Si se intitula “O que está acontecendo com a nossa Casa”, e o Papa Francisco faz um breve elenco: Poluição e mudanças climáticas, a questão da água, perda de biodiversidade, deterioração da qualidade de vida humana e degradação social, desigualdade planetária, a fraqueza das reações, a diversidade de opiniões. Repare: as mudanças climáticas são as primeiras coisas que o Papa enumera.
Laudato Si enfatiza os efeitos nocivos da poluição, especialmente no ar, água e solo, afetando gravemente a saúde das populações mais pobres; discute a enorme produção de resíduos não biodegradáveis e critica a cultura do descarte, enfatizando a necessidade de um modelo de produção mais sustentável.
Ao considerar o clima como Bem Comum (LS 23), Francisco aponta para o aquecimento global e suas consequências, como o aumento do nível do mar e eventos climáticos extremos, destacando a responsabilidade humana em alterar estilos de vida. Menciona, ainda, que os mais vulneráveis, especialmente em países em desenvolvimento, são os mais afetados pelas mudanças climáticas.
No número 25, Francisco cita dois exemplos que valem a pena ser lembrados: os efeitos das mudanças climáticas nas aves e outros animais migratórios e a migração humana “em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental”. Somente em 2020 a ONU admitiu o termo “Refugiados climáticos”, para que pessoas em rota de fuga, justamente por causa do clima pudessem receber asilo em outros países. Francisco reconhecia essa necessidade cinco anos antes (“[essas populações] não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa”).
Sobre a migração de aves e animais, os estudos têm apontado para a problemática que é ter animais em outros habitats que não os originários, ocasionando doenças e outras epidemias relacionadas. “Espécies introduzidas podem trazer novos patógenos com elas, e a poluição química pode estressar os sistemas imunológicos dos organismos. As mudanças climáticas podem alterar os movimentos e habitats dos animais, trazendo novas espécies para o contato e permitindo que troquem patógenos” (O Globo, 11.05.2024).
Por fim, Francisco defende a redução urgente das emissões de gases poluentes e a adoção de energias renováveis, alertando que os esforços atuais são insuficientes. Defende ainda que a população vulnerável merece maior atenção: “É oportuno concentrar-se especialmente sobre as necessidades dos pobres, fracos e vulneráveis, num debate muitas vezes dominado pelos interesses mais poderosos. É preciso revigorar a consciência de que somos uma única família humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais que permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a globalização da indiferença” (LS 52).
Mesmo que fossem tomadas medidas imediatas para diminuir os efeitos das mudanças climáticas, os resultados ainda demorariam para serem percebidos, e “alguns países com escassos recursos precisarão de ajuda para se adaptar a efeitos que já estão a produzir-se e afetam as suas economias” (LS 170).
Francisco evoca o papel que os governantes têm a respeito das mudanças climáticas. “Para um político, assumir estas responsabilidades com os custos que implicam não corresponde à lógica eficientista e imediatista atual da economia e da política, mas, se ele tiver a coragem de o fazer, poderá novamente reconhecer a dignidade que Deus lhe deu como pessoa e deixará, depois da sua passagem por esta história, um testemunho de generosa responsabilidade” (LS 181).
Laudato Si não só abordou os dados que mostram a extensão e os efeitos das alterações climáticas, como também sublinhou a dimensão moral de cuidar da nossa Casa Comum. O Papa Francisco baseou sua análise na ecologia integral, apresentando as mudanças climáticas como um problema não apenas técnico ou científico, mas também profundamente humano.
A crise climática na Laudate Deum (LD)
No dia de São Francisco de Assis de 2023, o Papa Francisco publicou uma espécie de atualização da Laudato Si, focando especificamente na crise climática. Passados oito anos desde a Laudato Si, Francisco retoma o tema do clima, alertando para a dignidade da pessoa humana: “o nosso cuidado pelo outro e o nosso cuidado com a terra estão intimamente ligados. As alterações climáticas são um dos principais desafios que a sociedade e a comunidade global têm de enfrentar. Os efeitos das alterações climáticas recaem sobre as pessoas mais vulneráveis, tanto a nível nacional como mundial” (LD 3).
A crise climática global é inegável e se manifesta em eventos extremos, como secas e inundações, impulsionados principalmente por atividades humanas. Embora haja tentativas de minimizar sua gravidade, a aceleração do aquecimento global é evidente e resulta em danos irreversíveis, como o derretimento de glaciares e a elevação do nível do mar.
As emissões dos países ricos são desproporcionalmente altas em comparação com as dos mais pobres, e a transição para energias renováveis pode criar novos empregos. A correlação entre o aumento das emissões de gases de efeito estufa e as mudanças climáticas é amplamente aceita pela comunidade científica. Francisco faz questão de relembrar a influência do período a partir da Revolução Industrial no processo de mudança do clima. Porém, “infelizmente, a crise climática não é propriamente uma questão que interesse às grandes potências econômicas, preocupadas em obter o maior lucro ao menor custo e no mais curto espaço de tempo possíveis” (LD 13).
Todo o movimento de mudanças no clima deve levar a um olhar mais crítico com relação ao progresso, sempre ambivalente em suas forças. No caso da pandemia da Covid-19, esta “veio confirmar a estreita relação da vida humana com a dos outros seres vivos e com o ambiente, mostrando de modo particular que aquilo que acontece em qualquer parte do mundo tem repercussões sobre todo o planeta” (LD 18).
O Papa Francisco alerta que paradigma tecnocrático, mencionado na Laudato Si, representa uma visão distorcida da relação entre humanos e natureza, na qual a tecnologia é vista como fonte autossuficiente de progresso. Essa abordagem promove a ideia de crescimento infinito, ignorando a limitação dos recursos naturais e tratando a natureza como um mero recurso.
A tecnologia atual, como a inteligência artificial, concentra poder nas mãos de poucos, levantando preocupações éticas sobre seu uso. O aumento do poder humano não se traduz em avanço moral, pois muitas inovações foram usadas para causar destruição, como podemos lembrar da II Guerra Mundial.
É essencial repensar nossa relação com o poder e a natureza, reconhecendo que um ambiente saudável surge da interação equilibrada entre ambos. Dessa forma, cabe pensar na nossa relação com o ambiente vinculada diretamente ao sentido último de nossa vida na Terra: “Qual é o sentido da minha vida? Qual é o sentido da minha passagem por esta terra? Qual é, em última análise, o sentido do meu trabalho e do meu compromisso?” (LS 33).
A terceira parte da Laudate Deum é dedicada à fragilidade da política internacional. Francisco insiste na necessidade de fortalecer e redesenhar o multilateralismo frente aos desafios globais atuais. Cada geração deve avançar nas conquistas sociais, promovendo acordos multilaterais que assegurem o bem comum, sem que isso resulte em concentração de poder em elites.
As crises globais, como a financeira de 2007-2008 e a pandemia de Covid-19, mostraram que muitas vezes não são aproveitadas para promover mudanças necessárias. Em vez de resgatar o antigo multilateralismo, é preciso adaptá-lo à nova realidade global, reconhecendo o papel da sociedade civil em compensar as fraquezas da comunidade internacional.
A globalização deve favorecer intercâmbios culturais surgem de baixo para cima, permitindo que a voz dos cidadãos influencie o poder político e as decisões ambientais. A nova sensibilidade em relação aos mais vulneráveis deve ser central, priorizando a dignidade humana e a ética. Francisco se põe então a enumerar as diversas convenções dos países em torno da questão climática, mas sem alcançar os resultados almejados.
Hoje, diz o Papa, “podemos ainda afirmar que os acordos tiveram um baixo nível de implementação, porque não se estabeleceram adequados mecanismos de controle, revisão periódica e sanção das violações. Os princípios enunciados continuam a requerer caminhos eficazes e ágeis de realização prática” (LD 52).
Laudate Deum foi escrita com o objetivo de auxiliar na reflexão da COP-28, que aconteceu em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, em 2023. Esta Conferência seria uma oportunidade crucial para acelerar a transição energética e enfrentar os desafios da mudança climática. Apesar dos acordos anteriores, as emissões continuam a crescer, e a transição para energias limpas não avança na velocidade suficiente. A Conferência, segundo Francisco, deveria focar em compromissos vinculativos e monitoráveis, reconhecendo a interconexão entre problemas ambientais e sociais. Os líderes precisariam priorizar o bem comum e o futuro das próximas gerações, agindo com urgência para evitar consequências desastrosas.
Assim o Papa conclui a quarta parte da Laudate Deum: “Oxalá que a COP-28, seja de estratégias capazes de pensar mais no bem comum e no futuro dos seus filhos, do que nos interesses contingentes de algum país ou empresa. Possam assim mostrar a nobreza da política, e não a sua vergonha. Aos poderosos, atrevo-me a repetir esta pergunta: ‘Para que se quer preservar hoje um poder que será recordado pela sua incapacidade de intervir quando era urgente e necessário fazê-lo?” (LD 60).
No caso da Igreja no Brasil, a CNBB também se manifestou a respeito da atual crise climática: “Os povos e as comunidades que mais demonstram habilidade e cuidado na proteção dos biomas são, paradoxalmente, os mais ameaçados e desconsiderados. A legislação precisa ser protegida, sem flexibilizações ao interesse particular, tendo em vista os riscos, as vulnerabilidades, os prejuízos e as perdas de vida. É imprescindível mudar o modelo de desenvolvimento que reduz a criação a um ativo econômico. O luxo dos poderes públicos, intervenções rápidas, eficazes e estruturadas para enfrentar os eventos climáticos e garantir o cumprimento da legislação, fiscalização, punição aos culpados e investimentos em prol de políticas ambientais que promovam os direitos de toda criação da qual o ser humano é coroa. Manifestamos solidariedade a todas as vítimas dos eventos climáticos extremos, conclamamos o povo brasileiro para a corresponsabilidade, o compromisso e o cuidado para com a casa comum” (CNBB 20.09.2024).
Conclusão
Considerarmo-nos em uma mesma Casa Comum traz os ônus e os bônus de integrar todos os povos em situações que, aparentemente, não nos atingiriam. Estamos numa grande rede da vida planetária e, assim como as informações nos chegam automaticamente, mesmo vindas do outro lado do mundo, em relação ao clima, percebemos cada vez mais que uma ação feita em um ponto influencia todo o resto.
Diante das constatações e apelos de cientistas do clima, percebe-se que o Papa pontua devidamente os efeitos, mas também as medidas necessárias com relação às mudanças climáticas. O magistério de Francisco é lúcido ao perceber a gravidade das questões, mas não faz disso um motivo para desistir; pelo contrário: Francisco se mostra esperançoso de que ainda haja tempo para, ao menos ralentar o ritmo da degradação. Tudo está interligado, logo, ações locais poderão ter efeitos maiores que o previsto.
Cada um de nós em particular, passando pelos líderes mundiais, os donos do dinheiro, todos somos chamados à conversão ecológica. Dirigindo-se aos discípulos de Cristo, Francisco conclama: “Convido todos os cristãos a explicitar esta dimensão da sua conversão, permitindo que a força e a luz da graça recebida se estendam também à relação com as outras criaturas e com o mundo que os rodeia, e suscite aquela sublime fraternidade com a criação inteira que viveu, de maneira tão elucidativa, São Francisco de Assis” (LS 221).
Referências
CNBB, Nota sobre os eventos climáticos extremos (20.09.2024)
FRANCISCO, Carta Encíclica Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum (24.05.2015)
FRANCISCO, Exortação Apostólica Laudate Deum: sobre a crise climática (04.10.2023)
FRANCISCO, Mensagem à 47ª sessão do Conselho de governadores do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (IFAD) (02.02.2024).
https://oglobo.globo.com/mundo/clima-e-ciencia/noticia/2024/05/11/mudancas-ambientais-aumentam-risco-de-doencas-infecciosas-para-humanos-animais-e-plantas-mostra-estudo.ghtml (acesso 21.09.2024)
https://www.ipcc.ch/languages-2/spanish/ (acesso 22.09.2024)
https://www.wwf.org.br/nossosconteudos/notas_e_releases/?89621/Queimadas-nos-principais-biomas-brasileiros-se-concentraram-em-areas-de-vegetacao-nativa-em-agosto (acesso 22.09.2024)
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