A Assunção de Maria em perspectiva pneumatológica e sororal

A Assunção de Maria em perspectiva pneumatológica e sororal

O Espírito Santo é “Senhor que dá a vida” e abomina toda violência e opressão.

Frei Jonas Nogueira da Costa, ofm

A ressurreição de Jesus dá sentido e alcança todas as coisas no universo, de modo que toda criatura está marcada com a força da ressurreição de Jesus. O ser humano, de um modo muito particular, é visceralmente marcado pela força da ressurreição pois, tendo sido criado à imagem e semelhança de Deus e tendo o Verbo assumido plenamente a humanidade, ele é teleologicamente herdeiro da plena comunhão com Deus.

Esse telos (fim, propósito) entendido como vida plena já aparece na vida dos cristãos pela graça batismal. No batismo somos destinados à salvação pelos méritos de Cristo no poder do Espírito Santo. Assim, cada batizado é um sinal do poder da ressurreição de Cristo, uma vez que “o Espírito daquele que ressuscitou Cristo dentre os mortos habita em [nós], aquele que ressuscitou Cristo dentre os mortos, vivificará também [nossos] corpos mortais […]” (Rm 8,11).

Paulo diz que, conhecendo a Cristo, “a força da ressurreição e a comunhão com os seus sofrimentos, o tornam semelhante a ele na sua morte, para ver se chega até a Ressurreição dentre os mortos” (cf. Fl 3,10-11).

Mas o que seria, então essa “força da ressurreição”? Se formos ao Credo Niceno-constatinopolitano, perceberemos que, quando confessamos nossa fé no Espírito Santo, também dizemos que cremos na ressurreição da carne, o que nos leva a entender que é o Espírito Santo o próprio poder de ressurreição.

Assim, o que Paulo experimenta e testemunha no conjunto de sua vida, a Tradição da Igreja contempla de modo singular em Maria, mãe de Jesus. Ela experimentou a força da ressurreição de Jesus já no momento de sua concepção virginal, uma vez que concebe por obra do Espírito Santo. E vivendo à sombra do Espírito fez-se discípula do seu Filho, em profunda comunhão com seus sofrimentos até a hora da cruz. Assim, Maria é a testemunha mais fiel do seguimento de Jesus, pois estando sempre sob a sombra do poder do Altíssimo (Lc 1,35) viveu sua consagração como mãe virginal do Verbo.

Tendo Maria vivido de um modo singular como primícia dos seguidores de Jesus, não o seria, também, na participação do destino final de todos os fiéis, como testemunha qualificada da ressurreição de Jesus?  Sim, e é esse o mistério custodiado na proclamação dogmática da Assunção de Maria à glória. Maria é o sinal mais evidente da ressurreição de Jesus e de seu alcance sobre toda a humanidade.

Se a essência do dogma da Assunção de Maria é a ressurreição de Jesus, o ponto de partida objetivo da discussão passa pela sua morte. Mesmo que os fiéis professem que a santificação definitiva, operada em Maria, suprisse nela todo o pecado, ela não ficou isenta da morte, sendo submissa à condição de todos os descendentes de Adão[1]. Contudo, os cristãos, mesmo venerando a chamada Dormição de Maria, nunca trataram a mãe de Jesus como uma pessoa falecida, mas como alguém que está viva e ativa na comunhão dos santos e acompanha a Igreja com suas preces.

Com essa aversão à ideia de Maria como uma mulher falecida, com a ausência de seus restos mortais e toda a discussão que isso foi gerando ao redor de seu “túmulo vazio”, foi surgindo a fé na Assunção de Maria.

Assunta que dizer “assumida”, no sentido de “unida a”, “agregada a”. Em sentido bíblico, tem o mesmo significado empregado para Henoc (Gn 5,24) e para Elias (2Rs 2,3.5.9-10). Esses personagens foram “tomados”, “arrebatados” para junto de Deus[2], portanto, assumidos por Deus.

Assim, não obstante a ausência de indicações bíblicas sobre a morte de Maria e o destino de seu corpo, o sensus fidei plantou no coração dos fiéis essa expressão de fé. Fruto desse silêncio e embalado pela fé do povo de Deus é que surgiram narrativas apócrifas conhecidas como “Histórias sobre o Trânsito de Maria”, que são textos antigos que nos falam da vida terrena, da morte e glorificação de Maria[3].

Apócrifos e fé se encontram no ofício da festa da Dormição de Maria, que é estabelecida como festa de preceito pelo Imperador Maurício (582-602), com data fixada em 15 de agosto. Essa festa já havia adquirido tamanha importância que era precedida por quinze dias de preparação com jejum e oração[4].

Dentre as mais antigas homilias que tratam da Assunção de Maria, destacamos Teognosto († depois de 871). Ele recolhe toda uma tradição que nos lembra os “princípios de conveniência” utilizados sobretudo na Idade Média. Segundo esse arquimandrita de Constantinopla era justo que Maria, tendo recebido pela boca do anjo a notícia do nascimento virginal de Jesus também soubesse pelo mesmo anjo a notícia de sua Dormição. Também argumenta sobre o desejo de Jesus de transferir Maria, desta vida mortal para a eternidade, em virtude de sua união a ela pelos vínculos filho-mãe, numa relação de amor jamais interrompida[5].

A importância de tal homilia serve para vermos o quanto, na Idade Média, esse “princípio de conveniência” é utilizado. Recordamos São Boaventura († 1274) que propõe, como argumento em favor da Assunção corpórea de Maria, sua preservação da corrupção do pecado por meio da santificação operada por Deus, o que traz como consequência a não corrupção do seu corpo mortal[6].

Num crescendo de expressões devocionais, litúrgicas e teológicas em torno da Assunção de Maria, como também diante de petições ao magistério da Igreja, é que a Assunção de Maria foi proclamada como um dogma de fé. Assim, como uma expressão do triunfo do sensus fidei, Pio XII, em 1950, com a Bula Munificentissimus Deus, proclama que Maria, foi assunta à glória celeste em corpo e alma.

Em dias como os nossos, é muito importante considerar o óbvio. Assim precisamos dizer que a Assunção de Maria em corpo e alma à glória celeste trata-se do corpo de uma mulher que foi glorificado. Não glorificado segundo princípios machistas, mas segundo o querer divino. E esse corpo glorificado, que carrega toda a inteireza existencial de Maria, é o corpo daquela que é “bendita entre as mulheres”, não excluído da sororidade, mas num vínculo de profunda comunhão com todas as mulheres, em suas alegrias, sofrimentos e lutas. Isso faz com que o corpo de Maria, seja assumido como o estatuto máximo da dignidade de todas as mulheres assinado pelo próprio Deus. Desse modo, na pessoa de Maria, corpo/alma está a história das mulheres. É a partir do corpo de Maria que nos remetemos a casos, como o ocorrido no dia 26 de julho de 2025, quando Juliana Soares, de 35 anos, recebeu do então namorado, Igor Eduardo Pereira Cabral, 61 socos violentos na cabeça e no rosto, dentro de um elevador, na cidade de Natal (RN). A violência contra Juliana, contra todas as mulheres, é um atentado também ao corpo da Mãe de Deus em sua comunhão com as mulheres.

Uma leitura essencialista do dogma da Assunção de Maria que não tenha nada a dizer sobre a dignidade das mulheres ou sobre o genocídio na Faixa de Gaza é uma omissão à confissão de fé no Espírito Santo, enquanto poder de ressurreição, operado em Maria de modo excelso e exemplar. O Espírito Santo é “Senhor que dá a vida” e abomina toda violência e opressão.


[1] BØRRESEN, Kari Elisabeth. María nel Medíevo fra antropología e teología. Trapani: Il Pozzo di Giacobbe, 2019, p. 179.

[2] LAURENTIN, R. La Vergine Maria. Mariologia post-conciliare, p. 240. Apud: DE FIORES, Stefano. Il dogma dell’Assuzione di Maria nella ricerca contemporanea: dati acquisiti, problemi aperti. In: TONIOLO, Ermano M. (org.). Il dogma dell’assunzione di Maria. Problemi attuali e tentativi di ricomprensione. Atti del XVII Simposio Internazionale Mariologico (Roma, 6-9 ottobre 2009). Roma: Edizioni Marianum, 2010, p. 25-26.

[3] VALERIO, Adriana. Maria nella spiritualità cattolica femminile. In: VALERIO, Adriana; KELLI, Mervat; GROCHOWINA, Nicole. La Madre di Dio. Maria nelle confessioi cristiane. Cinisello Balsano: Edizioni San Paolo, 2022, p. 58-59.

[4] KELLI, Mervat. Maria come Madre di Dio nell’oriente cristiano. Teologia, poesia, dogma, liturgia, icone. In: VALERIO, Adriana; KELLI, Mervat; GROCHOWINA, Nicole. La Madre di Dio. Maria nelle confessioi cristiane. Cinisello Balsano: Edizioni San Paolo, 2022, p. 138.

[5]GAMBERO, Luigi. Fede e devozione mariana nell’impero bizantino. Dal periodo post-patristico alla caduta dell’Impero (1453). Cinisello Balsamo: Edizioni San Paolo, 2012, p.71-77.

[6] BØRRESEN, Kari Elisabeth. María nel Medíevo fra antropología e teología. Trapani: Il Pozzo di Giacobbe, 2019, p. 187.

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