A celebração da Solenidade da Anunciação do Senhor no Ano Jubilar da Esperança

A  celebração da Solenidade da Anunciação do Senhor no Ano Jubilar da Esperança

A fé cristã professa que a encarnação do Verbo no ventre de Maria é a expressão da plenitude da misericórdia de Deus, que unida a toda a vida, morte e ressurreição do Senhor, nos comunica o amor do Pai em sua totalidade.

Fr. Jonas Nogueira da Costa, ofm.

A ritualidade que nos conduz ao coração do mistério não é desatenta ao que nos envolve. Muito pelo contrário, pois se assim o fosse, estaríamos praticando meras recordações de eventos que, por mais importantes que sejam, não nos comunicariam vida e salvação. Nesse sentido, convocados para a celebração da solenidade da Anunciação do Senhor somos convidados a vivê-la na perspectiva da celebração de um jubileu, tempo privilegiado de cantar a misericórdia do Senhor.

A fé cristã professa que a encarnação do Verbo no ventre de Maria é a expressão da plenitude da misericórdia de Deus, que unida a toda a vida, morte e ressurreição do Senhor, nos comunica o amor do Pai em sua totalidade.

Nessa comunicação de amor descobrimos aspectos da face divina da Trindade como um Deus sempre em movimento de amor em direção ao ser humano.

  1. Deus “peregrino” que coloca seu povo em atitude de peregrinação

O Papa Francisco nos diz que “a peregrinação representa um elemento fundamental de todo o evento jubilar”[1]. Fundamental no sentido de que é a peregrinação que traz o elemento constitutivo-celebrativo para cada fiel vivenciar a dinâmica da proposta jubilar. Mas, a partir dessa afirmação, passemos a um estágio mais profundo dessa afirmação. O modus celebrandi característico do Ano Jubilar expressa algo do próprio Deus conferido ao seu povo.

Deus não está numa “atmosfera estática gozando de sua beatitude”, mas em constante movimento de amor. Deus sai de si mesmo, sem perder-se, em direção à criação do universo; vai em direção ao povo hebreu em situação de escravidão no Egito e caminha com esse povo em direção à terra prometida; se dirige aos profetas pedindo fidelidade à aliança etc. Tudo isso provoca uma resposta que exige movimento por parte da humanidade, pois na criação o ser humano se entende colaborador de Deus na criação, no êxodo se coloca em marcha, diante da palavra de Deus na boca do profeta se coloca em peregrinação interior buscando conversão em virtude da aliança celebrada no Sinai. O modo de ser “peregrino” de Deus nos coloca em movimento de resposta.

Mas na “plenitude dos tempos” (Gl 4,4) quis Deus realizar a maior peregrinação até então não imaginada; quis, pelo Filho unigênito, sair do seio da Trindade imanente e habitar no meio de nós. A encarnação do Verbo é o mais elevado ato de peregrinação de toda a história, pois coloca em movimento toda a vida, morte e ressurreição do Senhor Jesus na história, elementos esses que devem ser pensados em sua dinâmica de peregrinação.

Mas a “peregrinação” de Deus pelo seu Filho no poder do Espírito não poderia acontecer sem a acolhida livre e responsável da humanidade. Deus conta com a humanidade e a representante dessa humanidade, nesse momento da história salvífica, é Maria.

  • A mulher que representa toda a humanidade

A peregrinação do Verbo, no poder do Espírito Santo, ao ventre de Maria, aconteceu com o consentimento dessa jovem, totalmente sem valor segundo o contexto em que estava imersa. E ela aceita sua missão materna enquanto indivíduo, fala por si mesma, mas também como um sujeito coletivo, que representa toda a humanidade[2]. Mas é justamente na união do indivíduo “Maria” com toda a humanidade que vemos algo surpreendente, como lemos nas palavras de M.C. Bingemer

A virgindade desprezada em Israel é o lugar da Shekinah, a morada da glória de Javé. A preferência de Deus pelos pobres torna-se clara e explícita ao encarnar-se ele mesmo no seio de uma virgem[3].

O “lugar” da graça e da resposta do povo à iniciativa divina encontra-se na mulher e no pobre (anawin). É nesse “lugar”, enquanto realidade mais concreta da história humana que Deus se fez homem.

Isso deve nos provocar mudanças, pois ainda somos “embalados por canções gnósticas” em que gostaríamos de receber a misericórdia de Deus sem realmente nos convertermos, sem movimento interno de mudança de sentido em direção a Deus e aos pobres. O tanto que pedimos perdão em nossas liturgias e orações pessoais e o modo como isso não provoca em nós movimentos de compaixão em direção aos “que estão caídos” deve ser visto, minimamente como suspeitos, senão como hipócrita.

A encarnação se deu no corpo de uma mulher pobre; foi uma jovem da periferia que disse “faça-se” em nome de toda a humanidade. A santidade virginal não estava protegida nos palácios, mas na vulnerabilidade miserável de Nazaré. E isso precisa provocar em nós uma mudança (um movimento de conversão) em direção a outras propostas de vida, ao abandono de pastorais narcisistas onde a figura do padre/frade obscurece a figura da comunidade enquanto sujeito de discernimento no Espírito, a sairmos de planos de evangelização restritos a transferências bancárias sem adesão evangélica à pessoa empobrecida por nossas mentalidades burguesas anestesiadas pela fantasia da vivência deste ou daquele carisma, mas que não alcança movimentos (peregrinação) de conversão.

Assim, celebrar a Anunciação do Senhor, como expressão privilegiada da misericórdia de Deus que se fez carne, que se fez companheiro de viagem, que nos põe em movimento interior de conversão, é muito mais que uma data no calendário litúrgico com uma liturgia a ser executada. É uma ação ritual que nos leva ao coração do mistério e nos coloca no coração do mundo cheios de compaixão.

  • A Anunciação do Senhor como revelação de um Deus que é misericórdia

Por misericórdia entendemos a disposição de vida e animo que nos faz sensíveis em relação ao outro e nos leva a sentir a miséria do outro como nossa[4]. Deus, no seu amor divino, assumiu nossa miséria como sua na encarnação do Verbo, e, agindo dessa maneira, quis contar com nossa adesão.

Nessa perspectiva, somos convidados a revisitar o tema tão maltratado teologicamente das indulgências (isso por causa do tanto de abusos que aconteceram para se “lucrar” indulgências). Tomemos as palavras do Papa Francisco, ao dizer que,

a indulgência permite-nos descobrir como é ilimitada a misericórdia de Deus. Não é por acaso que, na Antiguidade, o termo “misericórdia” era substituível por “indulgência”, precisamente porque pretende exprimir a plenitude do perdão de Deus, que não conhece limites[5].

A Anunciação do Senhor é uma claríssima afirmação da misericórdia de Deus que não conhece limites. Logo, a solenidade, vivida em espírito jubilar, deve também nos colocar na dinâmica das propostas que a bula Spes non confundit  nos convida.

A dinâmica jubilar nos leva a dizer que, sendo a misericórdia de Deus algo que não tem limites, Jesus é a nossa verdadeira esperança! No convite do anjo feito a Maria de ser a Mãe do Senhor, ela acolhe toda a esperança para o universo. O pessimismo que tudo pinta de cinza é afastado e vemos o mundo com olhos de criança, ou melhor, do Deus que se fez criança no colo de Maria.

Conclusão: ouçamos o Anjo do Senhor

Celebrar um Deus que se encarna na história, que assume nossa fragilidade, habita o ventre de uma mulher e escolhe ser pobre é celebrá-Lo em seus aspectos que vão na contramão de tudo o que é reconhecido e valorizado como o modelo a ser desejado e perseguido.

Constantemente nos deixamos seduzir pelo “canto da sereia” que nos leva a afogar num mar de egoísmo. Cabe-nos, como resposta ao Ano Jubilar da Esperança, fechar os ouvidos a esse canto idolátrico e ouvir o Anjo do Senhor que nos convida para que aceitemos a encarnação do Verbo na nossa história, na nossa miséria humana, no nosso querer peregrinar com Ele em busca da vida. 


[1] FRANCISCO. Spes non confundit. Bula de proclamação do jubileu ordinário do ano 2025. Normas sobre a concessão da indulgência durante o jubileu ordinário do ano 2025. São Paulo: Paulus, 2024, n. 5.

[2] BALTHASAR, Hans Urs von. Católico. Aspectos do Mistério. São Paulo: Paulus, 2023, p. 58.

[3] BINGEMER, Maria Clara L. Maria na Teologia da Libertação. In: CALIMAN, Cleto (org.). Teologia e devoção mariana no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 129.

[4] GAMBERO, Luigi. Maria e il mistero della misericordia di Dio. Riflessione ne Padri della Chiesa. In: DI DOMENICO, Piergiorgio; PERETTO, Elio (Org.). Maria Madre di Misericordia – Monstra te esse Matrem. Padova: Messagero di Sant’Antonio, 2003, p. 162.

[5] FRANCISCO. Spes non confundit. Bula de proclamação do jubileu ordinário do ano 2025. Normas sobre a concessão da indulgência durante o jubileu ordinário do ano 2025. São Paulo: Paulus, 2024, n. 23.

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