A profecia de Gloria Groove: a queda

A profecia de Gloria Groove: a queda

Sabemos que, normalmente, o cancelamento advém de falas e posts que afetam direitos humanos, mas nem sempre essa é a lógica.

A profecia de Gloria Groove: a queda

Frei Vitor Vinicius da Silva, ofm[1]

Publicado originalmente em Brasil de Fato – Minas Gerais

A arte musical deveria ter sempre a capacidade de nos causar náuseas como também sensações sentimentais de alguma espécie, pois essa é a finalidade da arte: causar. A causa da arte não tem função produtiva, mas de significados, e retomando a arte grega, para melhor exemplificar, resgatamos o conceito/palavra prósopon que significa, originalmente, máscara/rosto. Essa máscara está relacionada a personagens teatrais que as utilizavam para revelar aquilo que estava oculto: caráter, estado emocional e outros. Com isso, é extremamente necessário falarmos dos vários prósopons da nossa atualidade que apontam para aquilo que está oculto, seja no nível subjetivo como social.

Contudo, antes mesmo de apontar para os prósopons que abrem as cortinas do palco da atualidade, creio ser necessário retomar um personagem histórico que nos auxiliará nesse trajeto. O personagem histórico, da Idade Média, é o bobo da corte que tinha como função divertir o rei, mas sua diversão também lhe dava a possibilidade de criticar a monarquia/governo sem ter como fim a punição ou a morte. As habilidades desse ardiloso personagem eram diversas – mímicas, malabarismos, gestos ilusórios e outras tantas habilidades. A figura é tão marcante que é narrada nas obras de William Shakespeare como Rei Lear e em outros tantos autores que hora ou outra trabalham com essa figura impactante. Por outro lado, a figura do bobo da corte paira sobre tudo aquilo que é desproporcional, chocante e marcante. Ao contrário dos corpos que se pintam metricamente o rosto, onde a ciência da Colorimetria é a baliza para determinar cores de cílios e sobre cílios, o bobo é aquele que exagera nas pinturas a ponto de causar riso, impacto e horror no expectador. Em simples palavras, a sua arte faz jus àquilo que muitos acreditam que a arte tem por objetivo: ser um manifesto crítico aos egos doentios que acreditam ser completos.

Sobre esse personagem que se inspira o conhecido Coringa, vilão da saga do Batman. Na bela produção do filme “Coringa: coloque um sorriso nessa cara”, lançado em 2019 cuja direção é de Todd Philips, temos o retrato da vida de milhares de homens e mulheres que fazem parte da ala do fracasso. O Coringa é a própria encarnação do fracasso em uma sociedade do sucesso, da hermenêutica do capital. O personagem expresso no filme é um manifesto contra a sociedade perversa, é aquele que revolta contra a tirania do Reino humano. Em seu contexto, o dinheiro determina quem vive e quem morre, determina quem é o centro e quem é a margem. Dessa forma, a crítica é sempre sutil e nos leva a pensar: quem é o bobo da corte? O que renuncia a suposta harmonia social das cores ou aqueles que riem do espetáculo posto, que como diz a pesquisadora Mariana Rossel quando afirma que o “Ator sem consciência é bobo da corte” e, nesse sentindo, a frase se aplica a todos nós, pois somos todos atores no mundo.

Nessa mesma intrigante reflexão, temos o lançamento, no dia 14 de outubro, da música denominada “A Queda” pelo cantor e drag queen Daniel Garcia cujo alter ego é denominado como Gloria Groove. Em seu clipe temos novamente o palhaço, face atual do bobo corte, que com sua voz pinta a sociedade do espetáculo que no palco da vida digital se equilibra na corda bamba entre a queda (fracasso) e os aplausos, mas, como afirma em sua música, o que dá mais likes é o fracasso. Nesse sentido, a cantora coloca em cena um dos temas mais latentes da sociedade, o cancelamento.

O denominado cancelamento pode ter uma função tanto pedagógica como perversa. Ao mesmo tempo que pode ser visto como um instrumento de correção de posições equivocadas que ferem a moral ou a dignidade humana pode ser visto como um instrumento que inflige dor e sofrimento. Embora essa ação seja dada como algo novo, sua metodologia é por demais antiga e pode ser resumida na máxima do “olho por olho, dente por dente”. Em outras palavras, temos no denominado cancelamento a conhecida “lei de talião” vivida desde o reino da Babilônia e muito utilizada na Idade Média. A ideia é que o sujeito da ação “criminosa” seja punido na mesma moeda de seu ato, o interessante nesse novo instrumento do tribunal virtual é que não existe a possibilidade de absolvição ou aquilo que podemos também chamar, na roupagem religiosa, de misericórdia. Assim, com base nesse código de moral podemos nos perguntar quais são os critérios para determinar o certo e o errado em um universo que tudo é passível de ser deturpado e onde signos são ressignificados com muita facilidade.

Com base nessa indagação podemos perceber que o ponto fraco desse novo tribunal é a inexistência de critérios de validade, será que tudo é matéria para condenar o outro, posts de dez, vinte anos atrás estão retomando a cena e como saber se a matéria não é fake News? Enfim, são perguntas pertinentes que nos auxiliam na reflexão do cancelamento visto que essa cultura pode ser o ponta pé inicial para situações de depressão e autorrepressão.

Sabemos que, normalmente, o cancelamento advém de falas e posts que discriminam ou afetam direitos humanos, mas nem sempre essa é a lógica. Por isso, temos sempre a sensação de ter um “olho de Deus” sob nossas cabeças: será que serei cancelado? Perseguido? etc. Ao mesmo tempo, podemos nos perguntar se isso não seria mais um instrumento com uma nova roupagem na sociedade virtual da vigilância, uma nova forma de vigiar e punir, onde temos o panoptismo que insere no individuo essa sensação de estar sendo vigiado a todo o momento? Enfim, são apenas elementos que podem ser gatilhos para uma reflexão mais aprofundada a partir da nova música de uma artista que emerge da marginalidade e dá voz a temas tão relevantes.

No fim, diante da impactante crítica social, Gloria Groove se torna uma nova profetiza de nosso tempo. Essa categoria nada mais é que sujeitos (as) que expressam o desejo de liberdade e de uma realidade melhor (mais humana). Essa figura, dada em realidade bíblica, é a figura da crise e da decadência do humano e são incompreendidos por diversas vezes como nos mostra o passado, mas isso não nega a veracidade da sua crítica. Sabemos que um dos papeis desses profetas e profetizas eram denunciar realidades deturpadas pela ganância humana. Assim, categorizamo-la como profetiza e, ao mesmo tempo, somos chamados a escutar e dar voz a essas profecias, seguindo sua crítica que possamos deixar de agir como animais (irracionais) e inverter o interesse pelo sangue que jorra do outro pelo cuidado e aplauso da subida do outro.

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[1] Graduado em Filosofia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino e graduando em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.

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