“Nenhum sistema social suporta o conhecimento de todas as suas mazelas”, mas o enfrentamento da verdade é o único caminho para a cura.
Frei Jhonatan de Jesus Luiz, OFM[1]
Gabriel Perissé[2] alerta para a urgência de reconhecer e punir este mal, frequentemente silenciado e mascarado como “modo de ser” de alguns líderes religiosos.
O abuso espiritual é definido como um “vírus” que, de forma silenciosa, tem infectado comunidades religiosas em todo o mundo, minando a credibilidade da Igreja. A urgência de combater este fenômeno, destacada durante o pontificado do Papa Francisco, coloca as vítimas no centro de uma reflexão necessária, que exige ser ouvida e reparada.
O grande obstáculo, segundo Gabriel Perissé, é a falta de tipificação no Código de Direito Canônico. Sem uma definição jurídica clara, os processos contra os alegados abusadores muitas vezes não avançam, deixando as vítimas sem justiça e os culpados impunes. O abuso espiritual é descrito como o “crime perfeito” por não deixar rastros físicos evidentes, operando através de um processo lento de marginalização e segregação da vítima.
Vivemos um tempo de epidemia de abusos com múltiplas faces, onde a prática do abuso espiritual raramente ocorre de forma isolada. Gabriel Perissé lista uma série de abusos que dele derivam, incluindo:
– Abuso econômico e de poder
– Humilhação pública e silenciamento
– Vigilância extrema e controle
– Patologização da dúvida
– Abuso de discernimento, profecias e identidade
A complexidade do problema manifesta-se em três níveis de abordagem, conforme identificado em estudos sobre o tema:
1- Abordagem Relacional: O abusador, frequentemente uma pessoa com uma imagem dócil e bajuladora, cria uma relação assimétrica de poder. Uma tática comum é a criação de um “inimigo” externo, contra o qual ele supostamente protege o seu grupo, consolidando o seu controle.
2- Abordagem Institucional: A própria instituição pode adotar posturas abusivas. Frases como “Deus tudo vê”, usadas em algumas casas de formação religiosa são, exemplos de como se pode impor um fardo pesado e doentio aos fiéis. A estrutura hierárquica da Igreja, do laicato à alta cúria, é apontada como potencialmente propícia a tais dinâmicas.
3- Abordagem Político-Estrutural: Neste nível, o abuso torna-se sistémico, com a criação de estruturas que padronizam conceitos e anulam diversidades. Este ambiente pode gerar teocracias dissimuladas que segregam e até eliminam quem não adere a um suposto “projeto de Deus”.
O perfil do abusador e o caminho para a cura, é possível? – questionou. No cerne do abuso está o desejo inato de controlo e domínio. O abusador vive um dilema íntimo, numa crise constante consigo mesmo e com as instituições, desejando simultaneamente ser descoberto e esconder-se através da mentira. A prevenção e o combate a este mal passam, segundo o Perissé, por um trabalho profundo de autoconhecimento para enfrentar os traumas e as dinâmicas de poder que todos carregam. “Dentro do ser humano há inerte um abusado e um abusador”, refere o estudo, salientando a necessidade de “policiar” essas tendências. Para as vítimas, o caminho é de “reconstrução espiritual”, um árduo processo de “reiniciação pessoal” para restabelecer a ligação com o transcendente, que foi rompida pelo abuso.
A solução apontada é multifacetada: prevenção, terapia, autocuidado e combate ao fanatismo. No entanto, alerta-se que confrontar fanáticos de frente pode, paradoxalmente, fornecer-lhes material para fortalecer as suas teorias dissidentes.
Enfim, segundo Perissé, enquanto a tipificação canônica do abuso espiritual não se concretiza, defende-se que a postura da Igreja deve ser a de se colocar incondicionalmente ao lado da vítima, seguindo o princípio evangélico de opção pelos marginalizados. Como bem sintetiza a reflexão, “nenhum sistema social suporta o conhecimento de todas as suas mazelas”, mas o enfrentamento da verdade é o único caminho para a cura.
[1] Frei Jhonatan de Jesus Luiz, frade menor, promotor vocacional, texto por ocasião da realização do Projeto Laudato Si, promovido pela Província Santa Cruz, em 29 de outubro de 2025. Este Projeto é de caráter formativo, visando os confrades e demais religiosos e leigos. O tema abordado foi: Abuso Espiritual, com Gabriel Perissé
[2]Gabriel Perissé é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), doutor em Filosofia da Educação (USP) e doutor em Teologia (PUC-RS). Tem pós-doutorado em Filosofia e História da Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autor de mais de 25 livros, tradutor e conferencista.
Abuso Espiritual: A Manipulação Invisível, escrito pelo mestre em teologia, Gabriel Perissé,publicado em 2024 pela Paulus Editora, aborda de forma crítica e acessível o tema da manipulação espiritual. A temática abordada na obra se desenvolve a partir da comparação com outros tipos de abusos ocorridos em ambientes espirituais e religiosos, eclodidos nas últimas décadas. Além da análise e reflexão sobre as possíveis motivações para que líderes religiosos cometam tais abusos, o livro trata, ainda, das características comuns entre as vítimas e como estas podem identificar esse tipo de violência.









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