As crianças na perspectiva do poder do ser! O que Jesus tem a nos dizer? (Mc 9,30-37)

Por que Jesus acolhe crianças? Por que Jesus ressalta o ser menor das crianças para falar do maior? Qual a relação delas com o Reino de Deus? Por que os discípulos não aceitaram a presença de crianças em torno a Jesus? Por que Jesus coloca uma criança no centro? Qual é o poder das crianças? Seria a criança uma interlocutora de Deus?

Frei Jacir de Freitas Faria [1]

O texto sobre o qual vamos refletir é Mc 9,3037. Trata-se da passagem de Jesus, na qual Ele, diante da questão posta pelos discípulos sobre quem é o maior, toma uma criança nos braços, se posiciona no meio deles, e diz que quem acolhe uma criança, O acolhe e o Pai. Na cena seguinte, Mc 10,13-16, as mães levam crianças para que Jesus as tocassem, mas os apóstolos procuram afastá-las de Jesus. Diante dessas cenas inusitadas, surgem as perguntas: Por que Jesus acolhe crianças? Por que Jesus ressalta o ser menor das crianças para falar do maior? Qual a relação delas com o Reino de Deus? Por que os discípulos não aceitaram a presença de crianças em torno a Jesus? Por que Jesus coloca uma criança no centro? Qual é o poder das crianças? Seria a criança uma interlocutora de Deus?

Nessas duas cenas do evangelho de Marcos encontramos os discípulos, Jesus e as crianças. Em Mc 10, temos o gesto daqueles, mais provável, as mães, pois um homem não se envolvia com crianças, que levam suas crianças a Jesus, o que mostra que elas acreditavam que Jesus era um homem de Deus, profeta ou rabino.[2] Essa atitude tão simples e profunda suscitou reações antagônicas. As crianças são expulsas pelos discípulos e acolhidas por Jesus. Já os discípulos, em Mc 9, estão preocupados com o status de ser discípulo de Jesus. Um apóstolo querendo ter a glória, o poder de ser superior ao outro. Nos dois episódios, poder e crianças estão em jogo.

Para entender esses comportamentos, faz-se necessário compreender a situação da criança no tempo de Jesus e a relação dela com o ministério realizado por Jesus.  

Para os judeus e demais povos da época de Jesus, as crianças eram tidas como pessoas privadas de direito e de consideração. Eram símbolo de pequenez e de pobreza. Não sendo consideradas como modelo de virtude, elas não tinham voz nas reuniões. Deviam somente escutar e aprender.[3] O fato de Jesus as colocar no centro significa inclusão. Jesus diz que o maior é o que está incluído na vida, com direitos iguais.

Não vale a pena pelas disputas de poder. Tiago, bispo de Jerusalém, também conhecido como Irmão do Senhor, duas décadas depois da morte de Jesus, admoesta aos cristãos de origem judaica sobre as disputas de poder. Ele escreve: “De onde vêm as brigas entre vós? Não vêm, justamente, das paixões que estão em conflito dentro de vós? Cobiçais, mas não conseguis ter. Matais e cultivais inveja, mas não conseguis êxito. Brigais e fazeis guerra, mas não conseguis possuir” (Tg 4,1-2).

Os rabinos não demonstravam interesse pelas crianças. Conta-se que, certa vez, o Rabino Dosa B. Arquinos disse: “O sono matinal, o vinho do meio-dia, o tagarelar com crianças e o deter-se nos lugares de encontro do povinho fazem morrer o homem” (Ab.3,10).[4] No mundo antigo, parece ser normal a prática de abandonar recém-nascidos nos lixões das cidades. Essas eram resgatadas e criadas como escravos.[5]

As comparações entre crianças e Reino dos Céus nos evangelhos são diferentes. O evangelho apócrifo de Tomé, no capítulo 22, considera as crianças de peito aos que entram no Reino. Os discípulos então perguntam a Jesus: “Se nós formos crianças, entraremos no reino?” E Jesus lhes responde: “Quando de duas coisas fizerdes uma só, quando tornardes o interno igual ao externo, a parte superior igual à inferior; quando fizerdes do macho e da fêmea um só ser, de tal modo que o macho não seja macho e a fêmea não seja fêmea, quando fizerdes olhos em lugar de um olho, mão em lugar de mão, pé em lugar de pé, imagem em lugar de imagem, então entrareis no reino”.[6] Tomé propõe que a entrada no reino depende da volta ao estado originário, antes do pecado de Adão e Eva. Nessa mesma linha de pensamento, estavam os rabinos, os quais consideravam o ser humano como um só. Deus teria feito o ser humano uma só criatura e depois a serrou ao meio. Por isso homem e mulher são iguais nas partes traseiras e diferentes nas dianteiras. O reino de Deus para Tomé é, portanto, um estado pré-sexual, assexuado. A criança é o símbolo perfeito para dizer o cristão ideal que quer entrar no reino.

Merece destaque também o fato de termos mais de uma meia dúzia de evangelhos sobre a infância de Jesus, os quais dão ao menino Jesus uma infância que ele não teve nos canônicos.[7]

Já os evangelhos sinóticos (Mc 9, 36-39; 10,13-16; Mt 18,1-4, 19,13-15) consideram as crianças como símbolo da humildade e, por isso, desses (os humildes) é o Reino dos Céus ou de Deus. A comunidade de João (9, 1-10), por outro lado, pensa nas crianças como símbolo da fé, dos batizados.

No encontro com as crianças, em Marcos, Jesus somente as toca. Em Mateus, ele as abençoa. Na religião judaica, aos pais competia a bênção familiar aos filhos, aos sacerdotes a bênção religiosa ao povo no culto (1QS 2,1; 6,5; test Rub. 6,10), e aos rabinos, a bênção para os discípulos. No judaísmo rabínico, para receber uma bênção as crianças dirigiam-se aos seus pais dizendo: “Reza para mim” ou “Dá-me a tua bênção”.[8]

Das crianças são o reino de Deus ou dos Céus! Reino exprime o poder real de Deus. Céus, por sua vez, define o lugar da habitação de Deus. Assim, Reino dos Céus não é um reino no sentido exterior e espacial, mas uma realeza, uma soberania que vem do alto por vontade de Deus.[9]   

Contrário ao comportamento dos seus coetâneos, Jesus acolhe as crianças. “Na atitude de Jesus se percebe uma submissão voluntária e imediata às crianças. Nisso podemos perceber um aspecto característico da sua atividade. Tendo como pano de fundo a insignificância da criança, essa atitude de Jesus é entendida através da oferta de graça àqueles que nada têm, como uma crítica aos preconceitos do mundo dos adultos. A criança é considerada, de fato, como interlocutora de Deus”.[10]

Não querendo absolutizar a inocência das crianças, Jesus chama a atenção para a modéstia, a ingenuidade, a pequenez, a receptividade e a simplicidade das crianças. Características essas que possibilitam o acesso ao Reino de Deus. As crianças são para Jesus os protótipos ideais do Reino. Elas representam o ser maior, pois são dotadas da sabedoria divina, na inocência e na pureza.

Na Idade Média, as crianças eram vistas como pessoas frágeis, infantis, mas eram tratadas como adultas. Alguns idiomas, como o francês, conservaram essa mentalidade, quando grafam criança como ‘enfant’, um infantil. Já o português usa criança, que vem de Deus Criador.  As crianças tinham que trabalhar e se vestir como eles. Eram um adulto em miniatura, um ser imperfeito. A arte medieval cunhou as crianças de homúnculo, isto é, pequeno adulto. Era pensamento também de que Jesus nascera adulto.[11]

Alguns pensavam que as crianças não tinham salvação, caso morressem. As pinturas medievais do menino Jesus com um rosto de adulto, homúnculo, foi uma tentativa de mostrar que Jesus, o Salvador, era homem perfeito, santo e não criança como as demais. Seria para valorizar e pedir a salvação para as crianças a partir do adulto bebê Jesus.  

O fato de as crianças serem colocadas, no mundo antigo, nos lixões das cidades, embora não tenhamos registro de tal atitude entre os judeus, nos mostra que essas eram consideradas um ser sem valor, um ninguém. Imagine a reação dos discípulos ao presenciarem Jesus dizer que dessas era o Reino. As crianças só se tornariam gente com a ajuda dos adultos. Só esses podiam resgatá-las, transformar-se em um salvador para elas. Assim é o reino. Exige ação em defesa dos pobres. Um adulto, no seu esquema mental possível, se sentiria ofendido ao ser comparado com uma criança. É como se Jesus dissesse hoje aos radicais muçulmanos do Afeganistão: “O reino de Deus é como uma mulher”.

Em nossos dias, diante da triste realidade da não dignidade das crianças, Jesus resgata o seu valor. Ele nos convida a fazer opção pelas crianças, e não guerras que matam milhões de crianças, aleijam tantas outras, expulsam-nas de suas terras e as traumatizam. Os meninos continuam tendo mais acesso ao ensino que as meninas. O mundo das drogas arrebanha milhares de crianças e adolescentes para esse caminho da morte. O trabalho escravo dos menores é uma realidade em muitos países pobres. UNICEF e Pastoral da Criança no Brasil são exemplos a serem seguidos na defesa das crianças. Ainda continua o desafio de construir programas governamentais de ajuda às crianças. A criança depende de nós, os adultos. Ela é indefesa. Sem nós, ela morrerá. Acolhamos com dignidade nossas crianças. Elas são nossas interlocutoras diante de Deus. O poder delas é o do ser, o nosso, infelizmente, o do fazer para ter.

BIBLIOGRAFIA

BONNARD, P.,Evangelio segun San Mateo, Madrid, 1976.

CROSSAN, J. D., O Jesus histórico: a vida de um camponês judeu do mediterrâneo, Imago: Rio de Janeiro, 1994.  

GNILKA, J.,Il vangelo di Matteo, II, Brescia, 1991.

FARIA, Jacir de Freitas. Infância apócrifa do Menino Jesus: histórias de ternura e de travessuras. Petrópolis: Vozes, 2010.

KITTEL, G.,Grande lessico del Nuovo Testamento, vol. V, Brescia 1965-1988.          


[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de doze livros e coautor de quinze. Canal no Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ 

[2] GNILKA,Il vangelo di Matteo, II, Brescia 1991, p.239.

[3] BONNARD,Evangelio segun San Mateo, Madrid 1976, p.426. Não obstante esse comportamento de rechaço das crianças da vida social, os judeus, por outro lado, as consideravam como um dos principais sinais da bênção divina e, por isso, lhes reservavam muitos cuidados (Ez 16,4; Lc 2,27; Gn 17,12; Ex 13,1-15; 2Mac 44,7; Nm 15,39; Lc 2,42).   

[4] Texto citado por KITTEL,Grande Lessico del Nuovo Testamento, vol. V, col. 645, Brescia, 1965-1988. 

[5] CROSSAN, J. D., O Jesus histórico, Imago: Rio de Janeiro, 1994, p.306.

[6] Cf. também Evangelho de  Tomé 37, 1-2; 4; 11; 16; 23; 49, 75; 76.  

[7] FARIA, Jacir de Freitas. Infância apócrifa do Menino Jesus: histórias de ternura e de travessuras. Petrópolis: Vozes, 2010.

[8] GNILKA, Il vangelo di Matteo, II, 238.

[9] KITTEL, Grande Lessico del Nuovo Testamento, II, Col. 182.  

[10] GNILKA, Il vangelo di Matteo, II, 240-241.

[11] Disponivel em: https://arteref.com/educacao/por-que-os-bebes-nas-pinturas-medievais-parecem-homens-velhos-e-feios/ Acesso em: 14 mai 2024.

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