Aqueles que quiserem assumir esta vida e vierem procurar nossos irmãos, estes os enviem aos seus ministros provinciais, aos quais unicamente, e não a outros, seja concedida a licença de receber os irmãos.
Frei Hilton Farias de Souza, ofm
“Aqueles que quiserem assumir esta vida e vierem procurar nossos irmãos, estes os enviem aos seus ministros provinciais, aos quais unicamente, e não a outros, seja concedida a licença de receber os irmãos. Os ministros, no entanto, examinem-nos diligentemente sobre a fé católica e sobre os sacramentos da Igreja. E se crerem em todas estas coisas e quiserem fielmente professá-las e firmemente observá-las até ao fim, caso não tenham esposas ou, se tiverem, as esposas já tiverem entrado em mosteiro ou, tendo já emitido o voto de continência, lhes tiverem dado a licença com a autorização do bispo diocesano, e as esposas sejam de tal idade que não possa destas coisas nascer suspeita, digam-lhes a palavra do santo Evangelho que vão e vendam todos os seus bens e procurem distribuí-los aos pobres (cf. Mt 19,21). Se não puderem realizar isto, basta-lhes a boa vontade. E cuidem os irmãos e seus ministros para não se preocupar com as coisas temporais deles, de modo que eles livremente façam de suas coisas o que o Senhor lhes inspirar. Se, porém, for pedido algum conselho, tenham os ministros a licença de enviá-los a algumas pessoas tementes a Deus, a cujo conselho distribuam seus bens aos pobres. Depois disto, concedam-lhes as vestes de provação, a saber, duas túnicas sem capuz e o cíngulo, calções e o caparão [que vá] até o cíngulo, a não ser que, uma outra vez, aos mesmos ministros outra coisa pareça melhor segundo Deus. E terminado o ano de provação, sejam recebidos à obediência, prometendo observar sempre esta vida e regra. E, segundo a prescrição do Senhor Papa, não lhes será permitido de modo algum sair desta Religião, porque, segundo o santo Evangelho, ninguém que coloca a mão no arado e olha para trás é apto para o reino de Deus (cf. Lc 9,62). E os que já prometeram obediência tenham uma túnica com capuz e, aqueles que o quiserem, outra sem capuz. E os que são premidos pela necessidade possam usar calçados. E todos os irmãos se vistam com vestes baratas e possam, com a bênção de Deus, remendá-las de sacos e outros retalhos. Eu os admoesto e exorto a que não desprezem nem julguem os homens que virem vestir roupas macias e coloridas e usar comidas e bebidas finas, mas cada qual julgue e despreze antes a si mesmo”.
O conteúdo desse 2º capítulo da Regra pode ser dividido em quatro partes:
A. o modo de admitir os candidatos na Ordem;
B. o tempo de provação ou noviciado;
C. orientações acerca do hábito religioso dos professos;
D. admoestação/exortação.
A. O modo de admitir os candidatos na Ordem
Francisco deixa claro nesse capítulo que o responsável primeiro por receber os candidatos à Ordem é o Ministro Provincial; todos aqueles que vinham para compartilhar o gênero de vida dos frades menores deviam passar pela análise do Ministro que recebiam o candidato na Ordem. O texto da Regra dá algumas parcas indicações do processo/metodologia a ser seguido para a admissão ou não na Ordem. O candidato era submetido a um exame diligente a respeito da fé católica e sobre os sacramentos da Igreja. Essa medida era uma precaução para evitar a infiltração de elementos heréticos na fraternidade dos Irmãos Menores. Recordando que o grupo, por exemplo, dos chamados Cátaros rejeitava a hierarquia eclesiástica e os sacramentos administrados pela Igreja Católica. Rejeitava inclusive os sacramentos administrados por um sacerdote pecador.
Francisco cuida para que os frades não caiam no perigo da divisão em matéria de fé e de sacramentos. É interessante o respeito manifestado por Francisco pelos sacerdotes pobrezinhos do seu tempo; os respeita e os admira, não os condena. Essa atitude da parte de Francisco é documentada no seu Testamento. Uma vez constatada a fé católica e a fidelidade aos sacramentos ministrados pela Igreja, supondo que esses candidatos creem e querem fielmente professá-las e firmemente observá-las até o fim; assim é dado o primeiro passo no itinerário de aceitação.
A Regra prevê também a situação de homens casados que queriam compartilhar a vocação de Irmãos Menores e fazerem parte da Ordem dos Frades Menores. A Regra dá uma orientação com certeza baseada no direito vigente da época: é necessário que a esposa tenha entrado num mosteiro de monjas ou uma vez emitido o voto de continência, ou recebido a devida licença, com a autorização do ordinário diocesano. Além disso o texto pondera que as esposas sejam de uma certa idade “madura”, para que daí não possa nascer uma suspeita.
O Ministro apresenta a proposta do santo Evangelho, cujo texto requer desapego, renúncia e abertura de mentalidade – “vão e vendam todos os seus bens e procurem distribuí-los aos pobres” (cf. Mt 19,21).
Francisco demonstra certa flexibilidade diante da impossibilidade de alguns candidatos de “não puderem realizar isto”; quando isso acontece, basta a boa vontade. O recém-chegado deve dispor de seus bens livremente, não pode ser coagido; “Como o Senhor o inspirar” (RnB 17). A renúncia aos bens terrenos exprime, de modo inconfundível, que a fé faz o homem reconhecer novamente a Deus como Senhor e proprietário de tudo quanto lhe foi concedido, a título de posse, por um prazo indeterminado. Quem quer consagrar-se totalmente a Deus deve também renunciar ao apego desordenado aos parentes, segundo a doutrina do Senhor no Evangelho (cf. 2Cel, 81).
B. O tempo de provação ou noviciado
Esse ano de provação foi instituído na nossa Ordem pelo Papa Honório III, no ano de 1220. É bom recordar que o tempo de noviciado, como etapa na caminhada formativa da Vida Religiosa, já estava presente nas Ordens monásticas tradicionais, como os Beneditinos. Com isso, os candidatos selecionados e recebidos pelo Ministro Provincial eram encaminhados para esse período de provação. Recebiam uma veste apropriada para vivenciar esse tempo: duas túnicas sem capuz, cordão, calças e o caparão que era o distintivo dessa etapa. A Regra não menciona a cor nem o feitio do hábito, mas já havia uma tradição a respeito do “hábito dos frades menores”. Era um sinal externo de que alguém se havia filiado ao grupo dos Irmãos. Quanto às roupas prescritas pela Regra para os noviços, Francisco não pretendeu dar uma norma definitiva. […] “a não ser que, uma outra vez, aos mesmos ministros outra coisa pareça melhor segundo Deus”. Com certeza, nesse ponto Francisco intuía uma evolução da Ordem.
Profissão – Originalmente, esses candidatos, uma vez verificada a sua catolicidade e dados os seus bens aos pobres, eram recebidos na Ordem e faziam imediatamente a sua profissão dos votos (eram recebidos na “obediência”). Com o decreto de Honório III, instituindo um ano canônico de noviciado, com certeza era para salvaguardar uma formação mais adequada a esses candidatos que surgiam de diversas partes. Ao final desse tempo de noviciado, fazia-se a profissão e, com isso, o frade noviço era admitido à obediência. O frade prometia observar esta vida e a Regra para sempre. A Profissão integra o frade em uma nova sociedade/Ordem (Religião) e obriga-o a adotar todos os hábitos de vida inerentes a essa comunidade. O frade menor deve ver nesta admissão algo irrevogável e nela perseverar com fidelidade (“não lhes será permitido de modo algum sair desta Religião”), como expressa o texto da Regra: “segundo o santo Evangelho, ninguém que coloca a mão no arado e olha para trás é apto para o reino de Deus (cf. Lc 9,62)”.
C. Orientações acerca do hábito religioso dos professos
Os frades que “já prometeram obediência” (professos) devem contentar-se com uma só túnica com capuz, provavelmente inspirados na orientação do Senhor no Evangelho (Mc 6,9). Essa orientação da Regra deve ter-se comprovado muito rigorosa, sobretudo quando os frades partiram da Itália para a missão em outros países. A sensibilidade materna de Francisco atenuou o texto da Regra Bulada, permitindo que também os professos, caso o quisessem, poderiam usar duas túnicas. A Regra leva em conta também as estações e regiões mais frias quando prescreve: “E os que são premidos pela necessidade possam usar calçados”.
“Vistam com vestes baratas” – As vestes dos frades devem ser caracterizadas pela simplicidade e não pela ostentação. A orientação não se trata de andar desleixados, mas o cuidado deve ser marcado pelo despojamento e pelo sine proprio que professamos.
Quanto à recomendação de remendar as vestes de sacos e outros retalhos, provavelmente estava ligada aos frades que optavam por usar uma única túnica, assim poderiam coser ao avesso do hábito retalhos de pano que protegiam as partes do corpo mais sensíveis à friagem. Logo em seguida, Francisco exorta os frades para que se “vistam com vestes baratas”.
D. Admoestação/exortação
Francisco fecha o capítulo II com uma admoestação/exortação – o fato de os frades menores optarem por um tipo de veste inspirada no evangelho, ou seja, marcada pela simplicidade, não poderia ser motivo para desprezarem ou julgarem as pessoas que porventura encontrassem na sua lida cotidiana, vestindo “roupas macias e coloridas” e usando “comidas e bebidas finas”. Lembrando que, na Idade Média, roupas coloridas eram artigos caros, por causa das técnicas de tinturas do tecido. Por último, Francisco deixa claro que o discernimento último do frade itinerante deverá ser a sua consciência: “mas cada qual julgue e despreze antes a si mesmo”.
“Francisco queria formar Frades Menores, que não fossem fanáticos a respeito da pobreza ou reformistas presunçosos, que se julgavam superiores aos outros. Por isso, como demonstra o texto da Regra, a pobreza deve sempre aliar-se à humildade, à disposição íntima de querer ser pobre. Ambas as virtudes se postulam mutuamente” (Diretório da Regra, p. 146).
“Realmente, a pobreza evangélica só pode ser protegida, conservada e aperfeiçoada pelo homem humilde, que não despreza nem condena os outros, mas que se julga a si mesmo, quando considera a graça e a vocação que de Deus recebeu!” (Diretório da Regra, p. 146).
Bibliografia:
DIRETÓRIO DA REGRA. Editado, como manuscrito, pelos Franciscanos da Alemanha. Tradução de Padre Valdomiro Pires Martins. Petrópolis, RJ: Vozes, 1958.