A carta original de Honório III é um documento perfeitamente legível, escrito em folha de pergaminho, que inclui o texto da Regra devidamente autenticado e registrado.
Frei Hilton Farias de Souza – Ministro Provincial
Capítulo V – O modo de trabalhar
“Aqueles irmãos aos quais o Senhor deu a graça de trabalhar, trabalhem fiel e devotamente, de modo que, afastado o ócio que é inimigo da alma, não extingam o espírito da santa oração e devoção, ao qual devem servir as demais coisas temporais. Quanto ao salário do trabalho, recebam para si e para seus irmãos as coisas necessárias ao corpo, exceto moedas e dinheiro; e isto humildemente, como convém a servos de Deus e a seguidores da santíssima pobreza.”
No seu Testamento, Francisco diz: “E eu trabalhava com as minhas mãos e quero trabalhar. E quero firmemente que todos os outros irmãos se ocupem num trabalho honesto. E os que não souberem trabalhar o aprendam, não por interesse de receber o salário, mas por causa do bom exemplo e para afastar a ociosidade. E se acaso não pagarem pelo trabalho, vamos recorrer à mesa do Senhor e pedir esmola de porta em porta” (Test, 20-22). Francisco ilustra bem nesse trecho do seu testamento o valor fundamental do trabalho manual, que deve ser visto como “graça”; aqueles irmãos que chegavam para compartilhar esse gênero de vida deviam se ocupar de um trabalho honesto, e os que não sabiam trabalhar deveriam aprender, não por interesse de um salário, mas para a manutenção comum; tinha consciência de não serem onerosos ao povo (Cf. 2Cel, 161).
É um trabalho que se caracterizava pela necessidade de receber o suficiente para a sobrevivência, uma vez que a maioria desses trabalhos era muito simples, como ajuda na colheita de azeitonas, nos afazeres do campo de modo geral. Talvez, por trás dessa expressão “trabalho honesto”, encontra-se um pensamento contra as relações extremamente verticais e de submissão dos vassalos para com os proprietários dos feudos, trabalho muitas vezes de exploração extrema.
O trabalho funcionava também como uma dimensão espiritual e terapêutica, entre tantas funções a de afugentar a ociosidade; Francisco insiste para que os irmãos “não extingam o espírito da santa oração e devoção, ao qual devem servir as demais coisas temporais”, ou seja, o trabalho na perspectiva franciscana não pode correr o risco de extinguir a dimensão da espiritualidade. Por isso podemos falar de uma “espiritualidade do trabalho manual”, partindo sobretudo dos escritos de Francisco, como o testamento e as duas regras. Francisco alerta, em outros lugares das Fontes Franciscanas, para a situação dos irmãos chamados “moscas”, que queriam viver do trabalho dos outros. É uma situação totalmente rechaçada por ele, porque, como mostra Tomás de Celano, o irmão zangão não colabora com o trabalho das abelhas, mas quer saborear o mel (Cf. 2Cel, 75).
A capacidade e a possibilidade de trabalhar são uma graça de Deus; quem a recebeu deve corresponder-lhe com amor e dedicação à vontade de Deus. “E seja-lhes permitido ter as ferramentas e os instrumentos apropriados ao seu ofício. Todos os irmãos procurem empenhar-se nas boas obras, porque está escrito: “Faze sempre algo de bom, para que o demônio te encontre ocupado”. E também: “A ociosidade é inimiga da alma”. Por isso, os servos de Deus devem sempre persistir na oração ou em alguma boa obra” (RnB 7, 9-12).
O recurso à mendicância é uma alternativa que só pode ser exercitada quando não é suficiente a remuneração do trabalho dos irmãos. Na literatura do movimento chamado “Espiritual”, encontramos uma reflexão que diz mais ou menos assim: a esmola é um direito dos pobres, os frades que vivem exclusivamente desse recurso estariam defraudando aquilo que é um direito dos pobres.
No Regra de 1221, há um capítulo específico, o IX, intitulado “Do pedir esmolas”, em que se convidam os frades, diante dessa necessidade, a não se envergonharem dessa prática, colocando como referência Jesus Cristo, o Filho de Deus vivo, que “foi pobre e hóspede e viveu de esmolas”, como também a sua mãe e os seus discípulos. “E quando os homens lhes causarem vergonha e não lhes quiserem dar esmola, deem por isso graças a Deus […]” (Cf. RnB 9).
Francisco queria, pois, que todos os irmãos ajudassem com suas atividades para a manutenção comum, para que, conforme declarou certa vez, “não fossem onerosos ao povo” (Cf. 2Cel 75 e 161). Nessa linha segue o pensamento de São Paulo, que, além de seu trabalho de evangelizador, trabalhava como fabricante de tendas para não ser um peso para a comunidade.
“Como convém a servos de Deus e seguidores da santíssima pobreza” (RB 5,5). Com essa última frase do quinto capítulo, Francisco retorna ao que dissera na primeira do mesmo capítulo. O trabalho é uma graça, uma incumbência de Deus. Em última análise, Deus é quem ajusta o homem que trabalha, o servo de Deus. Pelo nosso trabalho, servimos a Deus. A Deus, portanto, não podemos fazer reivindicações” (Diretório, 166).
Capítulo VI – Que os irmãos não se apropriem de nada; o modo de pedir esmola e os irmãos enfermos
“Os irmãos não se apropriem de nada, nem de casa, nem de lugar, nem de coisa alguma. E como peregrinos e forasteiros neste mundo, servindo ao Senhor em pobreza e humildade, peçam esmola com confiança; e não devem envergonhar-se, porque o Senhor se fez pobre por nós neste mundo. Esta é aquela sublimidade da altíssima pobreza que vos constituiu, meus irmãos caríssimos, herdeiros e reis do reino dos céus, vos fez pobres de coisas, vos elevou em virtudes. Seja esta a vossa porção que conduz à terra dos vivos. Aderindo totalmente a ela, irmãos diletíssimos, nenhuma outra coisa jamais queirais ter debaixo do céu em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. E onde estão e onde quer que se encontrarem os irmãos, mostrem-se mutuamente familiares entre si. E com confiança um manifeste ao outro a sua necessidade, porque, se a mãe nutre e ama a seu filho carnal, quanto mais diligentemente não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual? E se algum deles cair enfermo, os outros irmãos devem servi-lo como gostariam de ser servidos.”
A. A não apropriação e a esmola
Falando do tema da “não apropriação”, na sua reflexão sobre a Regra de 1223, Giuseppe Buffon assim se expressa: “É a arte de andar sem coisa alguma. Não equivale à pobreza, vocábulo que Francisco não usa tanto como Clara. Não é somente a renúncia ao direito da propriedade, que para Francisco reserva a Deus somente, o único capaz de exercitá-lo sem afetar o bem comum, […]. É próprio o “não” que inclui a inexprimível radicalidade do “não se apropriem de nada” (BUFFON, 101-102).
Todas essas situações evidenciam que Francisco conferia aos irmãos o uso das coisas necessárias à sua vida e ocupação, mas sob o absoluto reconhecimento dos direitos soberanos de Deus. Os frades menores, devem, pois, renunciar a tal uso e só podem continuá-lo se dele resultar alguma quebra da caridade (Cf. Diretório, 171).
O peregrino e viandante está sempre a caminho. Quando se detém em algum lugar, ali fica só como hóspede. Por essa razão, Francisco não queria domicílio para seus frades nem os fixar num lugar. Não deviam viver dos frutos de seus próprios imóveis, nem de suas propriedades, nem de quaisquer rendimentos fixos. Em seus caminhos, deviam ganhar a vida pelo trabalho. Quando isso não bastasse, deviam eles recorrer “à mesa do Senhor” e pedir esmola de porta em porta, como faziam os outros pobres. Na mente de Francisco, o esmolar é uma expressão de sua fé viva na providência divina (Cf. Diretório, 172-173).
Francisco propõe a esmola como manifestação da nova cidadania instaurada por Cristo, que comporta a itinerância do abaixamento; não só o andar, mas o descer por um rebaixamento da hierarquia econômica, social e política, inaugurada pelo Cristo pobre e da Virgem pobre (Cf. BUFFON, p. 104).
A esmola não pode ser considerada uma profissão, uma atividade de recolhimento de fundos. O antídoto a toda derivação ideológica está próprio na interpretação da esmola à luz da vida de Cristo e da Virgem, sua mãe. Para Francisco, de fato, somente a vida segundo o Evangelho pode tornar-se regra do caminho em direção à terra dos vivos. (Cf. BUFFON, 104-105)
A mendicância é um meio que auxilia, presta um auxílio de prover o sustento dos irmãos, quando não receberem pelo trabalho; nesse caso, Francisco diz: “recorramos à mesa do Senhor, pedindo esmola de porta em porta” (Test, 22).
Temos aqui na Regra dois pensamentos prediletos de Francisco que formaram e caracterizaram profundamente toda a sua vida cristã.
1. O modelo de Jesus Cristo. Francisco não se cansava, portanto, de exortar os irmãos a que fizessem da pobreza de Jesus Cristo o fundamento de sua própria vida. Certa vez diz Francisco ao cardeal Hugolino: “Possuo a realeza e a extraordinária nobreza de seguir aquele Senhor, que, sendo rico, se fez pobre por nosso amor” (2Cel, 73).
2. O caráter escatológico da pobreza. “Seja esta a vossa porção que conduz à terra dos vivos” (Cf. Sl 141, 6). Para Francisco, a pobreza é a senha do homem esperançado. Ela conserva viva no cristão a nostalgia de sua verdadeira pátria, a terra dos vivos (Cf. 2Cel, 74).
B. E onde estão e onde quer que se encontrem os irmãos, mostrem mutuamente familiares entre si
Em todo o lugar onde se acharem ou encontrarem os frades, deverão comportar-se como membros da mesma família. O amor mútuo substituirá o aconchego familiar. A caridade fraterna compensará a ausência da casa, do lar e do convento.
A comparação com o amor materno em relação ao filho, amor que deve ser superado pela caridade fraterna, bem frisa a importância desse aviso. O amor mais que maternal dos irmãos servirá de amparo e conforto aos frades menores sem lar e sem pátria.
Se alguém, durante a caminhada, adoecer e cair de cama, incapaz de prosseguir com os outros no caminho da itinerância, então os frades deverão cuidar dele; no amor e dedicação ao confrade enfermo é que justamente se manifesta a caridade.
“Bem presente a toda a tradição cristã e a legislação monástica, a normativa sobre o cuidado dos irmãos enfermos assume na experiência franciscana um tom particular, seja pelo contexto de itinerância, seja pelo acento familiar, materno, caro ao mesmo cantor da Mãe Terra. O cuidado pelo enfermo harmoniza a dimensão teológica do dom do irmão com atenção concreta, materna, que inclui também uma atitude psicológica, afetiva, corpórea e não só mental, espiritual: uma horizontalidade teológica” (BUFFON, 110).
Francisco experimentou muitas vezes os rigores e os limites da enfermidade, por isso sabia valorizar o cuidado que dá aos enfermos. Os termos cuidado e nutrir, usados por Francisco na direção dos irmãos enfermos, remete-nos a um tom familiar (Cf. Uribe, 213).
“Peregrinos e forasteiros nesse mundo”: é essa cidadania, a cidadania evangélica, mais que sociológica e política, que Francisco atribui aos frades menores. Reafirma a identidade itinerante da fraternidade minorítica. O ser peregrino e forasteiro é a condição essencial dos seguidores de Cristo – ele mesmo definiu-se como o “caminho” (Jo 14,6) –, chamados a andar pelo mundo como cidadãos não residentes” (BUFFON, 102-103).
“Francisco não fala de ‘não uso’ das coisas, mas da ‘não apropriação’, a qual por si mesma vai mais além da simples tendência de algo, pois para ele não se reduz à incapacidade de exercitar atos jurídicos como proprietários. A expressão ‘não apropriar-se’ supera inclusive o significado que geralmente se dá ao termo ‘pobreza’, relativamente pouco usado nos escritos do santo, talvez por seu conteúdo jurídico. O alcance de ‘não apropriação’ é muito mais profundo, pois tem repercussões bíblicas e tem semelhanças com os termos cristológicos chamados de aniquilamento. Segundo Francisco, o único capaz de apropriar-se é Deus, posto que é o dono de tudo, ‘o pleno bem, todo bem, total bem, verdadeiro e sumo bem’ (RnB 23,9); nós nunca podemos reservar para nós mesmos os bens que a Ele pertencem; ao contrário, devemos devolvê-los e reconhecer que todos os bens são dele (RnB 17,7)” (URIBE, 193-194).
O sexto capítulo da Regra funde, portanto, a vida dos irmãos nos moldes do Evangelho. Numa vida de pobreza, moldada na comunhão fraternal, devem eles ficar livres para o serviço de Deus, totalmente desapegados das coisas terrenas, como “peregrinos e viandantes” que servem a Deus “em pobreza e humildade” (Cf. Diretório, 182).
Capítulo VII – A penitência a ser imposta aos irmãos que pecam
“Se algum dos irmãos, por instigação do inimigo, pecarem mortalmente – no caso daqueles pecados sobre os quais fora estabelecido entre os irmãos que se recorra somente aos Ministros Provinciais –, sejam obrigados os referidos irmãos a recorrer a eles o mais depressa que puderem, sem demora. Os ministros, no entanto, se são presbíteros, com misericórdia lhes imponham a penitência; se, porém, não são presbíteros, façam com que lhes seja imposta por outros sacerdotes da Ordem, como lhes parecer melhor segundo Deus. E devem acautelar-se para não se irar ou se perturbar por causa do pecado de alguém, porque a ira e a perturbação impedem a caridade em si e nos outros.”
Considera-se agora o caso de alguém entre os irmãos pecar gravemente, adoecendo na sua alma. Deverá então voltar sem demora para o seu Ministro que o mandou. Deverá correr o quanto puder, a fim de obter a cura junto daquele a quem fora entregue o cuidado dos irmãos. A cura encontra-se, pois, dentro do espírito da fraternidade. Vale, no entanto, a norma: não segundo prescrições legais, mas em responsabilidade atenciosa diante de Deus.
Todo frade menor está sempre em perigo de retornar ao próprio “eu”, isto é, de “viver segundo a carne e não segundo o espírito”.
O sétimo capítulo da Regra leva, portanto, os frades menores a viverem segundo a norma do Santo Evangelho, sob mais um ponto de vista, porquanto lhes manifesta amor e compaixão para com os pecadores, a exemplo de Cristo. Só quando esse amor de Cristo se conserva vivo e atuante nos homens, é que a comunidade de irmãos, convocada em seu nome, põe-se em marcha para estabelecer o seu Reino.
“Esta é a única passagem da Regra Bulada que faz alusão à vida sacramental dos irmãos e, de maneira exclusiva, ao sacramento da reconciliação; com tudo é uma alusão fragmentária, pois não se refere a todo o sacramento, mas somente à confissão de alguns pecados reservados aos Ministros Provinciais. A forma aqui prevista para a reconciliação do irmão que peca se inscreve de forma genérica dentro do regime penal existente em toda a legislação monástica precedente, que em alguns casos era rígida ao extremo. De forma um pouco mais específica, entra nos costumes penitenciais antigos, segundo os quais em várias Ordens monásticas se deviam confessar os próprios pecados ao superior e, em alguns casos, ainda certos pecados graves que já haviam sido confessados a outro sacerdote em caso de necessidade” (URIBE, 219).
Comentando o conteúdo da Regra de 1221, no capítulo 5, 5-8, o estudioso de Franciscanismo Fernando Uribe demonstra uma evolução no tema da penitência: “os irmãos devem admoestar e corrigir o irmão que age segundo a carne, e se esse não muda depois da terceira admoestação, deve ser enviado a seu ministro, que decidirá como melhor pareça que convém segundo Deus. Nem os irmãos, nem o ministro devem perturbar-se ou irar-se por causa do pecado ou o mal do outro. Parte-se de uma noção subjetiva do pecado; fala-se de uma maneira ampla de pecados reservados, de “proceder segundo a carne e no espírito”. Aponta um procedimento não propriamente jurídico, mas inspirado na correção fraterna ensinada por Jesus no Evangelho, na qual os irmãos têm um papel quase tão importante como o ministro” (URIBE, 220).
Na Carta a um Ministro 9-20, cuja parte central se refere a uma proposta que Francisco fará no próximo Capítulo de Pentecostes – de sintetizar todos os capítulos da Regra que falam dos pecados mortais em um só –, segue o seguinte procedimento: “o irmão que peca deve recorrer por obediência a seu guardião; os irmãos não devem condená-lo e o devem enviar ao custódio com um companheiro; o custódio o deve atender com misericórdia; se o pecado é venial, deve ser confessado a um irmão sacerdote, e se não tiver, a um outro irmão, até encontrar um outro que o absolva canonicamente; não se pode pôr outra penitência senão esta: ‘vá e não peques mais’”. Nesse caso há um pouco mais de procedimento jurídico; faz-se a distinção entre pecado mortal e venial, entre confissão sacramental e leiga, entre absolvição canônica e imposição de penitência, é um procedimento que tem como inspiração básica a correção fraterna do Evangelho (Cf. URIBE, 221).
Quando o texto da Regra traz o caso de pecados reservados, deve-se recorrer somente aos Ministros Provinciais. Pode ser que se trate de pecados mortais. Esse recorrer somente aos Ministros Provinciais. Quais são? Trata-se de pecados cuja absolvição e castigo deveriam ser regulados pelo Ministro Provincial (Argumentação de Esser). Poderia se concluir que, já no ano de 1223, cada Província tinha a sua lista de pecados reservados, para além da Regra, já existiam na Ordem outros estatutos que regulavam determinadas situações da vida comum (Hardick).
A hipótese mais plausível seria pensar que, nesse caso, a Regra está fazendo uma alusão ao direito comum dos religiosos, como se deduz da linguagem empregada, que reflete rastros da literatura monástica precedente (URIBE, 223). Essa alusão genérica aos pecados reservados aos Ministros Provinciais, que não são definidos, é uma novidade com relação à Regra de 1221.
Outro elemento interessante nesse capítulo é a insistência na escolha de preferência aos sacerdotes de nossa Ordem para confessar os pecados.
É importante destacar o critério que deve guiar os ministros na aplicação da norma. Quando o ministro é sacerdote, a Regra diz que deve impor a penitência com misericórdia. Nesse caso, “misericórdia” significa que a aplicação da penitência não se deve fazer com a atitude de juiz que condena, mas como quem exerce um ofício pastoral, cuja tarefa é tratar de escrutar o querer de Deus para a recuperação do irmão que pecou (Cf. URIBE, 227).
“Como melhor lhes parecer segundo Deus”. Pode ser interpretado como o exercício da misericórdia, mas agrega um novo elemento de grande valor, pois convida à equidade e ao discernimento evangélico. Segundo isso, deve-se tratar quem peca colocando-se na perspectiva de Deus, que prefere a misericórdia ao sacrifício, e Jesus Cristo disse que “os sãos não precisam de médico, mas os enfermos”. A função dos ministros é mais pastoral que de um juiz; sua tarefa não é condenar, mas redimir, segundo os ensinamentos tão humanos que nos deixou Francisco, como na Carta a um Ministro (Cf. URIBE, 227).
“Impor penitência com misericórdia” não se reduz a cumprir friamente um código penal, mas implica “ter piedade com o coração” e preocupar-se em aplicar a medicina que necessita o irmão moralmente enfermo, para que assuma em plenitude a graça redentora de Cristo (Cf. URIBE, 227).
“E devem acautelar-se para não se irar ou se perturbar por causa do pecado de alguém, porque a ira e a perturbação impedem a caridade em si e nos outros.” Predomina o gênero literário exortativo; aqui se retomam os parâmetros teológicos que devem guiar o cuidado do irmão que peca. A exortação é dirigida tanto aos ministros como aos demais irmãos. (Cf. URIBE, 228).
Capítulo VIII – A eleição do Ministro Geral desta fraternidade e o Capítulo de Pentecostes
“Todos os irmãos devem ter sempre um dos irmãos desta Religião como Ministro Geral e servo de toda a fraternidade e estejam firmemente obrigados a obedecer-lhe. Afastando-se este [do cargo], faça-se eleição do sucessor pelos ministros provinciais e custódios no Capítulo de Pentecostes, no qual os ministros provinciais estejam sempre obrigados a reunir-se, onde quer que for estabelecido pelo ministro geral; e isto uma vez em três anos ou em outro prazo maior ou menor, como for ordenado pelo referido ministro. E se em algum tempo parecer à totalidade dos ministros provinciais e custódios que o mencionado ministro não dá conta do serviço e da comum utilidade dos irmãos, estejam obrigados os ditos irmãos, aos quais compete a eleição, a eleger para si, em nome do Senhor, um outro como custódio. Depois do Capítulo de Pentecostes, no entanto, pode cada ministro e custódio, se o quiser e se lhe parecer conveniente, convocar seus irmãos para um Capítulo em sua custódia, uma vez no mesmo ano.”
“Se Francisco, nos capítulos precedentes da Regra, lançou, de certo modo, os alicerces espirituais de sua fraternidade, passa agora a tratar de sua estrutura exterior, justamente de sua organização. O que Francisco diz a respeito de organização são dados muito escassos e destituídos de bastante clareza” (Diretório, 190).
“A Regra não foi concebida como um estatuto de normas e que para muitos aspectos práticos supõem uma prática não codificada, que se dará no futuro quando serão redigidas as Constituições” (URIBE, 235).
Pela própria regra, pouco sabemos das atribuições do Ministro Geral. Dos encargos dos Ministros Provinciais, a Regra só nos diz que lhes cabe admitir os candidatos na Ordem, impor penitência aos irmãos que pecam, eleger oportunamente o Ministro Geral em Capítulo Geral e convocar o capítulo regularmente em suas províncias.
“Tanto nesse capítulo VIII como no Testamento, Francisco faz da obediência à Regra suprema: ‘E quero firmemente obedecer ao Ministro Geral dessa fraternidade e a qualquer outro guardião que lhe aprouver dar-me. E quero de tal modo estar preso em suas mãos que eu não possa andar ou agir fora da obediência e da vontade dele, porque ele é meu senhor’ (Test, 27-28). Para Francisco, a obediência garante a autêntica não apropriação (Cf. Adm 3,1-4)” (BUFFON, 120).
O centro da fraternidade não é de fato a autoridade, mas a obediência, na qual se é recebido abraçando a Regra minorítica, através de uma escuta recíproca de todos juntos da vida que é Deus.
1. O Ministro Geral
“O cargo do Ministro Geral foi idealizado na Regra como vitalício. Caetano Esser disse que esse cargo foi idealizado assim pela Ordem quiçá devido à promessa de fidelidade feita por Francisco ao Papa, segundo aparece no início das duas Regras, a qual não somente estabelece vínculos jurídicos como também pessoais” (Cf. URIBE, 241). Pelo teor da Regra, é só depois de sua morte que o próximo Capítulo Geral elege o sucessor. Esse Ministro Geral é “frater inter fratres”; seu ofício constituiu serviço em prol de todos. A designação de seu ofício é baseada no evangelho (Mt 20,25-27). O Ministro Geral deve servir a todos como servo e empregado. Tem a responsabilidade do cuidado sobre toda a fraternitas. A autoridade do Ministro Provincial se restringe a certos territórios.
Sobre o ofício do Ministro Geral, confira (2Cel, 184-186). Como “pai dessa família”, o Ministro Geral tem primordial obrigação de ser frade menor para todos, mais particularmente o menor entre os frades.
A Regra não dá precisões sobre a condição eclesial do Ministro Geral, não especifica se deve ser clérigo ou leigo; diz simplesmente que deve ser “um dos irmãos” e imediatamente agrega que seja dessa “Religião” (Ordem). Pouco mais adiante, esclarece que deve ser o ministro de toda a “Fraternidade” (URIBE, 236). Os frades “estejam obrigados a obedecer-lhe firmemente” – “Se trata de um princípio que, no âmbito franciscano, não se aplica em sentido verticalista, como pode acontecer em qualquer instituição militar, mas se deve colocar sempre dentro de algo que é anterior, o espírito de fraternidade, ou melhor, da obediência mútua, que nasce da concepção da vida como ob-audientia” (Cf. URIBE, 240).
1.1 Destituição do Ministro Geral
Se o referido Ministro não satisfaz o serviço e comum utilidade dos irmãos, a sua idoneidade é avaliada segundo a capacidade de servir ao bem comum. Quem não cumpre os requisitos essenciais pode ser destituído, pois não é idôneo.
A eleição do novo Ministro Geral, identificado nesse caso como “custódio”, deve ser feita “em nome do Senhor”, expressão que foi utilizada para iniciar a Regra e que tem nos escritos de Francisco um profundo sentido teológico. Isso pode indicar que não devem guiar-se por estratégias humanas nem cair nos jogos políticos, tão frequentes em acontecimentos desse tipo. Deixar guiar pela ação do Espírito do Senhor, conscientes de que os cargos em que se confiaram com a eleição, tanto do Ministro Geral, como do Ministro Provincial, não são privilégios, mas encargo delicado.
Essa seção de uma espécie de “impeachment” do Ministro Geral é uma novidade, não estava presente na Regra de 1221; marca uma evolução em matéria de estruturas de governo da fraternidade (Cf. URIBE, 248-249).
2. O Ministro Provincial
Com o rápido crescimento da Ordem em todos os países cristãos, evidenciou-se em pouco tempo que só o ofício de Ministro Geral não era suficiente. O ofício de Ministro Provincial não era vitalício e podia, em qualquer tempo, ser assumido por outros irmãos. Além de cuidarem dos irmãos da província, competia aos Ministros Provinciais, como indica o presente capítulo da Regra, eleger o Ministro Geral.
É concedido aos provinciais o direito de vigilância sobre o Ministro Geral. Quando parecer à totalidade que o Ministro Geral não seja idôneo para o serviço e o bem comum dos irmãos, então os provinciais têm o dever e o direito de eleger outro.
Francisco não quis, certamente, regular todos os detalhes, para que uma organização por demais rígida não tolhesse a livre ação de Deus no desenvolvimento posterior da Ordem.
Depois de os Ministros Provinciais terem voltado do Capítulo de Pentecostes, poderiam, por sua vez, convocar o Capítulo Provincial, se lhes parecesse oportuno, com todos os irmãos das suas províncias. O Capítulo Provincial deveria ser um momento de encontro de todos os irmãos em torno de seu ministro. Nessa ocasião, o Ministro Provincial poderia pô-los a par de todas as decisões e deliberações acontecidas no Capítulo Geral. Essa foi certamente a razão para fixar o Capítulo Provincial depois do Capítulo de Pentecostes. O Capítulo Provincial deveria manter o vínculo de unidade entre toda a fraternidade e a fraternidade na província.
3. Os Capítulos
O IV Concílio de Latrão, em 1215, prescrevera que os superiores das Ordens Monacais dos respectivos Reinos e Províncias se reunissem em capítulo, a cada três anos. Era uma tradição inspirada na prática da Ordem dos Cistercienses, que se reuniam de três em três anos no chamado Capítulo Geral. Parece também que a jovem Ordem dos Frades Menores, em perfeita obediência à vontade da Igreja, executou a prescrição em bases sólidas. Já havia antes o costume de convocar ocasionalmente todos os irmãos, que viviam dispersos uns dos outros. Mas, de acordo com o costume da Ordem, criou-se logo um Capítulo Geral, a que compareciam todos os Ministros Provinciais com o Ministro Geral; e também um Capítulo Provincial, em que todos os irmãos de uma província se punham em contato com seu Ministro Provincial (Cf. Diretório, 194).
“Na época anterior à fixação local dos irmãos, era muito relevante a função desses capítulos. Constituíam um elo forte que estreitava uma comunidade aliás frouxamente ligada. Deviam consolidar nos irmãos a consciência de uma solidariedade comunitária, ameaçada em si pelas próprias circunstâncias. Sendo convocados, com frequência depois do Capítulo Geral, propiciavam também a ótima ocasião de comunicar seus decretos e resoluções a todos os irmãos nas diversas províncias. Formavam um órgão não só de ligação dos irmãos entre si, mas também de sua unificação para o governo da Ordem inteira. Garantiam, portanto, uma vida unitária entre os irmãos de todo o mundo” (Diretório, 194).
A Carta de Francisco a um Ministro mostra-nos que os capítulos desde cedo tinham autoridade consultiva e legislativa. Muitas coisas eram, pois, determinadas pela vida que o movimento de fato levava. Nesses problemas, Francisco deixava larga margem à evolução dos acontecimentos. Fixava apenas as normas gerais, e deixava o mais à ação de Deus e de seus irmãos (Cf. Diretório, 194-195).
“A última tarefa dos Capítulos Provinciais vem expressa num curto inciso da RnB 18: O Ministro deve reunir-se com os seus irmãos, “para tratarem das coisas que se referem a Deus”. Nos capítulos, o Ministro, a quem “está confiada a cura das almas dos irmãos”, deve esforçar-se por firmar os irmãos em sua vida toda de Deus. Os capítulos eram dias de meditação e recolhimento, durante os quais os irmãos deviam de novo preparar-se para a grande finalidade de sua vocação. Nos capítulos, deveriam os Ministros interessar-se por cada um dos irmãos individualmente, para que nenhum deles se perdesse” (Diretório, 195).
Nas entrelinhas do texto, pode-se supor que, após a morte do Ministro Geral, o Capítulo Geral deve reunir-se para a eleição de um novo Ministro Geral. Os eleitores do sucessor são os Ministros Provinciais e Custódios, reunidos por ocasião da Festa de Pentecostes. O texto nesse ponto não é muito claro, pois fala que o Ministro Geral é que deve indicar o lugar onde se deve realizar o Capítulo e a sua periodicidade. “Estamos, portanto, diante de uma formulação pouco clara e, por isso mesmo, pouco jurídica, com grandes lacunas, como não especificação de quem deve convocar o Capítulo para a eleição de um novo Ministro Geral, quando morre o que está no cargo, ou não suficiente clareza quando se refere aos custódios, não mencionados sempre ao lado dos Ministros Provinciais, o não dizer quem os elege, ou no fixar qual é a finalidade precisa dos capítulos ordinários de cada três anos” (Cf. URIBE, 241-242).
3.1 Capítulo de Pentecostes
A Carta a um Ministro, escrita em torno de 1220, traz que o Capítulo era celebrado nesse período e tinha as seguintes características: fazia-se por ocasião de Pentecostes; participavam tanto os ministros como todos os irmãos; uma das finalidades era colocar em dia a Regra e resolver os problemas relacionados com a vida fraterna (Cf. URIBE, 242).
A opção de Francisco de celebrar o Capítulo Geral por ocasião da festa de Pentecostes tem um profundo significado teológico, porque coloca a assembleia dos irmãos em linha desse primeiro fermento da Igreja que foi a comunidade apostólica, reunida no cenáculo e fortalecida pelo fogo do Espírito Santo. Para Francisco, os Capítulos tinham uma função mais formativa que administrativa (URIBE, 243).
Esses primitivos capítulos apresentavam os seguintes elementos comuns: os irmãos dão graças a Deus pelo encontro; contam as bondades que Deus fez por meio deles; pedem perdão pelas faltas cometidas; comem em comum com alegria; escutam as exortações de Frei Francisco, escrevem suas constituições com o conselho de santos varões, distribuem os irmãos nas diversas províncias para que preguem ao povo (Cf. URIBE, 243).
“Dada a apostolicidade, característica fundamental da Ordem, a sua divisão em províncias, os capítulos gerais tinham, por sua própria natureza, uma importante função unificadora” (URIBE, 244).
3.2 Observações acerca de algumas terminologias
Nem sempre o termo “ministros” aparece acompanhado do adjetivo “provinciais”, pode ser que algumas de suas funções poderiam referir-se também ao Ministro Geral; o ofício pode ser exercido por qualquer um dos irmãos, leigos ou presbíteros; sua responsabilidade se inscreve antes de tudo no âmbito pastoral, por isso devem vigiar que os irmãos vivam segundo a vontade de Deus, visitem com frequência, admoeste-os, corrija-os e confortem; não ordenem nada contra sua alma ou a Regra, acolham benignamente os que tiverem pecado, impondo a penitência se são sacerdotes ou procurem que outros a imponham, enviem ao Cardeal Protetor os que não recitem o Ofício segundo a Regra ou não sejam católicos. Do ponto de vista administrativo, podem ter o poder delegado do Ministro Geral para receber os aspirantes, conceder o hábito da provação, receber a profissão. Ademais, designam os lugares de moradia dos irmãos, cuidam das necessidades materiais e dos enfermos, concedam a permissão de ir em missão entre os infiéis; podem convocar uma vez a cada três anos o Capítulo Provincial, devem convocar o Capítulo de Pentecostes e têm a faculdade de eleger o Ministro Geral e de avaliar sua conduta até o ponto de poder substituí-lo por outro, devem pedir à Igreja um Cardeal protetor de toda a Ordem (Cf. URIBE, 246).
“Custódios” – A palavra nem sempre acompanha “Ministros Provinciais”, é aplicada também ao Ministro Geral e se fala de “custódias” como sinônimo de províncias.
“A opinião comum é que, no tempo de Francisco, os custódios eram encarregados de pequenas circunscrições compostas por alguns lugares ou casas, onde habitavam os irmãos. Formavam parte das províncias, que podiam ter mais de uma custódia. Porém, tanto sobre esse ofício como o dos ministros faltam dados, como os relacionados com sua eleição, suas competências e a duração de seus cargos” (URIBE, 247).
“E nenhum ministro […] se aproprie do ministério dos irmãos ou do ofício […], mas, em qualquer hora que lhe for ordenado, deixe o seu ofício, sem nenhuma contestação” (Cf. RnB, 17, 4). A razão de fundo é o princípio da desapropriação que, segundo o santo, deve acompanhar também o exercício da autoridade, como o disse na sua admoestação: “Os que são constituídos sobre os outros, gloriem-se tanto daquela prelatura como se estivessem delegados para o ofício de lavar os pés dos irmãos. E quanto mais se perturbam por lhes tirarem a prelatura do que do ofício de lavar os pés, tanto mais bolsas acumulam para si com perigo para a alma” (Adm, 4, 2-3).
4. Capítulos Provinciais
Após o Capítulo de Pentecostes, cada ministro e custódio, em particular, pode, se quiser e lhe parecer conveniente, convocar em suas custódias os seus irmãos para o Capítulo, uma vez no mesmo ano. “Uma vez” depois de Pentecostes – parece que os Capítulos Provinciais seguiam o ritmo trienal, por ocasião da festa de São Miguel, como atesta a Regra de 1221, no capítulo 18: “Todo ano, cada ministro pode reunir-se com seus irmãos onde lhes aprouver, na festa de São Miguel Arcanjo, para tratarem das coisas que se referem a Deus”.
Aqui, “Custódia” parece ser equivalente a “província”, pois não se têm notícias de Capítulos Custodiais celebrados naquele período.
O Capítulo VIII não estabelece a finalidade específica do Capítulo Provincial, porém ao propô-lo após o Capítulo Geral, pode-se deduzir uma certa relação com ele, talvez com a intenção de comunicar e explicar aos irmãos das províncias o acontecido na assembleia geral, com a finalidade de interiorizar e pôr em prática as determinações capitulares para toda a Ordem. Dessa forma, buscava-se, por uma parte, fomentar os vínculos com toda a Ordem e, por outro, fortalecer os da fraternidade provincial. Mas a finalidade mais importante é a que sinaliza a RnB, 18,1, em que, com poucas palavras, aponta a tarefa fundamental dos irmãos: “para tratarem das coisas que se referem a Deus”.
Referências bibliográficas:
BUFFON, Giuseppe. La Regola di Francesco spiegata ai semplici. Milano, TS Edizioni: 2023.
DIRETÓRIO DA REGRA. Editado, como manuscrito, pelos Franciscanos da Alemanha. Tradução de Padre Valdomiro Pires Martins. Petrópolis, RJ: Vozes, 1958.
URIBE, Fernando. La regla de San Francisco. Letra y espíritu. Murcia, Editorial Espigas: 2006.