O elemento que une tão estreitamente esses corações é o amor ao mesmo Cristo pobre desde o nascimento, pobre durante toda a sua vida e pobre e crucificado no fim da vida.
Frei Celso Márcio Teixeira, OFM
Poucos escritos de Santa Clara chegaram até os dias de hoje. Além da Regra, do Testamento e da Bênção, tem-se acesso somente a cinco cartas, sendo quatro dirigidas a Santa Inês de Praga (ou de Boêmia) e outra a Ementrudes de Bruges[1].
Pelo que se pode deduzir da leitura das cartas de Clara, elas são respostas às filhas espirituais que ocasionalmente lhe pedem algum conselho. Lamentavelmente, as cartas de Inês e de Ermentrudes dirigidas a Clara não foram conservadas; sem dúvida, elas abririam perspectivas mais amplas para a compreensão da relação de Clara com suas discípulas distantes.
1 – Destinatárias
A primeira destinatária de quatro cartas foi Inês de Praga (ou da Boêmia). Nasceu em 1205, filha do rei Otocar I da Boêmia e da rainha Constância da Hungria. Desde a infância fora prometida como noiva a Henrique VII da Alemanha, filho do imperador Frederico II. Como Henrique contraíra matrimônio com Margarida da Áustria, surgiram outros pretendentes, como Henrique II da Inglaterra e possivelmente o próprio Frederico II. Inês, no entanto, renunciou a todas as propostas de matrimônio, com o intuito de abraçar a vida religiosa.
Em 1232, data em que os frades menores, vindos da Alemanha, se estabeleceram em Praga, Inês, ao tomar conhecimento da nova forma de vida religiosa iniciada por Francisco e Clara, sentiu-se atraída por essa novidade. Construiu uma igreja para os frades menores, um hospital com o título de São Francisco para enfermos e pobres e um mosteiro para as Senhoras Pobres. Por volta de Pentecostes de 1234, ela, com o aval do Papa Gregório IX, iniciou a vida do mosteiro com algumas monjas vindas de Trento, certamente para que delas o novo mosteiro absorvesse o modo de vida que Clara levava em São Damião. Inês morreu aos 2 de março de 1282.
A segunda destinatária foi Ermentrudes de Bruges. Pouco se sabe da sua vida. Oriunda de Colônia, Alemanha, ela, querendo dedicar-se a serviço do Senhor, abandona sua pátria por volta de 1240 e, acompanhada por uma serva chamada Vitória, empreende longa peregrinação, passando por Bruges, onde se enclausura em um pequeno lugar de reclusão. Tendo ouvido falar de Clara, depois de doze anos de reclusão, decide peregrinar a Roma e Assis com o objetivo de conhecer Santa Clara. Mas não conseguiu, porque, quando chegou a Roma, ficou sabendo que Clara havia falecido. Voltando a Flandres, Ermentrudes, com a autorização de Inocêncio IV, transformou em mosteiro seu antigo lugar de reclusão. Com o rápido aumento de candidatas, ela se viu obrigada, por volta de 1260, a fundar outros mosteiros, além de várias comunidades que a partir de então se fundavam por faculdade a ela concedida de erigir mosteiros na França e na Alemanha. Sua grande contribuição foi a de ter estabelecido a Ordem de Santa Clara nas regiões do baixo Reno e de Flandres.
Digno de nota é o fato de que Inês e Ermentrudes não conheceram Clara pessoalmente, apenas por correspondência. No entanto, a partir das cartas de Clara a Inês se pode deduzir a profunda amizade existente entre elas. Clara, por exemplo, chama Inês de “outra metade de sua alma” (cf. 4In 1).
2 – Cronologia das cartas
A primeira teria sido escrita em 1234, antes da entrada de Inês na religião; a segunda, enquanto Frei Elias era ministro geral, provavelmente entre 1235-1236, segundo estudiosos; a terceira, em janeiro de 1238, quando Inês pediu ao papa normas sobre o jejum; a quarta, em 1253, pois faz alusão a Inês sua irmã de sangue, já de volta de Florença para São Damião. Quanto à carta a Ermentrudes, ainda não se chegou a uma data aproximativa.
3 – Gênero literário epistolar-exortativo
As cartas de Clara não são apenas respostas a pontuais problemas concretos. Por seu caráter familiar, espontâneo, cheio de calor humano – diferentemente de uma carta oficial ou protocolar –, elas permitem ao leitor penetrar de alguma maneira no pensamento de quem a escreve. Deixam transparecer a alma da pessoa, seus sentimentos íntimos, sua experiência espiritual. Clara, escrevendo de maneira afetuosa às suas irmãs e amigas, comunica, mesmo inconscientemente, seu modo de viver, sua orientação ou seu caminho e sua busca espiritual.
Incentiva ardentemente as irmãs, como se vê, por exemplo, na segunda carta a Inês: “Com andar apressado, com passo ligeiro, com pés sem tropeço, de modo que teus passos nem recolham a poeira,caminha segura, alegre e feliz pela vereda da segura bem-aventurança, não confiando em ninguém,não consentindo com nada que queira afastar-te deste propósito” (2In 12-14).
Toda a carta a Ermentrudes, do princípio ao fim, é uma série de calorosos incentivos, como por exemplo: “Ama de todo o coração a Deus e a seu Filho Jesus Cristo, crucificado por nós, pecadores, e nunca se retire de tua mente a sua recordação;trata de meditar continuamente os mistérios da cruz e as dores da mãe de pé sob a cruz” (Er 11-12).
4 – Conteúdo
Pode-se afirmar sem exagero que das cartas de Clara se pode colher a sua “doutrina” espiritual, embora não sistemática, pelo menos em suas linhas essenciais. Especialmente nas quatro cartas a Inês, Clara revela sua alma contemplativa, os anseios de sua alma. Objeto de sua contemplação é Jesus Cristo sob dois aspectos: o Cristo da kénosis (pobre, crucificado) e os esponsais com Cristo.
a) O Cristo da kénosis
A kénosis do Filho de Deus marcou profundamente a alma de Clara, como tinha marcado a alma de Francisco. Percorrendo de maneira extremamente sintética toda a vida de Cristo, ela coloca diante dos olhos da discípula o Cristo que ela segue, seguimento que propõe à discípula: “Neste espelho resplandecem a bem-aventurada pobreza, a santa humildade e a inefável caridade, como poderás contemplar com a graça de Deus por todo o espelho. Olha com atenção – eu te digo – para o princípio deste espelho, para a pobreza do que foi posto no presépio e envolvido em panos. Ó admirável humildade, ó estupenda pobreza! O Rei dos anjos, o Senhor dos céus e da terra está reclinado em uma manjedoura. No meio do espelho contempla a humildade, pelo menos a bem-aventurada pobreza, as inúmeras fadigas e penas que suportou pela redenção do gênero humano. E no fim do mesmo espelho contempla a inefável caridade com a qual ele quis padecer no lenho da cruz e nele morrer a morte mais ignominiosa (4In 18-23; cf. 2In 20-21).
b) Linguagem e mística dos esponsais com Cristo
O tema dos esponsais com Cristo, tema presente na mística cristã desde os antigos padres da Igreja, mantinha seu vigor na Idade Média. O próprio Francisco o retoma, ainda que “en passant”: “E são esposos, irmãos e mães de nosso Senhor Jesus Cristo. Somos esposos, quando a alma fiel se une pelo Espírito Santo a Jesus Cristo… Como é santo consolador, belo e admirável ter um esposo”! (2Fi 50.55).
É na linha dos esponsais que Francisco considera Clara e suas irmãs, quando na pequena forma de vida dada a Clara ele explicita: “Desposastes o Espírito Santo, escolhendo viver segundo a perfeição do santo Evangelho” (FV). Aqui Francisco atribui a Clara e suas irmãs o mesmo título dado a Santíssima Virgem: Esposa do Espírito Santo (OP.Ant).
Nas cartas de Clara a Inês, ela se refere frequentes vezes a Cristo como esposo (cf. 1In 7; 2In 1; 2In 20; 2In 24; 4In 30). Inês é chamada de “esposa de Cristo” (cf. 4In 1; 4In 7; 4In 8; 4In 15; 4In 17), às vezes de “esposa e irmã” (cf. 3In 1) ou de “mãe, filha e esposa” (cf. 4In 4) ou ainda “esposa, mãe e irmã” (cf. 1In 12. 1In 4).
A linguagem dos esponsais torna-se solene da 2ª carta: “Esta é aquela perfeição com a qual o próprio Rei se unirá a ti no tálamo celeste, onde se senta glorioso em trono de estrelas, porque, desprezando as glórias de um reino terreno e as oblações pouco dignas de um matrimônio imperial, feita seguidora da santíssima pobreza em espírito de grande humildade e de ardentíssima caridade, aderiste às pegadas daquele, a quem mereceste unir-te em matrimônio” (2In 5-7).
Conclusão
As cartas de Clara são pérolas de uma diligente direção espiritual. Nelas, o coração formado no amor e para o amor desconhece distância espacial. São cartas embebidas de afeto e de cordialidade que criam proximidade de almas. Para almas assim formadas, o conhecer-se pessoalmente, o encontro vis-à-vis tornam-se absolutamente supérfluos.
E o elemento que une tão estreitamente esses corações é o amor ao mesmo Cristo pobre desde o nascimento, pobre durante toda a sua vida e pobre e crucificado no fim da vida. Cristo-esposo a ser meditado e recordado por aqueles e aquelas que desejam seguir suas pegadas.
[1] Há estudiosos que colocam em dúvida a autenticidade da carta a Ermentrudes.






![Santa Inês de Assis<a href="#_ftn1" id="_ftnref1">[1]</a>](https://ofm.org.br/wp-content/uploads/2025/11/santa-ines-de-assis-copiar-330x242.jpg)