Clara de Assis: uma eclesiologia sinodal?

Clara de Assis: uma eclesiologia sinodal?

Clara viveu no monastério São Damião aproximadamente 42 anos (1212-1253).

Ir. Teresinha Mendonça Del’ Acqua, OSF.

Franciscana de Maria Imaculada.

Em tempo de ininterrupta avalanche de informações, muitas vezes contraditórias e distante de um humanismo cristão autêntico, de superficial interiorização, intensa dispersão mental, crescente alterofobia, ataques bélicos e verbais, abusos diversos e exclusões múltiplas, Clara de Assis (1194 – 1253), irrompe no cenário histórico Francisclariano com fortes interpelações e, possível desvelamento de hipocrisias sinceras e de ilusões.

Mas em que Clara de Assis, a primeira mulher a identificar-se com a forma de vida de Francisco de Assis (1181-1226), um tanto esquecida por séculos, tem a nos iluminar em relação a um processo de conversão de nossos “corações, relações e estruturas” (doc. final da sessão sinodal de 2024, n.50-56), num contexto sistêmico e midiático abarcado pela Inteligência artificial (IA), sociopolítico-econômico-eclesial tão complexo atualmente?

Por ser mulher, não lhe foi permitido, nem foi conveniente seguir Francisco e seus companheiros na itinerância mendicante, porém a centralidade em Jesus Cristo pobre e crucificado lhe abrasava o coração. Um estilo de vida simples, pobre, de serviço abnegado de auto referencialidade e repleto de fidelidade nas pequenas coisas cada vez mais a atraiu e com ele se identificou.

Embora tivesse que viver num estilo de clausura, a liberdade interior de Clara transcendeu os muros da tradição da época, da história e do monastério São Damião. O mergulho na experiência contemplativa e unitiva com Cristo pobre e crucificado a impulsionou e sustentou no rompimento dos paradigmas convencionais da vida monástica.

Clara vivenciou uma verdadeira conversão em relação às pessoas, as regras monacais pré-estabelecidas, as formas organizacionais e estruturais. Celano, assim a descreu: “Clara foi nobre de nascimento e muito mais pela graça … jovem em idade, mas amadurecida no espírito. Firme na decisão e ardentíssima no amor de Deus. Rica em sabedoria, sobressaiu na humildade. Foi clara no nome, mais clara por sua vida e claríssima em suas virtudes.” (Celano, Vida I de S. Francisco, cap. 8, n.18).

Inspirada na forma de vida de Francisco de Assis, Clara, com sua personalidade forte e decidida criou a própria regra e inaugurou um novo modelo claustral, e, com persistência invencível conseguiu a aprovação da Sé Apostólica. O modus vivendi das denominadas Clarissas foi caracterizado pela pobreza absoluta, pessoal e comunitária, ou seja, viveram sem posse, sem patrimônio, contrariando a prática de outros mosteiros da época.

Para Clara, a necessidade estabeleceu a lei, as regras quanto à vida de penitência e silêncio foram regidas pelo princípio da irmandade/fraternidade. A partir de sua contemplação e identificação com Jesus Cristo acolheu, ouviu e dialogou com atenção e respeito as pessoas, valorizou a pluralidade e motivou a reciprocidade. Certa ocasião escreveu a Inês de Praga: “Ponha a mente no Espelho da eternidade, coloque a alma no esplendor da glória. Ponha o coração na figura da substância divina, e transforme-se inteiramente pela contemplação, na imagem da divindade.” (3ª Carta a Santa Inês).

Em sua originalidade, Clara adotou um estilo de liderança caracterizado pelo serviço evangélico, afirmou e testemunhou que a abadessa não deveria dominar, mas manifestar uma ternura materna, consolar as irmãs aflitas, ser refúgio das atribuladas, estar sujeita às exigências da vida comum como as demais irmãs, ter familiaridade com todas as irmãs e ser a servidora de todas, destacando-se pelas virtudes. (Cf. RSC, 4-5. 11).

Quanto ao amor vivenciado na cotidianidade, em seu Testamento, Clara afirmou que as irmãs deveriam amar-se “umas às outras com a caridade de Cristo, demonstrar por fora, por meio das boas obras, o amor que tem por dentro,” (Test C 59).  De modo mais específico Clara, na Regra 8,6, enfatizou que as irmãs deveriam “amar e nutrir sua irmã espiritual com mais afeto do que uma mãe nutre sua filha carnal.”

Mesmo estando imersa na cultura hierárquica das abadias beneditinas vigentes, Clara, por seu espírito tenaz e combativo, inaugurou uma nova e revolucionária forma corresponsável de tomada de todas as decisões a modo sinodal, ou seja, todas as irmãs eram convidadas a manifestar-se e as decisões eram tomadas com o “consentimento de todas as irmãs” (Cf. RSC 2,1).

Clara viveu no monastério São Damião aproximadamente 42 anos (1212-1253). Porém, com a redescoberta de Clara no século XX, notável pela explosão das comunicações digitais, é curioso, mas, na ótica cristã, não pode ser considerado um mero acaso, o fato de, em 1958, o Papa Pio XII a ter declarado Padroeira da Televisão.

Tal declaração foi inspirada no testemunho de Irmã Cecília, a 13ª testemunha no Processo de Canonização de Santa Clara de Assis, com a descrição da experiência pela própria santa, vivenciada na noite do Natal (1252) que antecedeu à sua partida para a eternidade:

“Dou graças ao meu Senhor Jesus Cristo bendito, minhas irmãs e filhas caríssimas, porque assisti a todas as solenidades desta noite… e fiquei consolada. Porque, por obra de meu Senhor Jesus Cristo e intercessão de meu pai Francisco, estive presente na Igreja de meu pai Francisco, e ouvi todos os cantos e o órgão com os meus ouvidos corporais e mentais. E ainda recebi lá mesmo a sagrada comunhão. Por isso, alegrai-vos com esta graça tão grande que me foi feita, louvai Cristo Jesus bendito de todo coração. Pois, ao mesmo tempo, fiquei aqui de cama, e não sei como, se no corpo ou fora do corpo, tomei parte da solenidade toda lá em São Francisco, como já disse.”

Sugestões para reflexões:

1. Como Clara de Assis nos inspira a cultivar a cultura do cuidado mútuo, rompendo com os ciclos das diversificadas formas e níveis de violências, exclusões e abusos pessoais, comunitários, eclesiais e estruturais, até culturalmente legitimados?

2. O que nos ajudaria, como Franciscanos, a abraçarmos a mística do processo de conversão de nossos “corações, relações e estruturas”, como nossa colaboração efetiva no processo de cura da nossa “Casa Comum” para que seja mais humana e habitável?

3. Criativa e responsavelmente, como temos interagido e tornado os meios digitais e a IA como aliados no processo de evangelização, ao modo de Jesus Cristo, o Nazareno?

Referências:

PEDROSO, José Carlos Corrêa. Fontes Clarianas. Centro Franciscano de Espiritualidade. 4ª Ed. Piracicaba, SP, 2004.

XVI ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA DO SÍNODO DOS BISPOS – Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão. Documento final. Roma, 2024.

ZAVALLONI, Roberto. A personalidade de Santa Clara de Assis. Estudo psicológico. FFB. Petrópolis, RJ.

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