Clara de Assis, uma inspiração para nossos dias

Clara de Assis, uma inspiração para nossos dias

Em preparação às festividades de Santa Clara de Assis, vamos retomar alguns textos representativos que nos ajudam a aprofundar na vida e na espiritualidade da primeira seguidora de Francisco de Assis. Tomaremos cinco textos dos papas João Paulo II, Bento XVI e Francisco a respeito de Clara de Assis e as Irmãs Clarissas.

1º. Dia

Em nosso primeiro dia, vamos recordar a contribuição do Papa João Paulo II (9 de Agosto de 2003) por ocasião dos 750 anos de falecimento de Santa Clara.

Caríssimas Irmãs

1. No dia 11 de Agosto de 1253 encerrava a sua peregrinação terrena Santa Clara de Assis, discípula de São Francisco e fundadora da vossa Ordem, chamada das Irmãs Pobres ou Clarissas, que hoje conta, nas suas várias ramificações, cerca de novecentos mosteiros espalhados pelos cinco continentes. Depois de 750 anos da sua morte, a recordação desta grande Santa continua a estar muito viva no coração dos fiéis, e, portanto, é com particular prazer que, nesta ocasião, envio à vossa Família religiosa um cordial pensamento e uma afetuosa saudação.

Nesta data jubilar tão significativa, Santa Clara exorta todos a compreender cada vez mais profundamente o valor da vocação, um dom de Deus que devemos fazer frutificar. A este propósito, escrevia no seu Testamento:  “Entre os outros benefícios, que recebemos e continuamos a receber todos os dias do nosso Doador, Pai das misericórdias, pelos quais temos o dever de prestar, a Ele que é glorioso, sentidas ações de graças, porque é grande o dom da nossa vocação. E quanto maior e mais perfeita ela é, tanto mais lhe somos devedoras. Por isso, o Apóstolo admoesta:  Conhece bem a tua vocação” (2-4).

2. Tendo nascido em Assis por volta dos anos de 1193-1194 da nobre família de Favarone de Offreduccio, Santa Clara recebeu, sobretudo da mãe Hortulana, uma sólida educação cristã.

Iluminada pela graça divina, deixou-se atrair pela nova forma de vida evangélica começada por São Francisco e pelos seus companheiros, e decidiu, por sua vez, empreender um seguimento de Cristo ainda mais radical. Deixou a casa paterna na noite entre o Domingo de Ramos e a Segunda-Feira Santa de 1211 (ou 1212), seguindo o conselho do mesmo Santo, dirigiu-se para a pequena igreja da Porciúncula, berço da experiência franciscana onde, em frente do altar de Santa Maria se despojou de todas as suas riquezas, para vestir as pobres vestes de penitência em forma de cruz.

Depois de um breve período de busca, chegou ao pequeno mosteiro de São Damião, onde se uniu a ela também a irmã mais pequena, Inês. Aqui, juntaram-se-lhe outras companheiras, desejosas de encarnar o Evangelho numa dimensão contemplativa. Face à determinação com que a nova comunidade monástica seguia as pegadas de Cristo, considerando a pobreza, as fadigas, as tribulações, as humilhações e o desprezo do mundo, motivos de grande alegria espiritual, São Francisco, movido por afeto paterno, escreveu-lhes:  “Dado que por inspiração divina vos fizestes filhas e escravas do altíssimo sumo Rei, o Pai celeste, e desposastes o Espírito Santo, escolhendo viver segundo a perfeição do Santo Evangelho, quero e prometo, tanto eu como os meus irmãos, ocupar-me de vós, como deles, com atenção e especial solicitude” (Regra de Santa Clara, cap. VI, 3-4).

3. Clara inseriu estas palavras no capítulo central da sua Regra, reconhecendo nelas não só um dos ensinamentos recebidos do Santo, mas o núcleo fundamental do seu carisma, que se delineia no contexto trinitário e mariano do Evangelho da Anunciação. Com efeito, São Francisco via a vocação das Irmãs Pobres à luz da Virgem Maria, a humilde escrava do Senhor que, cheia do Espírito Santo, se tornou a Mãe de Deus. A humilde serva do Senhor é o protótipo da Igreja, Virgem, Esposa e Mãe.

Clara sentia a sua vocação como uma chamada a viver seguindo o exemplo de Maria, que ofereceu a própria virgindade à ação do Espírito Santo para se tornar Mãe de Cristo e do seu Corpo místico. Sentia-se estreitamente associada à Mãe do Senhor e por isso exortava Santa Inês de Praga, a princesa boémia que se tornou clarissa, do seguinte modo:  “Estreita-te à sua dulcíssima Mãe, que gerou um Filho que nem os céus o podiam conter, e apesar disso ela recolheu-o no pequeno claustro do seu santo seio e levou-o no seu ventre virginal” (3ª Carta a Inês de Praga, 18-19).

A figura de Maria acompanhou o caminho vocacional da Santa de Assis até ao fim da sua vida. Segundo um significativo testemunho dado no Processo de canonização, do leito de Clara moribunda aproximou-se Nossa Senhora inclinando o seu rosto sobre ela, cuja vida tinha sido uma imagem radiosa da Sua.

4. Só a escolha exclusiva de Cristo crucificado, que empreendeu com amor fervoroso, explica a decisão com que Santa Clara se encaminhou pela via da “nobilíssima pobreza”, expressão que encerra no seu significado a experiência de despojamento, vivida pelo Filho de Deus na Encarnação. Com a qualificação de “nobilíssima” Clara desejava expressar, de certa forma, a submissão do Filho de Deus, que a enchia de estupefacção:  “Esse tão grande Senhor escrevia descendo ao seio da Virgem, quis mostrar-se ao mundo como um homem desprezível, necessitado e pobre, para que os homens que eram muito pobres e indigentes, famintos devido à excessiva penúria do alimento celeste se tornassem n’Ele ricos com a posse do reino celeste” (1ª Carta a Inês, 19-20). Ela aceitava esta pobreza em toda a experiência terrena de Jesus, de Belém ao Calvário, onde o Senhor “despojado permaneceu na cruz” (Testamento de Santa Clara, 45).
Seguir o Filho de Deus, que se fez caminho para nós, exigia que ela só desejasse mergulhar com Cristo na experiência de humildade e de pobreza radicais, que incluíam qualquer aspecto da experiência humana, até ao despojamento da Cruz. A escolha da pobreza era para Santa Clara uma exigência de fidelidade ao Evangelho, a ponto de determinar o pedido ao Papa de um “privilégio da pobreza”, como prerrogativa da forma de vida monástica por ela começada. Inseriu este “privilégio”, defendido com tenacidade durante toda a vida, na Regra que recebeu a confirmação papal nas vésperas da sua morte, com a Bula Solet annuere de 9 de Agosto de 1253, há 750 anos.

5. O olhar de Clara permaneceu até ao fim fixo no Filho de Deus, de quem contemplava incessantemente os mistérios. O seu olhar era o olhar amante da esposa, repleto do desejo de uma partilha sempre mais plena. Em particular, mergulhava na meditação da Paixão, contemplando o mistério de Cristo, que do alto da Cruz a chamava e atraía. Escrevia assim:  “Vós, todos, que passais pela estrada, parai para ver se existe um sofrimento semelhante ao meu; e respondemos, digo a Ele que chama e geme, com uma só voz e um só coração:  nunca me abandonará a tua recordação e consome-se em mim a minha alma” (4ª Carta a Inês, 25-26). E exortava:  “Portanto, deixa-te arder de modo cada vez mais forte por este fervor de caridade… E brada com todo o ardor do teu desejo e do teu amor:  Atrai-me para ti, ó Esposo celeste!” (Ibid., 27.29-32).

Esta comunhão plena com o mistério de Cristo iniciou-a na experiência da habitação trinitária interior, em que a alma assume uma consciência cada vez mais viva da habitação de Deus nela:  “Enquanto o céu e todas as outras coisas criadas não podem conter o Criador, ao contrário, a alma fiel, sozinha, é sua morada e estadia, e isto apenas devido à caridade, da qual os ímpios estão privados” (3ª Carta a Inês, 22-23).

Guiada por Clara, a comunidade reunida em São Damião escolheu viver segundo a forma do Santo Evangelho numa dimensão contemplativa claustral, que se distinguia como um “viver comunitariamente em unidade de espírito” Regra de Santa Clara, Prólogo, 5), segundo um “modo de santa unidade” (Ibid., 16). A compreensão particular demonstrada por Clara do valor da unidade na fraternidade parece relacionar-se a uma experiência contemplativa madura do Mistério trinitário. De facto, a contemplação autêntica não leva ao individualismo mas realiza a verdade de ser um só no Pai, no Filho e no Espírito Santo. Clara não só orientou na sua Regra a vida fraterna para os valores de serviço recíproco, de participação, de partilha, mas preocupou-se com que a comunidade estivesse também firmemente edificada na “unidade da caridade e paz intercambiáveis” (cap. IV, 22), e ainda que as irmãs fossem “solícitas em conservar sempre reciprocamente a unidade da caridade intercambiável, que é vínculo da perfeição” (cap. X, 7).

De facto, estava convencida de que o amor intercambiável edifica a comunidade e origina um crescimento na vocação; por isso, exortava no Testamento:  “Amando-vos reciprocamente no amor de Cristo, aquele amor que tendes no coração, mostrai-o fora com as obras, para que as Irmãs, estimuladas por este exemplo, cresçam sempre no amor de Deus e na caridade recíproca” (59-60).

7. Clara compreendeu este valor da unidade também na sua dimensão mais ampla. Por isso, quis que a comunidade claustral estivesse plenamente inserida na Igreja e firmemente ancorada nela com o vínculo da obediência e da submissão filial (cf. Regra, cap. I, XII). Ela tinha total consciência de que a vida das claustrais devia tornar-se espelho para outras Irmãs chamadas a seguir a mesma vocação, assim como testemunho luminoso para todos os habitantes do mundo.

Os quarenta anos vividos no âmbito do pequeno mosteiro de São Damião não limitaram os horizontes do seu coração, mas dilataram a sua fé na presença de Deus, realizando a salvação na história. São conhecidos os dois episódios em que, com a força da sua fé na Eucaristia e com a humildade da oração, Clara obteve a libertação da cidade de Assis e do mosteiro, do perigo de uma destruição iminente.

8. Como não realçar que 750 anos depois da confirmação pontifícia, a Regra de Santa Clara conserva intactos o seu fascínio espiritual e a sua riqueza teológica? A perfeita consonância de valores humanos e cristãos, a sábia harmonia de fervor contemplativo e de rigor evangélico confirmam-na para vós, queridas Clarissas do terceiro milénio, como uma via-mestra que deve ser seguida, sem adaptações nem concessões ao espírito do mundo.

Clara dirige a cada uma de vós as palavras que deixou a Inês de Praga:  “Tu és verdadeiramente feliz! É-te concedido gozar deste convívio sagrado, para poder aderir com todas as fibras do teu coração Àquele cuja beleza é a admiração incansável das bem-aventuradas multidões do céu” (4ª Carta a Inês, 9).

A data centenária oferece-vos a oportunidade de refletir acerca do carisma típico da vossa vocação de Clarissas. Um carisma que se caracteriza, em primeiro lugar, como chamada a viver segundo a perfeição do Santo Evangelho, com uma referência decidida a Cristo, como único e verdadeiro programa de vida. Porventura, não é este um desafio para os homens e para as mulheres de hoje? É uma proposta alternativa à insatisfação e à superficialidade do mundo contemporâneo, que com frequência parece ter perdido a sua identidade, porque já não sente que foi gerado pelo Amor de Deus e que é esperado por Ele na comunhão sem fim.

Vós, queridas Clarissas, realizais o seguimento do Senhor numa dimensão esponsal, renovando o mistério de virgindade fecunda da Virgem Maria, Esposa do Espírito Santo, a mulher realizada. Oxalá a presença dos vossos mosteiros totalmente dedicados à vida contemplativa sejam também hoje “memória do coração esponsal da Igreja” (Verbi Sponsa, 1), repleta do fervoroso desejo do Espírito, que implora incessantemente a vinda de Cristo Esposo (cf. Ap 22, 17).

Face à necessidade de um renovado compromisso de santidade, santa Clara oferece também um exemplo daquela pedagogia da santidade que, alimentando-se incessantemente na oração, leva a tornar-se contemplativo do Rosto de Deus, abrindo o coração ao Espírito do Senhor, que transforma toda a pessoa, mente, coração e acções, segundo as exigências do Evangelho.

9. Os meus votos mais sentidos, corroborados pela oração, são por que os vossos mosteiros continuem a oferecer à exigência difundida de espiritualidade e de oração do mundo de hoje a proposta exigente de uma plena e autêntica experiência de Deus, Uno e Trino, que se torne irradiação da sua presença de amor e de salvação.

Ajude-vos Maria, a Virgem da escuta. Intercedam por vós Santa Clara e as Santas e Beatas da vossa Ordem.

Garanto-vos uma cordial recordação de vós, queridas Irmãs, de quantos compartilham convosco a graça deste significativo acontecimento jubilar, e concedo-vos a todos de coração uma especial Bênção apostólica.

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