Não há justiça climática sem a revisão radical do território urbano, sem o direito inegável a um lar e sem políticas de trabalho que garantam autonomia real às comunidades que estão na linha de frente da crise.
Enquanto líderes globais proferem discursos moderados na COP30, a Assembleia dos Movimentos Sociais na Tenda da Solidariedade aponta o abismo entre as negociações de alto nível e a realidade do povo na linha de frente da crise: sem raízes, não há como segurar o céu.
Frei Laércio Jorge, ofm[1]
Belém, PA 14 de novembro de 2025 – Sob a lona da Tenda da Solidariedade, o ar é denso não apenas pela umidade, mas também pela urgência das vozes que ecoam. O tema central, “Sem moradia digna não há justiça climática”, funciona como um dardo lançado contra a abstração dos debates climáticos. A frase que guia o encontro, “Para segurar o céu devemos ter os pés bem fincados na terra, na realidade”, é mais que um lema; é uma declaração de princípio. Aqui,
a justiça climática não se constrói com metas líquidas de carbono, mas com alicerces de concreto, tijolos e direitos.
A realidade brasileira oferece exemplos gritantes. Enquanto as atenções se voltam para o desmatamento na Amazônia – fundamentalmente importante –, periferias urbanas como as de Manaus, Rio de Janeiro, São Paulo e tantos outros estados de nossa federação, enfrentam enchentes catastróficas e deslizamentos de terra que têm endereço certo: as áreas de risco ocupadas por uma população historicamente excluída do direito à cidade. A mesma lógica que expulsa comunidades tradicionais de seus territórios na floresta, negando-lhes o acesso à terra, é a que empurra famílias para as encostas dos morros, negando-lhes um teto.
A crise climática, longe de ser um equalizador, atua como um amplificador de injustiças históricas.
Filósofos políticos já nos ensinaram que justiça não se limita à distribuição de bens, mas envolve a reconfiguração das condições de possibilidade de vida. Empiricamente mostram que adaptação climática e política habitacional são indissociáveis. Estudos, relatórios e iniciativas lançadas na COP30 reforçam a urgência de integrar a garantia de moradia digna à agenda climática.
Um dos oradores na Tenda foi contundente:
“Estamos vivendo um falso moralismo social: onde a opção sexual de alguém é mais assustadora do que a fome”
Esta afirmativa é um diagnóstico de prioridades simbólicas que deslocam o centro do sofrimento coletivo. A declaração corta como uma faca, expondo a seletividade de uma agenda moral que se escandaliza com identidades, mas se acostuma com a violência cotidiana da insegurança alimentar e hídrica. Esse falso moralismo, segundo os debatedores, serve como cortina de fumaça para evitar o debate estrutural sobre a distribuição de recursos e a economia que privilegia o lucro em detrimento da vida.
O falso moralismo funciona como mecanismo de despolitização: enquanto se polariza em torno de costumes, evita-se enfrentar o nó estrutural que produz miséria habitacional, precarização do trabalho e expropriação de territórios.
A tenda da solidariedade mostrou alternativas: redes de solidariedade que organizam mutirões utilizando tecnologias de baixo custo e resistência ambiental; pilotagens de habitação resiliente; e propostas de financiamento público que priorizem a permanência digna das famílias no território. Essas iniciativas apontam para uma ética da proximidade — uma política que toma por princípio a casa como primeiro dispositivo de justiça climática.
A tenda da solidariedade funcionou como um espaço de síntese entre duas lógicas: a das políticas públicas (ou da ausência delas) e a da experiência popular organizada.
Movimentos como o MST e o MTST trouxeram casos concretos — ocupações urbanas que reivindicam regularização, programas de autoconstrução com soluções de resiliência, e projetos de agroecologia comunitária que articulam terra e trabalho — demonstrando que o “teto, terra e trabalho” do Papa Francisco não é apenas um lema moral, mas iniciativas que apontam para uma ética da proximidade — uma política que toma por princípio a casa como primeiro dispositivo de justiça climática.
Em sua encíclica Laudato Si’, e mais recentemente em Fratelli Tutti, o Pontífice argumentava que
não se pode cuidar da “casa comum” sem garantir o acesso a essas três bases da dignidade humana.
Na periferia de Belém, onde o avanço da especulação imobiliária sobre áreas alagadas (os igarapés) cria uma crise de moradia onde famílias vivem em casas que desabam, a defesa de um teto é uma ação climática direta. Na luta dos trabalhadores que atuam sem garantias nos chamados “empregos verdes” e na resistência de quilombolas e indígenas que perdem terra para projetos que dizem “desenvolver” o país, encontra-se a semente de um modelo de desenvolvimento que não seja predatório.
A COP30 é encarada por esses movimentos não como uma salvação, mas como uma arena de disputa. O risco é que a conferência se torne um palco multicolorido – verde (as matas), azul (os rios) e marrom (a terra) – para que seus planos de governos e sistemas corporativistas, sejam aceitos,
enquanto as soluções reais, que passam pela reforma urbana, pela regularização fundiária e pelo apoio à agricultura familiar agroecológica, sejam deixadas de lado.
Não basta colorir planos governamentais e sistemas, precisamos romper!
Politicamente, isso implica deslocar recursos e prioridades: fundos de adaptação e mitigação devem reservar quotas para infraestrutura domiciliar, saneamento e reassentamento com participação comunitária; políticas urbanas — como bem evidenciou a literatura crítica sobre planejamento urbano no Brasil — precisam incorporar a dimensão climática sem expulsar os já vulneráveis. Autoras e autores que estudam política urbana no Brasil lembram que
a cidade desigual fabrica riscos (e lucros) que depois se naturalizam como “desastres”; romper essa naturalização exige política habitacional que seja também política ambiental.
Para o leitor que busca um fio de ação: a tenda da solidariedade da COP30 ensina que a justiça climática só é possível quando as lutas pelo direito à moradia, ao trabalho decente e ao acesso à terra caminham juntas — e quando as políticas públicas escutam e financiam as soluções produzidas nas periferias. Em termos práticos não há novidades: priorizar infraestrutura de drenagem e saneamento em bairros de risco; reconhecer e financiar projetos de autoconstrução com técnicas de resistência climática; garantir títulos coletivos para territórios tradicionais e quilombolas; e vincular os recursos de adaptação aos programas habitacionais com critérios de equidade racial e de gênero.
A mensagem que sai da Tenda da Solidariedade é clara: quem pretende “segurar o céu” — preservar ecossistemas, climas e bens comuns — precisa ter os pés fincados na terra concreta onde milhões vivem. Exige mais do que tecnologia e financiamento internacional.
Exige que os pés da humanidade estejam firmes em um chão que lhes pertença, sob um teto que os proteja, e em uma economia que lhes garanta o fruto de seu trabalho.
Que o façamos com políticas que comecem onde a vida realmente acontece — dentro das casas, nas ruas e nas pequenas roças que sustentam comunidades inteiras. Essas são medidas que “fincam os pés na terra” e tornam possível, assim, qualquer projeto de proteção do céu comum. Sem essa base, qualquer acordo climático estará construído sobre a areia movediça da injustiça.
Não há justiça climática sem a revisão radical do território urbano, sem o direito inegável a um lar e sem políticas de trabalho que garantam autonomia real às comunidades que estão na linha de frente da crise.
Para aprofundar:
- ACSELRAD, Henri (Org.). A Duração das Cidades: Sustentabilidade e Risco nas Políticas Urbanas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2022.
- ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terra de Quilombo, Terra de Direitos. Brasília: ABA; Malungu, 2022.
- FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si’: Sobre o Cuidado da Casa Comum. Vaticano: 2015.
- FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Fratelli Tutti: Sobre a Fraternidade e a Amizade Social. Vaticano: 2020.
- Habitat Brasil — Relatório “Sem Moradia Digna, Não Há Justiça Climática” (2025).
- MARICATO, Ermínia. O Impasse da Política Urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2021.
- SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017.
- VIEIRA, Sônia et al. (Org.).Amazônia Urbana: Conflitos Socioambientais e Governança na Metrópole de Belém. Belém: NAEA, 2023.
[1] Frei Laércio Jorge, OFM. Professor. Graduado em Filosofia e Teologia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino. Mestre em Ciências Sociais pela PUC-MG.














