Do sul ao norte do Marrocos – Uma experiência de mudança em terras estrangeiras

Do sul ao norte do Marrocos – Uma experiência de mudança em terras estrangeiras

Um dos grandes desafios da missão no Marrocos é justamente o aspecto multicultural de nossa presença e das nossas fraternidades.

Frei Fábio L´Amour Ferreira, OFM

Durante quatro anos vivi e trabalhei em nossa Paróquia Franciscana dos Santos Mártires do Marrocos em Marrakech, cidade turística importante, no sul do Marrocos, onde predomina a língua francesa, e que recebe milhares de turistas todos os anos, oriundos de vários países, mas sobretudo da França, da Espanha, da Itália e de Portugal, que são os países mais próximos.

Desde o Capítulo Custodial realizado em abril de 2025, fui transferido para outra cidade, no norte do Marrocos, onde predomina a língua espanhola. A cidade tem o nome de Tetuan, e foi a capital do protetorado espanhol de 1912 a 1956. Em Tetuan se encontra uma grande paróquia nossa, de Nossa Senhora das Vitórias, aos cuidados dos missionários franciscanos desde sua fundação, em 1926. Em 2026 estaremos celebrando o centenário da paróquia e já estamos planejando os preparativos para a festa.

O tempo que passei em Marrakech foi muito frutuoso. Foram quatro anos de muito aprendizado. Nossa paróquia em Marrakech é muito dinâmica, com a presença de vários grupos, seja de estudantes subsaarianos, de franceses, de trabalhadores migrantes legais, de trabalhadores sem documento, de migrantes. Aos domingos, na missa em francês, o número de participantes pode chegar a seiscentas pessoas. No período da Páscoa e do Natal, os participantes passam de mil pessoas. Vivi em Marrakech um período muito intenso de vida fraterna, em sua dimensão intercultural (convivência com frades de várias nacionalidades) e dialogal, no contato diário com o mundo muçulmano. Foi também um período intenso de vida comunitária paroquial, com missas sempre bem preparadas e uma liturgia muito animada com cantos e danças litúrgicos típicos de países africanos, em um bonito encontro de povos, raças e culturas. Foram também intensos os trabalhos sociais, através da Caritas Paroquial, onde atuei na coordenação de duas equipes de voluntários laicos, inclusive com a presença de voluntários marroquinos, com projetos sociais e promoção humana para marroquinos (especialmente mulheres e crianças), e para migrantes subsaarianos indocumentados em situação de rua. Também trabalhei em colaboração com a equipe de voluntários que atendeu aos atingidos pelo terremoto de 2023 nos arredores de Marrakech, em sua maioria camponeses de pequenos povoados nas montanhas. Enfim, foram quatro anos de muita dedicação e realização.

Em Tetuan fui nomeado guardião da fraternidade, que está composta por um frade peruano, que é o pároco, um frade filipino, que é capelão de uma comunidade de irmãs espanholas, e eu, brasileiro, que além de guardião, sou o diretor do Centro Sociocultural Lerchundi. O Centro tem capacidade de atender até 300 alunos, e oferece aulas de línguas como espanhol, francês, inglês e alemão, além da língua árabe dialectal para estrangeiros. Destaque para a alfabetização em árabe para mulheres marroquinas que nunca tiveram a oportunidade de ir à escola por fatores sociais e culturais do passado. O centro oferece ainda aulas de dança, ioga, violão e corte e costura. O público alvo são jovens e adultos socialmente desfavorecidos, incluindo adultos sem escolarização, no caso da alfabetização em árabe. Todos os professores são voluntários e, na sua maioria, de origem marroquina, que vêm na obra social do centro uma ocasião de devolver a alunos carentes a possibilidade de ter uma oportunidade educacional e profissional.

O Centro Sociocultural Lerchundi tem esse nome em homenagem a um frade missionário espanhol, José Maria de San Antonio Lerchundi, que viveu no Marrocos de 1862 a 1896. Seus restos mortais estão sepultados na cripta da Catedral do Santo Espírito em Tanger. Este frade foi muito conhecido e respeitado em seu tempo, tanto na Espanha quanto no Marrocos, pois foi um dos primeiros a elaborar um estudo acadêmico em espanhol sobre o árabe vulgar. Ele também foi fundador de vários trabalhos educacionais, sociais e culturais nas cidades por onde passava no norte do Marrocos. Atualmente, há um processo de beatificação do frei Lerchundi em andamento junto à nossa Cúria Geral em Roma, e frei Omar, que é pároco em Tetuan, é o responsável por acompanhar esse processo.

A igreja de Nossa Senhora das Vitórias de Tetuan pertence à diocese de Tanger. O complexo que pertence à Custodia compreende o convento dos frades, o centro sociocultural Lerchundi, e uma hospedaria para voluntários, com capacidade para acolher até 15 pessoas para dormir.

Mudar do sul para o norte significa uma grande mudança. É quase como mudar de país, trocar de língua, de comida, de costumes. Para mim significa sair de uma cultura predominantemente francesa para uma cultura predominantemente espanhola. Uma mudança tão grande traz muitos desafios, mas o segredo está em manter o espírito jovial, não se apegar a nada, estar aberto às diferenças, ter uma boa capacidade de adaptação e de aprendizado, e estar sempre aberto às mudanças e aos desafios que a missão vai te apresentando no caminho.

Apesar de o Marrocos ser um só país, durante muitos anos, foi “colonizado” por um acordo entre dois países, França e Espanha. Assim, no sul do país predominou a cultura e a língua francesas, enquanto no Norte predominou a língua e a cultura espanholas. Para utilizar um termo mais ameno ao de “colonização”, adotou-se o termo “protetorado”. Este regime possibilitou uma presença maciça de estrangeiros espanhóis e franceses no Marrocos durante 44 anos, mantendo o controle administrativo e governamental neste período. Em 1956 houve a independência e o retorno do Reinado ao Marrocos, mas ainda hoje, há um grande número de franceses e espanhóis vivendo no Marrocos. Os franceses se concentram sobretudo em Marrakech, Casablanca e Rabat, e os espanhóis no norte, se concentram em Tanger, Asila e Tetuan. A maioria mantém negócios e famílias nos dois países, seja na França ou na Espanha e no Marrocos.

Um dos grandes desafios da missão no Marrocos é justamente o aspecto multicultural de nossa presença e das nossas fraternidades. O respeito às diferenças e a não imposição de uma cultura sobre a outra é uma importante resposta a este desafio. Outro desafio é de criar ocasiões para o diálogo interreligioso, que nem sempre é evidente, dado à algumas resistências em falar sobre religião seja por parte dos muçulmanos, seja por parte dos cristãos. O cultivo da amizade entre cristãos e muçulmanos e o convite para vivenciar juntos alguns momentos celebrativos importantes, como Natal para os cristãos e o Ramadan para os muçulmanos, são maneiras importantes de criar oportunidades significativas para o diálogo interreligioso.

Em nossa fraternidade em Tetuan, os três frades são recém chegados, uma vez que toda a fraternidade foi renovada depois do capítulo em abril passado. Este é um dos aspectos interessantes da missão no Marrocos, como há uma alta rotatividade de frades entre as 6 fraternidades existentes no país, normalmente o tempo máximo que se permanece em uma fraternidade é de 3 anos. Normalmente, os frades se disponibilizam para a missão no Marrocos por 6 anos. Há também frades que se colocam a serviço da missão no Marrocos por mais tempo, mas é mais raro. O pedido para ser missionário no Marrocos passa pelo interesse do frade e o consentimento de seu ministro provincial ou custódio. Em seguida, o provincial ou custódio entra em contato com o responsável na Cúria Geral pelas missões da Ordem ou escreve diretamente ao Ministro Geral. A Custodia do Marrocos é uma das casas dependentes do Ministro Geral e ele é, em primeira instância, o superior da Custódia dos Santos Mártires do Marrocos. A partir daí, dá-se início ao processo de discernimento entre frade, província e Secretaria de Missões da Ordem, que pode resultar na aprovação do frade à missão no Marrocos. Que Deus abençoe nossa missão em terras marroquinas e que o Senhor sempre suscite na Ordem missionários dispostos a abraçar essa presença de serviço e diálogo tão especial e tão necessária em nossos dias.

Leia outras notícias