Que o fogo da Páscoa nos consuma nesta transformação urgente.
Frei Laércio Jorge de Oliveira, OFM
“Nossa utopia é tão real
que já começamos a vivê-la“.
Dom Pedro Casaldáliga
A espiritualidade pascal de São Francisco de Assis nos oferece um paradigma radical para compreendermos as dinâmicas sociais e eclesiais do nosso tempo. Quando o poverello compreendeu a Páscoa como êxodo permanente (1Cel 22), ele antecipou em oitocentos anos o que os teólogos da libertação chamariam de “princípio êxodo” (BOFF, 1985), categoria fundamental para analisarmos nossa realidade.
A opção franciscana pela itinerância radical confronta-se hoje com a realidade dos 82,4 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar. Enquanto Francisco escolheu a pobreza, milhões são obrigados a migrar por falta de alternativas. As alianças bíblicas – de Noé a Moisés – encontram eco nas peregrinações forçadas dos povos indígenas (como os Guarani-Kaiowá) e dos trabalhadores rurais sem-terra.
- Como viver a “passagem pascal” numa sociedade que nega o direito à moradia (déficit de 5,8 milhões de casas – FGV, 2023) e à fixação digna no território?
A “aliança de sangue” de Cristo (Lc 22,20) denuncia as falsas alianças que sustentam estruturas de morte, como o avanço sobre terras indígenas; as bancadas na câmara e no senado que apoiam políticas de flexibilização trabalhista; o conluio entre poder público e milícias urbanas. Como nos alerta Papa Francisco na Fratelli Tutti (2020): “As sombras de um mundo fechado ofuscam a civilização do amor”.
A experiência dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35) nos oferece um método pastoral para o Brasil dividido: caminhar juntos; partilhar o pão; e por fim, reconhecer Cristo no partir do pão. A reflexão sobre presente, passado e futuro adquire contornos dramáticos quando: 56,7% das crianças brasileiras vivem na pobreza (UNICEF, 2023); o desemprego atinge 12,4 milhões (Dieese, mar/2024); o aquecimento global ameaça biomas brasileiros.
- Como viver a “esperança” nestas condições?
A Páscoa franciscana nos convoca a: denunciar as falsas passagens (migrações forçadas); celebrar as verdadeiras alianças (movimentos populares); viver a ressurreição como prática cotidiana (economia solidária);
Que o fogo da Páscoa nos consuma nesta transformação urgente.
Poema “Prece”, de Fernando Pessoa
Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte!
O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu!
Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também.
Onde nada está tu habitas e onde tudo está – (o teu templo) – eis o teu corpo.
Dá-me alma para te servir e alma para te amar.
Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.
Torna-me puro como a água e alto como o céu.
Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos.
Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.
Minha vida seja digna da tua presença.
Meu corpo seja digno da terra, tua cama.
Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.
Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.
Senhor, protege-me e ampara-me.
Dá-me que eu me sinta teu.
Senhor, livra-me de mim.
Bibliografia:
BOFF, L. Igreja: Carisma e Poder. Vozes, 1985.
CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora 2023-2027.
FRANCISCO. Fratelli Tutti. 2020.