Entre a Memória e a Esperança

Entre a Memória e a Esperança

“O que vós sereis, nós somos agora. Quem se esquece de nós, esquece de si mesmo”

Frei Laércio Jorge, OFM[1]

O Dia de Finados é muito mais do que um ritual fúnebre. Ele propõe uma tríade de atitudes existenciais: recordar o passado com gratidão, viver o presente com paixão e abrir-se ao futuro com esperança. Esta reflexão, no entanto, adquire uma densidade dramática quando confrontada com a violência de Estado e eventos como a chacina em operação na Penha e no Alemão, no Rio de Janeiro.

A máxima “O que vós sereis, nós somos agora. Quem se esquece de nós, esquece de si mesmo” é o núcleo da memória coletiva. Recordar com gratidão pressupõe um ciclo de vida completado, uma biografia que pode ser honrada. No entanto, para as vítimas de chacinas, essa possibilidade é violentamente negada. A morte não chega como fim natural, mas como interrupção brutal, fruto de uma lógica de guerra que desumaniza e elimina.

Recordar os mortos da Penha e do Alemão, portanto, não pode ser um ato de gratidão serena. É um ato de memória política. É recusar o apagamento, o anonimato e a categorização dessas vidas como “danos colaterais”.

A sociedade que se esquece desses mortos, como alerta a liturgia, esquece de si mesma: esquece sua própria humanidade, sua constituição violenta e as feridas abertas que teimam em não cicatrizar.

A memória, aqui, se torna um dever cívico, um antídoto contra a barbárie repetitiva. Se a Gratidão foi interrompida, a Memória surge como Protesto.

A “esperança não é esperar acontecer, mas fazer acontecer”. Esta é a ponte crucial entre a memória dos mortos e a ação dos vivos. Num contexto de violência estrutural, viver o presente com paixão não é um hedonismo alienado. É, sim, a paixão pela justiça, pela dignidade e pela vida.

A esperança, nesse cenário, não é uma virtude passiva à espera de um “além” ou de uma intervenção divina. Ela é, o “dinamismo que move a ação presente”. É a esperança que mobiliza mães a buscarem seus filhos desaparecidos, que impulsiona coletivos a denunciarem a violência policial, que leva comunidades a criarem redes de solidariedade. Plantar a semente concretamente, significa plantar a semente da resistência, estando atentos, alertas e articulados para uma organização comunitária, da exigência por direitos e da denúncia incansável. Por isso, lutemos!

A chacina da Penha e do Alemão exige que se viva o presente com a paixão de quem “faz a hora”, de quem não aceita a normalização da morte. A re-opção no presente, é, uma reafirmação de um projeto de sociedade: optar pela vida sobre a morte, pela democracia sobre o autoritarismo que gera o medo, pela justiça sobre a impunidade. A Paixão deve ser transformada em luta e a Esperança como fonte para a ação.

“O nosso futuro não existe como realidade, mas apenas como possibilidade.” Esta afirmação é profundamente verdadeira para as populações periféricas atingidas pela violência.

O futuro lhes é negado duas vezes: pela ameaça iminente da morte e pela desesperança social.

Construir um futuro com esperança a partir desse presente devastado é um ato de profunda coragem. Requer paciência e perseverança. Cada protesto, cada memória preservada, cada projeto social que tira um jovem do caminho da violência é um “pequeno passo” na construção dessa nova ordem social. O futuro de paz e justiça não será um presente caído do céu; será o fruto colhido das sementes de resistência plantadas hoje, muitas vezes sob a sombra da dor. Contra a devastação, a construção coletiva.

O Dia de Finados, à luz da chacina do Morro do Alemão e da Penha, deixa de ser apenas uma celebração intimista e torna-se um evento de consciência social. Os mortos pela violência de Estado não descansam em paz; eles nos interpelam. Suas vidas interrompidas são um testemunho mudo que clama por justiça.


[1] Frei Laercio Jorge, OFM. Graduado em Filosofia e Teologia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino. Mestre em Ciências Sociais pela PUC-MG.

Foto: internet

Leia outras notícias