Quando a folia chega, é feito um ritual de pedido para entrar na casa. O Menino Jesus, deitado no presépio das casas visitadas, é reverenciado com versos e cantos.
Frei Jacir de Freitas Faria [1]
Celebrada no dia 6 de janeiro como expressão de fé no culto popular de tradição oral, a Folia de Reis, resiste ao tempo, num Brasil, que há muito, deixou o campo para viver nas cidades. Não há quem não se sente tocado, reavivado na memória, quando seus pais, avós recebiam os foliões em casa. Era o tempo de Natal, da Epifania, da manifestação de encarnação de Deus no meio de nós, no Menino Jesus nascido na manjedoura, no presépio de Belém.
Qual é o seu sentido dessa tradição? O que a folia de reis quer celebrar? Qual a sua origem? O que representam seus personagens e a bandeira? [2]
Folia é um substantivo feminino de origem latina. Seu significado é dança em ritmo acelerado, mas também brincadeira, loucura ou festança. Loucura, porque no tempo antigo, os foliões iam para as ruas com suas irreverências.
A data da folia de reis vem da tradição germânica, que a celebra no 13º e último dia do solstício do inverno europeu. Solstício de inverno é quando o sol alcance a sua maior distância da linha do Equador. Substantivo latino, sol é sol e sistere, que não se move. Por isso, a folia de reis tem relação direta com a luz da estrela que guiou os reis magos a Belém para se encontrarem com a Luz do Menino Jesus, Deus encarnado que não se apaga. O solstício de inverno, no hemisfério norte, ocorre no fim de dezembro, e fim junho, no hemisfério sul, onde nos localizamos.
Assim como em muitas religiões antigas, o solstício é celebrado com festa religiosa. Com o cristianismo não foi diferente. Com a cristianização do império romano, que celebrava o Sol-invicto e a divindade Mitra, no dia 25 de dezembro, o cristianismo passou a celebrar o Natal nessa data, o que deu certo, mas nunca sabemos o dia exato em que Jesus nasceu.
Os reis magos, os quais têm relação direta com a luz no nascimento do Menino Jesus, passaram a ser celebrados próximos ao Natal, para encerrar o ciclo natalino da luz.
A folia de reis teve seu início na Europa, no séc. XI. Reza a tradição francesa de que reis, vestidos de seda e com coroas, saíam com presentes, guiados por uma estrela até o altar da igreja da cidade de Lomoges para ofertá-los durante a missa. Rapidamente, essa tradição se chegou na Espanha, Portugal, Holanda etc. No Brasil, as folias de reis chegaram com a ocupação católica portuguesa. Ela foi usada pelos jesuítas como recurso catequético devocional. Logo, as folias de reis se espalharam pelo Brasil, recebendo de cada região suas características próprias.
Muitas folias são formadas por pessoas oriundas de famílias pobres, as quais repassam a tradição para os filhos. Como os reis magos, as folias saem de casa em casa procurando o Menino Jesus. No percurso, elas rezam, cantam, fazem brincadeiras com o público e recolhem donativos para a Igreja e a manutenção da tradição.
O pano branco que os foliões cantores trazem no pescoço representa uma estola sacerdotal. A música é acompanhada de violas, violões, acordeões, cavaquinhos e pandeiros. O mestre ou mestre-violeiro é coordenador de sua folia. Há folias que tem também a presença de três pastorinhos.
A bandeira dos magos, o ponto central da folia, é custodiada por três homens, chamados de palhaços. Para algumas tradições, eles representam os soldados que Herodes enviou com os reis magos. Quando viram o Menino Jesus, eles se converteram, o adoraram e passaram a seguir os reis magos. Esses palhaços usam máscaras para não serem reconhecidos pelo rei Herodes, o Grande, no caminho de volta para as suas terras. Há folias que têm mais de três palhaços. Eles também podem representar o poder do mal, do demônio, os quais teriam a função de matar o Messias, o Menino que nasceria em Belém, conforme promessa divina dada aos judeus, do tempo do rei Davi (1030 a 1010 a.E.C.). Os três palhaços são chamados de Veio, Friagem e Bastião.
Quando a folia chega, é feito um ritual de pedido para entrar na casa. O Menino Jesus, deitado no presépio das casas visitadas, é reverenciado com versos e cantos.
Em relação aos três reis, a tradição dos evangelhos apócrifos da infância de Jesus fala de três irmãos: Melquior, Baltazar e Gaspar, que chegaram em Belém, vindos da Pérsia, Índia e Arábia, onde reinavam respectivamente, numa comitiva formada por doze mil homens, quatro mil para cada um deles[3], no exato momento em que Maria se tornara mãe [4]. Eles trouxeram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra, objetos guardados por Adão em uma caverna, tendo em vistao o nascimento do segundo Adão. Conforme um costume antigo, o primeiro presente do Menino Jesus teve os seguintes significados: o ouro representava a realeza do menino; a mirra, que ele morreria como os humanos e que seria enterrado; o incenso, que tudo isso aconteceria com um Deus, o Menino Jesus[5]. E os reis magos adoraram o bebê Jesus, rendendo-lhe homenagens.
O evangelho de Mt 2,1 fala de magos (sábios astrólogos) que vieram do Oriente para adorar o Menino Jesus. O Sl 72,10 fala de três reis vindos do Oriente para se encontrarem com o sábio rei Salomão. O número três tem muita importância nas tradições judaica e bíblica. Os padres da Igreja Tertuliano (160-225) e Origenes (186-254) falam de três reis. No século VI, eles recebem os nomes de Baltazar, Melquior e Gaspar.
O resgatar a Folia de Reis traz consigo a fé, a cultura e a tradição, três marcos que não podem ser esquecidos na vida de um povo.
[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. Presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de doze livros e coautor de dezesseis. Canal no Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ Últimas publicações:FARIA, Jacir de Freitas. Bíblia Apócrifa – Segundo Testamento: tradução, comentário e coordenação. Petrópolis: Vozes, 2025; Os murais do Santuário Santo Antônio, de Divinópolis (MG), no simbolismo do Três na Trindade e na Crucifixão de Jesus: interpretação bíblica, teológica, catequética e franciscana das pinturas de Frei Humberto Randag. Belo Horizonte: Província Santa Cruz, 2024.
[2]As informações aqui registradas estão publicadas na grande obra de meu confrade já falecido, grande pesquisador da religiosidade popular, Frei Francisco van der Poel: Dicionário da religiosidade popular, cultura e religião no Brasil (Nossa Cultura, 2013).
[3] Evangelho armênio da infância, 11,1. In.: FARIA, Jacir de Freitas. Bíblia Apócrifa – Segundo Testamento. Petrópolis: Vozes, 2025, p. 115.
[4] Evangelho armênio da infância, 9.
[5] Orígenes, Contra Celso, 160.