Francisco de Assis ou das Chagas?

Francisco de Assis ou das Chagas?

Francisco de Assis devotou toda a sua vida ao seguimento de Jesus. Mas de alguma maneira a cruz estava no centro de sua vida.

Frei Eduardo Vely de Mesquita, OFM

No dia 17 de setembro, a Ordem Franciscana recorda a Impressão das Chagas de São Francisco. Nesta data celebramos o fato ocorrido em 1224, onde Francisco teve uma visão de Jesus Crucificado e depois seu próprio corpo foi marcado com os estigmas da paixão de Cristo. Contudo, mesmo sendo uma festa importante no seio franciscano é conveniente ressaltar que ela pode ser desconhecida para alguns. Por isso quero falar de São Francisco estigmatizado a partir de uma experiência pessoal…

O ano era 2018 e a Casa Fiat de Cultura trazia pela primeira vez a Belo Horizonte a exposição “São Francisco na Arte de Mestres Italianos”. Tal evento reunia obras de grandes autores do renascimento e do barroco italiano que representavam o Santo de Assis. Diante de tantas obras raras e autores renomados, se destacava a pintura “São Francisco recebe os estigmas” (1570), de Tiziano Vecellio.

Naquela ocasião eu acompanhava um grupo de paroquianos para fazermos juntos uma visita guiada e foi justamente diante dessa bendita pintura que escutei a pergunta de uma senhora que disse: “Frei, São Francisco de Assis e São Francisco das Chagas são a mesma pessoa?” Expliquei a ela que sim e depois narrei a história de como São Francisco de Assis recebeu os estigmas de Jesus Cristo. Ela ficou extremamente empolgada com a descoberta e naquele momento eu percebi que nem todas as pessoas sabem que São Francisco de Assis e Francisco das Chagas são o mesmo santo, mas com invocações diferentes. Por isso escrevo este texto para fazer chegar, a quem lhe for de interesse, esta bela e empolgante história.

UMA VIDA EM PROL DA CRUZ

Francisco de Assis devotou toda a sua vida ao seguimento de Jesus. Mas de alguma maneira a cruz estava no centro de sua vida. Afinal de contas a experiência de conversão do Pobrezinho de Assis partiu da experiência e do encontro com o crucifixo. A Legenda dos Três companheiros narra que Francisco viu a Igrejinha de São Damião, “entrou nela e começou a rezar com fervor diante de uma imagem do Crucificado que piedosa e benignamente lhe falou, dizendo: “Francisco, não vês que minha casa está destruída? Vai, portanto, e restaura-a para mim””[1]. “Assim, a partir daquela hora, seu coração ficou de tal  modo ferido e enternecido que, ao lembrar-se da paixão do Senhor, sempre enquanto viveu, levava em seu coração os estigmas do Senhor Jesus”[2] Mais tarde, depois de ouvir o evangelho na Igreja de Santa Maria da Porciúncula, Francisco tomou para si uma veste de tecido áspero e simples em formato de cruz, para assim, simbolicamente pregar o próprio corpo e a carne[3]. Além de tomar a cruz por modelo pessoal, o Santo de Assis ainda exortava aos seus companheiros dizendo que não existe glória nas coisas deste mundo, “mas nisto podemos gloriar-nos, em nossas fraquezas e em carregar cada dia a santa cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo”[4].

DO MONTE CALVÁRIO AO MONTE ALVERNE

A vida de Francisco foi uma vida de perfeita comunhão com a vida de Jesus de Nazaré. O Pobrezinho de Assis tentou seguir em tudo a vida de Nosso Senhor Jesus. Ele chegou a ambicionar o martírio como vida doada em favor da fé[5] tal como fez o Filho de Deus que doou a sua vida para a nossa salvação. Mas foi no ano de 1224, quando Francisco estava bastante fragilizado pela sua doença que a sua semelhança com o Senhor foi levada a pleno cumprimento. Doente e debilitado, provavelmente ele sabia que sua hora de passar ao Pai estava se aproximando, por isso se dirigiu ao Monte Alverne para rezar e na solidão encontrar a paz almejada. “Essa montanha foi, ao mesmo tempo, seu Tabor e seu calvário”[6].

Foi Frei Leão, amigo e confessor de Francisco, quem testemunhou o ocorrido e narrou aos outros companheiros o grandiosíssimo milagre, que ali se deu, com o Santo de Assis. Mais tarde, a Legenda dos Três Companheiros iria narrar assim: “Numa manhã próxima da festa da Exaltação da Santa Cruz, quando rezava no lado do monte que se chama Alverne – a saber, dois anos antes de sua morte –, apareceu-lhe um Serafim que tinha seis asas e que trazia entre as asas a forma de um belíssimo homem crucificado que, na verdade, tinha as mãos e os pés estendidos em forma de cruz e manifestava de maneira muito clara a efígie do Senhor Jesus. Com duas asas ele velava a cabeça e com duas o restante do corpo até aos pés, e duas se estendiam para voar”[7].

Quando a visão do Serafim desaparece, o Pobrezinho de Assis, percebe que seu corpo foi marcado com os estigmas de Jesus crucificado. Em suas mãos, nos pés e no lado direito surgiram as cinco chagas que marcaram a crucificação:

“Suas mãos e os pés pareciam traspassados no meio por cravos, aparecendo as cabeças dos cravos na parte interior das mãos e na superior dos pés, e saindo as pontas deles do lado oposto. E aqueles sinais eram redondos na parte interna das mãos e longos na parte externa, e aparecia um pedaço de carne como se fosse ponta dos cravos, retorcida e rebatida, que surgia da carne restante. Assim também nos pés os sinais dos cravos foram impressos e sobressaíam da carne restante. Igualmente, o lado direito fora como que traspassado por uma lança, ficando fechada uma cicatriz, e dele muitas vezes jorrava sangue, de modo que sua túnica e os calções, muitas vezes, ficavam molhados com o sangue sagrado”[8].

SECRETUM MEUM MIHI

Depois que a visão desaparece e São Francisco se vê marcado à semelhança de seu Senhor, ele faz de tudo para esconder este fato aos seus contemporâneos. Isso é bastante óbvio para nós, afinal de contas a espiritualidade do Pobrezinho de Assis é marcada pela humildade e simplicidade. Por maior que fosse o evento da impressão das chagas no Alverne, por maior que fosse aquela dádiva, ele não queria compartilhá-la por medo de uma vangloria humana, de uma vaidade fútil e passageira. “Era, pois, costume dele raramente ou a ninguém revelar o segredo especial, temendo sofrer algum detrimento na graça que lhe fora dada”[9]. Eram pouquíssimos os irmãos que descobriram as chagas por acidente, e quando, certa vez um irmão interrogou a Francisco sobre o que significava aqueles ferimentos, o santo havia lhe respondido: “secretum meum mihi! ”, que significa: “um segredo que pertence somente a mim! ”.

PROCLAMAI-O SOBRE OS TELHADOS! (MT 10,27)

Francisco, “com muito empenho escondia estas coisas dos estranhos, ocultava-as com muita cautela dos mais próximos, de modo que os irmãos que estavam a seu lado e eram devotíssimos seguidores por muito tempo as ignoraram”[10].

Contudo, no momento da morte de Francisco, todos puderam contemplar aquele milagre. “Todos os irmãos que estavam presentes e um grande número de seculares viram de modo muito evidente o seu corpo ornado com os estigmas de Cristo”[11].

Isso foi possível por que no momento de sua morte, Francisco pediu para que fosse depositado nu sobre o solo pois queria morrer guardando o espirito da extrema pobreza evangélica. Queria voltar ao Pai da mesma forma que chegou a este mundo. “Colocado assim sobre a terra, despojado da veste de saco, ele elevou, como de costume, o rosto ao céu e, fixando-se todo naquela glória, cobriu com a mão esquerda a chaga do lado direito para que não fosse vista”[12].

“E, ao resplandecer com tão admirável beleza diante de todos que o viam e ao tornar-se mais cândida a sua carne, era admirável ver no meio de suas mãos e pés não as perfurações dos cravos, mas os próprios cravos formados pela sua carne, mantendo-se a negritude do ferro, e o lado direito avermelhado de sangue. Os sinais do martírio não incutiam horror às mentes dos que os contemplavam, mas conferiam muita beleza e graça”[13].

Passados alguns dias depois da morte de Francisco, Frei Elias de Cortona, na qualidade de Vigário Geral da Ordem, escreve uma carta circular para contar a todos do triste ocorrido. Nesta carta ele narra o trânsito de Francisco ao Pai, mas informa também o milagre dos estigmas: “Tendo dito estas coisas, anuncio-vos uma grande alegria e a novidade de um milagre. Nunca se ouviu dizer no mundo tal sinal, a não ser [realizado] no Filho de Deus, que é o Cristo Senhor. Não muito tempo antes da morte, nosso irmão e pai apareceu crucificado, trazendo em seu corpo as cinco chagas que são verdadeiramente os estigmas de Cristo. Suas mãos e pés tinham como que as perfurações dos cravos, traspassadas de ambas as partes, conservando as cicatrizes e deixando ver o negrume dos cravos. Seu lado apareceu traspassado por uma lança e muitas vezes fazia jorrar sangue”[14].

VOLTANDO AO PONTO DE PARTIDA

Retornando àquela pergunta inicial “São Francisco de Assis e São Francisco das Chagas são a mesma pessoa? ”, podemos responder que sim e a resposta afirmativa já não causa estranheza. Francisco fez o possível para esconder as chagas dos olhos curiosos de seu tempo, mas hoje celebramos publicamente este evento. Mas penso que não poderia ser diferente, pois o próprio Jesus já havia anunciado que “ninguém acende uma lâmpada para escondê-la debaixo da cama” (Lc 8, 16). Desta forma a vida de Francisco não pode também ficar escondida, pois como raio de Sol ela ilumina um quarto escuro como já dizia Tomás de Celano. E assim ao celebrarmos Francisco estigmatizado do Monte Alverne, celebramos na verdade o Deus de Israel que escolhe os pequeninos e manda embora os ricos de mãos vazias (Lc 1, 46-55).

Referencias Bibliográficas

FRUGONI, Chiara. Vida de um homem: Francisco de Assis. Companhia das Letras, São Paulo, 2011

MANSELLI, Raoul. São Francisco. Ed. Vozes, Petrópolis, 1997.

SABATIER, Paul. Vida de São Francisco de Assis. Ed. Universitária São Francisco, Bragança Paulista, 2006.

TEIXEIRA, Celso Márcio (coord.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Ed. Vozes, Petrópolis, 2008.


[1] Legenda dos Três Companheiros 13, 7

[2] Legenda dos Três Companheiros 14,1

[3] Cf. I Celano 22, 6-7

[4] Admoestações 5, 8

[5] Cf. I Celano 55, 2

[6] SABATIER, Paul. Vida de São Francisco de Assis. p. 308

[7] Legenda dos Três Companheiros 69, 3-4

[8] I Celano 95, 1-4

[9] I Celano 96, 1

[10] I Celano 95, 9

[11] Legenda dos Três Companheiros 70, 1

[12] II Celano 214, 8-9

[13] I Celano 113, 1-2

[14] Carta Encíclica de Frei Elias 15-19

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