Francisco: um ser criança

Francisco: um ser criança

04 de outubro, dia de São Francisco de Assis

Frei Vitor Vinicios da Silva, ofm[1] 

Em um dia como hoje, “ele me beijou e se despediu depois que eu dei alguns biscoitos e bananas. Ele queria ser médico, talvez porque sempre me via indo para o hospital para trabalhar.” Essas são algumas das poucas palavras que Mohamed Abu Musa, pai de Yusof Abu Musa, disse após perder o filho na guerra entre Israel e Palestina. Com essas palavras, não espelhamos apenas a realidade do oriente, mas de muitos espaços em que convivemos. A violência transvestida de muitas cores tem tomado a humanidade. Celebrar Francisco de Assis em um contexto como esse é gritar pela humanidade perdida, solenizar a memória de São Francisco de Assis, nosso pai fundador, é acender uma fagulha de esperança de que é possível converter, sentir com o outro.

Emergidos numa sociedade de grande crise social, econômica e espiritual, se torna válido resgatarmos a figura do santo. Para tal, falaremos da minoridade como tema necessário, adjetivo esse que carregamos na nossa própria identidade, somos chamados de “Frades menores” ou “irmãos/ãs menores”. Nesse limiar de um novo tempo, devemos nos perguntar, ao olharmos para as fontes, que tipo de franciscanos devemos ser para enfrentar esses novos tempos? Qual o perfil de franciscanos que deve delinear essa nova sociedade que emerge? 

Para responder a tais indagações é necessário voltarmos o nosso olhar para nossas fontes primeiras, uma vez que a resposta deve brotar das origens. A minoridade é mostrada de forma exímia na vivência do cotidiano de Francisco, em sua Regra Não Bulada, Capítulo V, escreve: “Do mesmo modo, nenhum dos irmãos tenha qualquer poder ou domínio, sobretudo entre si. Porquanto, como diz o Senhor no Evangelho, os príncipes das nações têm domínio sobre elas; e os que são maiores entre as gentes, tem o poder sobre elas. Entre os irmãos não há de ser assim; mas aquele que quiser ser o maior entre eles, seja deles o ministro e servo e aquele que é o maior, faça-se entre eles o menor”. Poderíamos ao olhar não só este trecho, mas a vida do próprio santo e interpretar a minoridade por várias chaves de leituras como, por exemplo, Francisco homo viator, Francisco homem periférico, Francisco homem ludens, mas gostaria de olhar para Francisco como homem relacional. Falar de minoridade pressupõe sempre uma relação com o outro, pois ser menor é estar sempre em referência ao externo. Já neste sentido, podemos ver Francisco predizendo o que mais tarde constara nas mais sofisticadas filosofias modernas como, por exemplo, no existencialismo do filósofo francês Sartre ao dizer que o homem é o nada, ou seja, é o nada que se constitui a partir da relação com o outro. Neste mesmo sentido, Francisco, como na maior parte de sua vida, não diz essas mesmas coisas em palavras, mas ele a vivência. Isto já nos leva a perceber a grandiosidade da figura desse homem para seu tempo e para o nosso. O homem simples de Assis não está preocupado com o se relacionar, mas com o modo de relacionar-se e com a qualidade que temos nessa relação.  

Partindo desse princípio, vemos neste breve relato, o mestre Francisco se relacionando com os seus e é claro que essa relação é banhada de fragilidades. Somos seres feitos do barro, como nos diz a linguagem poética do livro do Gênesis para nos lembrar da fragilidade humana. Nesse relato vemos a atitude do santo perante a fragilidade do outro e essa é uma atitude de minoridade, uma vez que se inclina ao outro para permanecer na mesma condição. O santo nos demonstra a atitude menor ou, melhor dizendo, o fazer pedagógico franciscano. Poderia muito bem ter exortado o irmão/ã a repensar sua vocação e com isso gerado muitos conflitos e murmúrios entre os seus como, por exemplo, o surgimento de falas como: “ele não é capaz de seguir nossa forma de vida”, “deve deixar-nos”, “ele é fraco” ou outras tantas situações que poderiam emergir. Porém, Francisco tem uma atitude de menor ao ocultar a fragilidade do outro, não no sentido de fechar os olhos para aquilo que deve ser polido, mas para que o outro se sinta aceito, valorizado e amado, é uma atitude de solidariedade. 

Nessa situação, Francisco está na contramão de seu tempo, pois está para o outro. É uma relação de dependência e não de superioridade, ou seja, eu estou com você e não sobre você. Podemos perceber também essa atitude de Francisco quando se recusa a ser monge, pois o monge, do latim monacus, que deriva do grego monos = um, só, solitário…, é o ser isolado que se retira na solidão do mundo para encontrar-se com Deus. Já Francisco não se retira do mundo, mas vai para o mundo, tece relações e, assim, podemos falar de Francisco como homem das relações com Deus, com o semelhante e com todas as criaturas. 

Dentro dessa ótica, podemos perceber que na espiritualidade franciscana não existe lugar para uma relação piramidal, há uma quebra dessa lógica. Estrutura essa que ainda é viva em nossos dias como, por exemplo, a pirâmide social tida como instrumento de opressão às minorias, podemos ver claramente na efervescência dessas grandes guerras. Assistimos um mundo de relações doentias e violentas, de senhores e vassalos onde os senhores se colocam como “o grande messias”, presumem a salvação de todos ou de parcelas, taxam aqueles que devem ser punidos ou aniquilados da sociedade, proferindo discursos de ódio em que o outro é destituído de dignidade, principalmente, negros, homossexuais, mulheres, pobres, indígenas e outros tantos. 

Dessa maneira, ao olharmos para o nosso pai seráfico, que possamos nos alimentar desse carisma de minoridade em tempos difíceis. É preciso resgatarmos o “sentir com”, “estar com” e que, assim, possamos criar relações humanizadoras com o outro e fazer ecoar ainda mais forte o canto proferido pela boca do próprio santo na tardezinha do dia 3 de outubro. Que a exemplo do próprio Cristo, que coloca a criança no meio dos seus para ser modelo e exemplo de cristão/ã, busquemos renascer a criança em nós, aquela que sonha em ser médica e se alegra ao receber biscoitos e bananas, pois ser criança é ser aquele que tem necessidade de tudo e de todos. Assim, que o seguir Francisco de Assis seja “sentir com” para que possamos cantar como o santo cantou o cântico das criaturas.  


[1] Graduado em Filosofia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino, graduado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e Especialista em Ensino Religioso pelo Instituto Pedagógico de Minas Gerais, IPEMIG.

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