Jeremias, o perdão e nova aliança: esperança ou sonho?

“Perdoarei sua maldade, e não mais lembrarei o seu pecado.” (JR 31,31-34)

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM[1]

O texto sobre o qual vamos refletir é Jr 31,31-34. Trata-se da nova aliança entre Deus e Israel. O mais famoso dos Jeremias bíblicos, esse profeta sensível ao sofrimento, homem de profunda piedade e da crise, optou por não se casar para dedicar-se ao profetismo, entre os anos de 626 e 587 a.E.C., na cidade de Jerusalém. A sua atuação foi marcada, sobretudo, pela invasão da Babilônia, que destrói Jerusalém.

Inúmeras são as denúncias feitas por Jeremias, dentre elas: Tribunais com seus juízes corruptos que não têm interesse pela causa do órfão e do pobre (5,28); Comerciantes que se enriquecem às custas dos pobres (5,27); Sacerdotes que usam a religião em proveito próprio (5,31) e colaboram com a injustiça (8,4-9,25); Salário não pago aos trabalhadores (22,23-19); Luxo e riqueza (5,25-28;17,11); Príncipes (34,10.19) e Ministros do rei (22,2) etc.

Diante dessa situação, Jeremias propõe diversas soluções, dentre elas: Conversão do povo (3); Novo rei suscitado por Deus para impor o direito e a justiça (23,5-69); Justiça nos tribunais (7,5; 21,12; 22,1-5); Libertação dos escravos no fim de cada 7 anos (34, 13-22) etc.

A passagem que estamos refletindo, propõe uma Nova Aliança de Deus com o povo, escrita no seu coração, com o perdão dos pecados e não mais lembrança deles (31,31-34). Trata-se de um texto emblemático.[2]

Como seria essa Nova Aliança? Seria ruptura com a realizada no Sinai com Moisés ou a sua renovação? Vejamos! Considerando que se a história de Israel, a partir do ponto de vista do Deuteronomista, é um contínuo repetir-se de acordos rompidos e reformulados entre Deus e Israel, chega o momento em que isso não é mais permitido; chega o momento em que a velha estrutura chega ao fim, é o que nos dizem os vv. 31-32[3], quando afirmam que a Nova Aliança não será como a Aliança feita com o pais. Não se trata, no entanto, de uma ruptura total entre a aliança Sinaítica e a nova apresentada por Jeremias. Haverá, sim, uma nova aliança, diferente da Sinaítica, porém, a diferença entre elas não se encontra na essência, mas no modo como a nova aliança será realizada e no seu significado. Na verdade, Jr 31, 31-34 fala de nova “aliança”, mas não de nova “lei”. Haverá, sim, um futuro diferente do passado. Mas que, necessariamente, não elimina o passado. Como, então será a nova aliança?

O v. 33b diz: “porei a minha aliança no seu seio e a escreverei no seu coração”. Essa metáfora chama atenção para a diversidade da nova aliança ao ressaltar implicitamente que, se a lei sinaítica tinha sido escrita em tábuas de pedra (Dt 9,10) e o pecado de Judá gravado na pedra do seu coração (Jr 17,1), na situação de nova aliança tudo será diferente. Deus alcançará a profundidade do homem, o seu coração. E nesse ficará inscrito para sempre a Sua Lei. Desse modo, ele poderá seguir livre e alegremente ao Senhor.

Com a “Lei” escrita no coração ninguém precisará mais incentivar seu irmão a conhecer Senhor, porque todos O conhecerão (34a). É o que nos mostra a expressão “dos menores aos maiores” 34a. A Nova Aliança de Jeremias é nova porque essa não precisará, como a Sinaítica, ser ensinada (Dt 11,19). Deus mesmo, sem intermediários, estará no coração de cada um.[4] E, mesmo se no passado “eles romperam a minha aliança”, no futuro, na volta do Exílio da Babilônia, “eles serão o meu povo e eu serei o seu Deus” (v.33b). Trata-se de uma nova espiritualidade! Uma relação entre o Senhor como “esposo” e o seu povo. Esse velho princípio da antiga aliança (Ex 6,7) não poderá ser mudado. Um relacionamento, exclusivo e livre, possibilitará a realização de uma nova aliança, onde não será permitido a adoração de outros deuses. E o povo, tendo a Lei escrita no coração, “com todo o seu coração, com todo seu ser e com todo a sua força amará a Deus” (Dt 6,5).

Para que isso se realize, a atitude de Deus em favor do povo consiste em perdoar a culpa, e de seus pecados não se lembrar mais. A vontade divina de perdoar não representa somente a base para nova aliança, mas é a força motriz e a garantia de estabilidade. O não… ainda reforça a ideia de que o perdão será possível. Os verbos slh (perdoar)e zkr (lembrar) são, na verdade, dois modos diferentes para dizer a mesma coisa: Deus perdoará!

O v. 31,34c promete o perdão total para a faltas que os cativos de Judá e de Israel tinham cometido contra Ele (33,7). O perdão é um dom, oferecido por Deus, mesmo quando o povo não é capaz de reconhecer o seu pecado e pedir o perdão. As condições para receber o perdão divino foram apresentadas, mas, não sendo o povo capaz de assumi-las, Deus intervém e promete restabelecer uma nova aliança. Promete colocar a Lei no coração e, enfim, perdoá-lo. A nova aliança é, por assim dizer, o perdão de Deus que chega ao seu povo; é um entrar do povo no dom de Deus, que confere o perdão sem perguntar pelo arrependimento. Ao mesmo tempo, nova aliança significa esperança de poder chegar a essa situação. Deus é misericordioso por natureza. Ele conhece a situação perene de pecado em que se encontra o ser humano. Por isso promete numa situação de aliança, um perdão eterno, pois Ele sabe que o seu parceiro de aliança poderá traí-Lo uma, duas ou mais vezes.

Na nova aliança, Ele vai perdoar a culpa e esquecer os pecados deles. Esse perdão, fundamental para a nova relação entre o povo e Deus, acontecerá, não porque o povo pediu, mas porque Ele lhe oferece. O futuro diferente do povo encontra a sua raiz em Deus. Somente Ele pode dar-lhe uma nova vida, numa nova aliança, por meio do perdão dos seus pecados. E com a Nova Aliança se dá uma ruptura qualitativa na história, e instaura-se o novo. Permanece, entretanto, a tensão do já e ainda-não. Tornada próxima, a nova aliança está ainda por vir. Ela acontecerá quando o mundo for capaz de instaurar um novo tempo, com o fim todo tipo de discriminação, quando os países ricos forem capazes de perdoar as dívidas dos países pobres, quando a terra estiver nas mãos dos que precisam de terra etc. Seria isso um sonho? Sim e não. Eu espero não ter que despertar, como Jeremias, e ver que tudo isso não tenha passado de um mero sonho agradável (Jr 31,26).


[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de doze livros e coautor de quatorze. Destaque para: O medo do inferno e arte de bem morrer: da devoção apócrifa da Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte, Petrópolis: Vozes, 2019. Último livro: Os murais do Santuário de Santo Antônio, de Divinópolis (MG) na perspectiva do Três na Trindade e na Crucifixão de Jesus. Belo Horizonte: Provincia Santa Cruz, 2024. Caso se interesse por aulas sobre Bíblia e apócrifos, inscreva-se no nosso canal no YouTube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos ou https://www.youtube.com/c/FreiJacirdeFreitasFariaB%C3%ADbliaAp%C3%B3crifos

[2] FARIA, Jacir de Freitas. Profetas e profetisas na Bíblia: história e teologia profética na denúncia, solução, esperança, perdão e nova aliança. 4. reimpressão. São Paulo: Paulinas, 2024, p. 103-128. 

[3] BOVATI, P. Ristabilire la Giustizia, AnBib 110, Roma 1986, p. 148.

[4]BEAUCHAMP, P. L’uno e l’altro Testamento, Brescia 1985, p.61.

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