O texto que inspira a nossa reflexão é MT 26,14-25. Jesus está à mesa com os seus apóstolos, quando revela um encontro fatal com o seu traidor, o apóstolo Judas Iscariotes, aquele que cuidava das finanças, da bolsa dos apóstolos.
Jacir de Freitas Faria
Semana Santa é sempre um momento propício para rever a nossa caminhada, a procissão interminável de nossas vidas, regada de encontros e desencontros diversos, sofrimentos múltiplos e esperança sempre. Em muitas comunidades, hoje é dedicado à reflexão sobre o encontro de Maria e seu Filho, Jesus. Gostaria de aproveitar essa cena para refletir sobre outro encontro, o de Jesus com Judas Iscariotes, pouco antes de sua procissão rumo ao calvário da morte. O texto que inspira a nossa reflexão é Mt 26,14-25. Jesus está à mesa com os seus apóstolos, quando revela um encontro fatal com o seu traidor, o apóstolo Judas Iscariotes, aquele que cuidava das finanças, da bolsa dos apóstolos.
Comecemos com as seguintes perguntas: Quem é Judas na tradição cristã? Por que os evangelhos canônicos apresentam Judas como traidor? Se Jesus era tão conhecido, até mesmo pelo império romano, por que ele precisaria de um delator? Ou todo grande personagem precisa de um grande traidor? O que significa afirmar que o traidor come no mesmo prato?
O nome Judas tem relação com os judeus. Judas teria sido colocado na lista dos apóstolos para dizer que os judeus trairiam Jesus? Boa pergunta. A figura de Judas foi criada para estigmatizá-los como traidores. Na Baixa Idade Média, a Igreja propagou a rejeição aos judeus. A tradição da memória de Judas, tanto nos textos canônicos como nos apócrifos – (há um evangelho apócrifo gnóstico atribuído a Judas Iscariotes) – procurou imputar a Judas Iscariotes a culpa pela morte de Jesus. Há somente um fragmento apócrifo que transfere a culpa para a sua mulher, considerada má.
Judas entregou Jesus por 30 moedas. Aplicando a guematria hebraica, um modo como os judeus fazem uma interpretação judaica, atribuindo um número a cada letra de um nome bíblico escrito em hebraico, Judas, em hebraico, I+H+U+D+H corresponde a 10+5+6+4+5=30. Considerando ainda que o número 3 representa o Divino, e 10, a completude, tudo que posso abarcar com as mãos. Com sua atitude, Judas traiu complemente a Deus, o Divino, em Cristo, assim como recordará, sempre, ao povo judeu a traição ao judeu e histórico Jesus de Nazaré. Judas traz no seu nome a punição e o preço de sua traição e a de seu povo. Trinta moedas é o seu próprio nome.
A comunidade judaica de Mateus conta que Jesus convida os seus apóstolos para a ceia pascal e nela faz uma forte revelação, a de que o traidor estaria no meio deles e, o que é mais grave, para ele melhor seria que não tivesse nascido, tamanha seria a sua culpa. Judas tem a sua figura enaltecida diante da grandiosidade de Jesus. Nesse sentido, nada melhor que um grande traidor. A cena mais trágica ocorre quando Judas, já consciente de seu plano para prender Jesus, ainda pergunta, negando a sua culpa: “Por acaso sou eu, Senhor?” Jesus responde com uma afirmativa: “Tu o dizes” (Mt 24,25).
Nesse encontro, há dois elementos importantes: a negação e a admissão da culpa. Judas sabia que iria trair Jesus. Ele já tinha decidido por isso, mas come com o Mestre no mesmo prato, demonstrando-lhe um falso sentimento. Era o costume judaico comer na mesma panela. Jesus conhece a pretensão de Judas e, por isso, dá a conhecê-la. Qual Mestre/Pai/Mãe que não conhece o seu discípulo, seu filho? Não é Deus quem escolhe Judas para traí-lo, Judas opta por agir desse modo. Judas não ama de verdade a Jesus. Ele usou a razão para trair o Mestre, por isso os seus sentimentos só poderiam ser falsos. Ele mesmo se entrega com seus falsos atos. Ao entregar Jesus, ele entregou a si mesmo. Quem não segue a Torá, o Caminho da Justiça, encontrará o caminho da morte sem retorno à vida: a forca, o suicídio.
É dramático o final da história de Judas. Ele procurou os chefes dos sacerdotes e anciãos para devolver o dinheiro recebido pela traição. Esses nem fizeram caso do sofrimento interior de Judas. Disseram: “Que temos nós com isso? O problema é teu” (Mt 27,4). Judas, então, atirou as moedas no Templo e foi enforcar-se. As moedas serviram para comprar um terreno e nele fazer um cemitério para estrangeiros. Esse lugar recebeu o nome de “Campo do Sangue”. (Mt 27,5-8).
Por ser uma personagem de notória fama entre os cristãos, ainda hoje, infelizmente, encontramos o costume de queimar Judas. Essa tradição traz um quê de antissemitismo e antijudaísmo. Queima-se o Judas com o intuito de queimar o povo judeu, por não ter aceitado Jesus como Messias.
Judas continuam vivos no meio de nós. Traímos quem amamos, usamos o poder do dinheiro para tirar a vida do outro. Entre os políticos são inumeráveis os judas de nosso tempo. Eles roubam a esperança do povo, traem a confiança do voto. A culpa de Judas foi pesada, a nossa deveria ser maior ainda, quando não propiciamos o encontro com o Jesus que passa fome, vive maltrapilho, desempregado, sem casa, sem teto, sem trabalhos, sem acesso à educação. Quantos desencontros que clamam por encontros de vida e de esperança! Sejamos propiciadores desses encontros.
[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apocrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ
[2] Para um breve comentário a esse evangelho e fragmentos apócrifos sobre Judas Iscariotes, veja em: FARIA, Jacir de Freitas Faria. Apócrifos aberrantes, complementares e cristianismos alternativos: poder e heresias! Introdução crítica e histórica à Bíblia Apócrifa do Segundo Testamento. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 232-245.