Justiça: um diálogo entre Basquiat e o evangelista Lucas

Justiça: um diálogo entre Basquiat e o evangelista Lucas

A obra escolhida é de 1981 e nada mais é que um desenho a lápis em um pedaço de papel, mas que não perde o seu valor si

Frei Vitor Vinicios da Silva, ofm[1]

A arte da contemplação é algo sempre necessário e cada vez mais escasso em uma sociedade marcada pela rapidez do cotidiano. Embora estejamos cada vez mais carentes desse ato, podemos encontrar na arte um momento para tal evento. Nesse sentido, advogo um desenho de um dos artistas, particularmente, mais emblemáticos e vorazes do século XX que pode nos propiciar uma reflexão já presente nos escritos lucanos. Para tal, iniciaremos demarcando a importância do artista e da sua arte, a compreensão do conceito de justiça no universo bíblico e, por fim, a perícope do Evangelho de Lucas 19, 1-10 (Zaqueu) como um exemplo claro do modelo de justiça anunciado por Jesus.

O artista Jean-Michel Basquiat (1960-1988) foi um pintor negro nascido no Brookyn na cidade de Nova Iorque. Sua família é de classe média tendo um pai de origem haitiana, uma mãe porto-riquenha e duas irmãs que estão vivas e promovem o trabalho do irmão. Sua trajetória iniciou-se nas ruas da cidade de Nova Iorque como grafiteiro, sua tela era os murros e as paredes de vários edifícios, por isso é tido como aquele que extrapola os limites institucionais da arte. Sua assinatura, antes de o conhecerem como Jean Michel Basquiat, era marcada pelo termo “samo©” same old sh*t – que pode ser traduzido como ‘mesma velha merda’. Esse ‘místico’ da arte se construiu a partir do encontro, desde a tenra idade, com as galerias de artes que sua mãe o levava para que ambos pudessem apreciar o melhor da capacidade humana – a arte. Basquiat tem uma trajetória marcada pela rapidez de um foguete, produziu vorazmente durante seu pouco tempo de vida, morrendo com apenas 27 anos em decorrência de uma overdose de heroína. No fim, como afirma Miranda Sawyer no site The Guardian,

His art is irrevocably intertwined with his life: his charisma and drive, his race, his talent and sad demise. But it is bigger than that. Like the best art, it needs the world and the world needs it. And if you stand in front of a Basquiat and look, it sings its own song, just to you.[2] (SAWYER, 2017)

A obra escolhida é de 1981 e nada mais é que um desenho a lápis em um pedaço de papel, mas que não perde o seu valor simbólico e questionador. O desenho é denominado como “Deus, lei” e demonstra uma balança que, universalmente, é símbolo da justiça. Abaixo de cada um dos pratos, temos respectivamente a palavra ‘Deus’ e ‘Lei’ e no centro a imagem de um cifrão que é o símbolo do dinheiro. É interessante perceber a centralidade do cifrão que nos permite compreender que a justiça é determinada pelo elemento dinheiro e, consequentemente, não é demarcada pela imparcialidade. Nesse sentido, percebemos uma crítica contundente a uma forma de justiça que é determinada pelo valor econômico que afeta até mesmo a nossa compreensão de Deus e das noções de lei. Em decorrência, é possível percebemos uma noção de justiça denominada como mispat, que é uma das formas de justiça presente no universo bíblico, semelhante ao nosso modelo atual. Assim, recorreremos ao universo bíblico para melhor compreender esse modelo.

No mundo bíblico existem dois modelos de justiça, o denominado mispat e o rîb. O mispat é o modelo retributivo que conta com a presença de três atores: juiz, vítima e acusado. Aqui, o objetivo da vítima é convencer o juiz, seja com provas embasadas em mentiras ou em verdades, para condenar o acusado. Ademais, a vítima está atenta ao juiz e as provas que serão dadas para obter a vitória no final e, ao mesmo tempo, ele se coloca numa relação que desconhece o acusado. Com base nisso, cabe ao juiz julgar o acusado como responsável ou não e, caso seja, emitirá a sua sentença de condenação. Com isso, é um modelo que demarca uma contradição com o anúncio de um Deus misericordioso, pois nesse movimento não temos a prevalência da misericórdia. Por outro lado, temos um outro modelo de justiça denominado rîb que, segundo Palacio,

[…] está más cerca del concepto original de justiça em la Biblia. Em hebreo, las palabras tsedeq y tsedaqah traducen el concepto de justicia. Aunque su campo semântico es amplio y complejo es claro que su significado trasciende el sentido moral (virtudes cardinales), judicial (derecho romano) o filosófico. (2020, p.67).

Esse modelo é bilateral e tem como resultado a reconciliação entre a vítima e o acusado. Nesse modelo temos uma relativização do terceiro integrante que é o arbitro (juiz) dando a prioridade aos próprios autores do conflito, são eles que irão buscar caminhos de reconciliação. Em outras palavras, a vítima tem como atenção o acusado no sentido de levá-lo ao reconhecimento e confissão de sua própria culpa, há uma busca de promoção da vida e da dignidade daquele que cometeu o delito. Doutro modo, a resposta nesse modelo não será dada pelo juiz, mas é dado pelo próprio acusado que reconhece seu pecado (crime) sendo este também a porta de entrada para o perdão. No fim, o objetivo principal do modelo rîb é a reconciliação por meio do reconhecimento da culpa do acusado e do perdão concedido pela vítima e, consequentemente, a aceitação do acusado. No fim, os modelos mispat e rîb se assemelham a justiça retributiva e a restaurativa, a primeira tem o juiz como expectador, o que determinará o futuro da vítima e do acusado que sairão sem perspectivas de retomar um relacionamento, o castigo será dado para aquele que cometeu o delito e a vitória a vítima. Já a justiça restaurativa visa reparar a vítima e restabelecer as relações sociais afetadas por um delito, o fim será a retomada do sujeito ao tecido social a partir de uma reconciliação e sua finalidade aponta para a vivência harmônica na comunidade.

Com base nesses modelos, podemos afirmar que a justiça promovida por Jesus tem um rosto rîb e pode ser percebida em vários textos evangélicos. Como exemplo, retomaremos a perícope lucana 19, 1-10 que narra a conversão de Zaqueu e nos permite compreender o modelo de justiça apresentado e vivido por Jesus.

Em breves palavras, Zaqueu era o chefe dos publicanos, um cobrador de impostos, que era um serviço tido como imoral pela sociedade do tempo. Sua riqueza foi adquirida de forma injusta e, por isso, era visto de forma pejorativa pelos demais. Contudo, esse homem encontra-se com Jesus e, contrariando os demais, é acolhido pelo mestre. Olhando na perspectiva da justiça, Jesus poderia agir conforme a compreensão mispat de justiça que culminaria numa atitude de condenação por parte do juiz que nesse caso seria o mestre. O réu (acusado) Zaqueu é alguém condenado pelos demais personagens da cena, é visto como ‘o pecador’ e, nesse sentido, a justiça retributiva faria com que ele fosse condenado assumindo a sentença que seria dada. Porém, a justiça praticada por Jesus frente a um condenado é, justamente, a da restaurativa (rîb), pois não está preocupado com as provas e narrativas que são dadas pelo próprio contexto social e sim com o elemento crucial nesse modelo que é o reconhecimento do erro praticado e, consequentemente, o recebimento do perdão. Enfim, temos um exemplo clássico da justiça praticada no Reino, Zaqueu é levado a reconhecer seu erro “[…] Senhor, eu vou dar a metade dos meus bens aos pobres, e se prejudiquei alguém, vou devolver quatro vezes mais”, ou seja, reconhece que roubou dos pobres e, por isso, será restabelecido na comunidade e as suas relações sociais que foram afetadas por um delito não serão mais motivo de condenação.

Em conformidade, a arte de Basquiat nos permite retomar a crítica já feita no Evangelho de Lucas referente a compreensão e a maneira de exercer a justiça. Há no escrito lucano uma crítica a ideia de justiça que imperava naquele tempo e, de alguma maneira, na nossa atual sociedade. A arte nos permite perceber a parcialidade da justiça que é determinada, muitas vezes, pelo fator econômico e exercida a maneira mispat, isto é, não se leva em consideração o horizonte de reconciliação do sujeito, mas o objetifica. Um exemplo dessa justiça parcial é uma cena recente e questionável em que o ex-deputado, Roberto Jefferson, ao resistir a prisão com tiros de fuzil e granadas não teve uma ação que comumente a polícia tem com homens e mulheres da periferia, sobretudo negros (as). A ação foi conduzida de forma amigável, dialogada e até permeada com troca de sorrisos o que torna questionável pela disparidade em relação aos homens e mulheres de poder econômico reduzido. Seria porque ele é um homem branco detentor de um valor econômico maior? Pode ser que sim, mas são perguntas que a arte de Basquiat e a perícope lucana nos leva a fazer e nos questiona uma forma de justiça contrária a vivida por Jesus. Por outro lado, o evangelho nos mostra uma justiça que visa a restauração humana e nos faz questionar o exercício da justiça que abarrota os sistemas carcerários e não visa a reinserção dos indivíduos na sociedade. É sabido que existem vários processos parados no tempo, encarcerados que já pagaram a sua pena e, por falha do sistema, ainda permanecem esquecidos nas prisões. A obra em diálogo com o texto de Lucas nos recorda o valor de uma justiça reconciliadora que corrobora com a prática do perdão, é cógnito que a trajetória de Jesus é demarcada por uma aversão a justiça que tem como resposta a negação do sujeito e não reconciliação, mas a busca por um reconhecimento que não ocorre no exemplo colocado do ex-deputado. Em outras palavras, podemos fazer um paralelo entre a atitude de Zaqueu e a de Roberto Jefferson que nega o reconhecimento do seu erro. No fim, sabemos que o modelo bíblico de justiça está distante do nosso modelo de justiça contemporâneo, mas nos possibilita levantar questões para caminharmos cada vez mais para sistemas mais íntegros de justiça em nossos tempos.

Bibliografia

BÍBLIA Sagrada. 5.ed. Brasília: CNBB, 2021.

PALACIO, A. Monroy. Mišpat y Rîb en la profecía bíblica. Argumenta Biblica Theologica, v. 2, n. 3, p. 58-73, July. 2020. Disponível em: https://revistas.uniclaretiana.edu.co/index.php/Revista_Argumenta/article/view/66. Acesso em: 01 nov. 2022.

SAWYER, Miranda. The Jean-Michel Basquiat I Knew. The Guardian, 4 sept. 2017. Disponível em: https://www.theguardian.com/artanddesign/2017/sep/03/jean-michel-basquiat-retrospective-barbican. Acesso em: 01 nov. 2022.


[1] Licenciado em Filosofia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino, graduando em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, onde é membro do grupo de pesquisa ‘As interfaces da antropologia na teologia contemporânea’. E-mail: [email protected]

[2] “Sua arte está irrevogavelmente entrelaçada com sua vida: seu carisma e motivação, sua raça, seu talento e triste morte. Mas é maior que isso. Como a melhor arte, ela precisa do mundo e o mundo precisa dela. E se você ficar na frente de um Basquiat e olhar, ele canta sua própria música, só para você.” (Tradução nossa)

Imagem: Deus, Lei (1981)

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