Livro de Josué: Autoria, estrutura, teologia e chaves de leitura

Livro de Josué: Autoria, estrutura, teologia e chaves de leitura

O estudo desse livro traz-nos luzes para a realidade atual, a luta pela terra e o desejo de viver na igualdade social.

Jacir de Freitas Faria[1]

O livro de Josué é fundamental para a compreensão da relação de Israel com a terra e com o Deus que o escolhe como povo, faz com ele uma Aliança, exige fidelidade, e lhe dá a Terra como dom, mas que deve ser conquistada. Trata-se de um livro catequético que sustenta a luta. Ao ler Josué, perguntas se impõem, tais como: Por que Israel conquistou ou ocupou a terra de Canaã? Por que a imagem é de um Deus violento e sanguinário? Por que Deus oferece uma terra que já tinha dono? Qual Teologia sustenta o livro de Josué? Quem escreveu e quando foi escrito o livro de Josué? Qual a relação entre Moisés, Josué e Jesus? Em que a arqueologia contribui para a compreensão desse livro? [2] 

O estudo desse livro traz-nos luzes para a realidade atual, a luta pela terra e o desejo de viver na igualdade social. Terra repartida é sinal de paz e humanidade. Sonho que permanece em nossos dias.  Nem tudo que o livro narra é histórico, mas catequese que une o Sagrado, violência e fé. O livro de Josué foi usado para justificar as Cruzadas, movimento patrocinado pela Igreja Católica para resgatar os lugares santos, em Israel. Muitos morreram pela espada e por causa da fé. Judeus sionitas, no início do século XX, justificaram a morte de não aliados, os palestinos, que ocupavam a sua fé.  O extermínio de indígenas no Brasil também teve como pano de fundo, o livro de Josué.

1 A autoria e datação do livro de Josué

Em nosso tempo, um livro está sempre associado ao seu autor(a). Na Bíblia, não é bem assim, pois o autor, como se diz “livro de Josué”, pode ser apenas um pseudônimo ou uma atribuição patronímica para valorizá-lo. Atribuir um Salmo ao rei Davi ou um livro ao rei Salomão, ainda que eles não sejam os seus autores, tem como objetivo conferir autoridade ou importância ao texto. 

Uma leitura superficial do livro de Josué pode nos induzir a pensar que ele seja o autor, visto que esse personagem é o que predomina na narrativa, ao lado de Eleazar, filho de Aarão, e Fineias, filho de Eleazar. Na verdade, estamos diante de uma questão que oferece várias possibilidades. Teorias antigas e modernas discutem a autoria do livro de Josué.

Podemos identificar as seguintes opiniões sobre a autoria do livro de Josué:

  1. Josué é o autor. Essa hipótese, a mais antiga, é defendida pela tradição rabínica, conforme atesta o Talmud Babilônico (Baba batra, 14b). Bastante contestada, essa posição encontra dificuldade em explicar como Josué poderá ter escrito a sua própria morte (Js 24,29-30). Essa mesma questão surge quando atribuímos o Pentateuco a Moisés (Dt 34,5-9). Adeptos dessa teoria justificam que esse relato foi um acréscimo de contemporâneos de Josué, como Eleazar. Nessa hipótese, a datação do livro de Josué terá ocorrido final do século XII a.C.
  2. As fontes (autores) do Pentateuco produziram também o livro de Josué. Essa teoria passou a ser considerada a partir do alemão Julius Wellhausen (1844-1918), grande teórico da hipótese Documental na formação do Pentateuco. Isso significa afirmar que o livro de Josué é resultado do trabalho redacional, sobretudo, da fonte Javista (950 a.C.), com a presença de extratos das fontes Javista, Eloísta, Sacerdotal e Deuteronomista, encontradas no Pentateuco. Dessa hipótese resulta a afirmativa de que temos um Hexateuco, isto é, o Pentateuco deixa de ser uma obra completa e independente em cinco livros (Gn, Ex, Lv, Nm e Dt), passando o livro de Josué a ser a sua continuidade numa obra de seis livros. Do ponto de vista temático, a justificativa de continuidade do livro de Josué aos relatos do Pentateuco aparece, sobretudo, no fato de que Josué continua a missão de Moisés, após a sua morte, conforme relato de Dt 34. Ademais, a Terra Prometida aos Patriarcas é concretizada no livro de Josué. Wellhausen propôs que parte do livro de Josué fosse redigida no século VII, época do rei Josias.[3] A teoria defendida por Wellhausen foi aceita no meio acadêmico, mas refutada, posteriormente, com a justificativa de que o livro de Josué forma outra obra, cunhada de Obra Histórica Deuteronomista (OHDtr), com os livros de Juízes, Primeiro e Segundo Livros de Samuel e Primeiro e Segundo Livros de Reis, a qual tem um viés histórico, que parte da conquista de Canaã e chega ao exílio na Babilônia (587-536 a.C).
  3. O livro de Josué provém da fonte Deuteronomista. O alemão e estudioso da Bíblia Hebraica, Martin Noth (1902-1968), no seu comentário ao livro de Josué,[4] nega que esse livro faça parte de um Hexateuco e argumenta que, a partir de seus extratos literários, o livro de Josué é a porta de entrada da OHDtr. Para ele, as tradições que aparecem no livro de Josué são diferentes das do Pentateuco, e que o livro de Josué é fruto de uma redação deuteronomista que, mais tarde, se uniu aos demais livros dessa tradição. Para Noth, o livro de Josué recebeu também acréscimos na composição final. Noth também defendeu que a OHDtr foi fruto de um único redator, que a compôs na Palestina, no século VI a.C., após a catástrofe do exílio babilônico, ocorrido na vida do reino de Judá. Seu objetivo era o de explicar tal situação a partir da apostasia, abandono da fé em YHWH, do povo.[5] Há estudiosos, como Mark Görg, que trabalha com a hipótese de que os capítulos um a doze são de origem pré-deuteronomista e Herbert Niher, que esses capítulos são deuteronomistas.  

Dentre os estudiosos acima citados, atualmente, há os que seguem a proposta de que as fontes do Pentateuco se encontram no livro de Josué, e os que seguem e divergem da opinião de Martin Noth, a da autoria deuteronomista do livro de Josué. Não há consenso sobre quais são os textos e o redator ou redatores deuteronomistas do livro de Josué. A tendência atual é considerar a redação deuteronomista do livro de Josué e inseri-lo na OHDtr.

Em relação à datação, podemos falar de textos da época do rei Josias (640-609 a.C.), dos períodos do exílio babilônico (586-539 a.C.) e do pós-exílio persa (538-333 a.C.). 

Na verdade, a questão em torno à autoria, datação e historiografia do livro de Josué, assim das OHDtr, tem sido objeto de discussões e opiniões divergentes a partir da década de 70, quando foi colocado em xeque a teoria documentária de Wellhausen, e, com ela, a questão da história de Israel. Pesquisas recentes e descobertas arqueológicas tem contribuído para tais discussões.[6]  

2 A estrutura do livro de Josué

A estrutura do livro de Josué é muito simples. Normalmente, a divisão é feita em dois blocos, o da conquista (1–12) e o da divisão da terra (13–22), seguidos do discurso de despedida de Josué (23–24). Outra estrutura possível é a seguinte:

Introdução (1,1-9): Discurso inicial de Deus a Josué, encorajando-o para conquistar a terra e prometendo que estaria com ele na luta. Deus pede também a Josué que siga as ordens deixadas por Moisés e que seja um fiel seguidor da Torá.

Primeira parte (1,10–12,24): Chegada em Canaã e conquista da terra prometida pelas tribos, sob a liderança de Josué. Tomada de cidades e lista de reis vencidos.

Segunda parte (13–21): Repartição da terra entre as tribos e lista das cidades de refúgios e as levíticas. Promessas de YHWH são cumpridas.

Conclusão (22–24): Renovação da Aliança em Siquém, discurso final e morte de Josué.

O foco dado à Aliança, na introdução, de YHWH com Josué, seguido do pacto de Josué com Moisés e o cumprimento da Torá, é retomado na conclusão com a renovação da Aliança em Siquém para dizer que YHWH é o Deus da Aliança, e não pode ser rompida jamais por Israel. O relato da morte de Josué (Js 24,29-33) é considerado um acréscimo ao texto.[7] 

Excluindo, na estrutura, a introdução e considerando a estrutura concêntrica do pensamento semita, podemos dizer que no centro do livro estão a defesa e repartição da terra (Js 13–22), sendo que a conquista da terra (Js 1–12) e o discurso de despedida de Josué (Js 23–24) constituem as partes do sanduíche.[8] 

Uma leitura atenta de todos os extratos justapostos no livro resulta, como dissemos anteriormente, que tudo gira em torno de Josué, sua fidelidade a Deus e a Moisés. Da mesma forma, numa ação única, Josué conquista a terra pela guerra e procede a sua divisão entre as tribos. Na verdade, o processo é longo, em diversas etapas e com participação das tribos.

Ao lado de Josué, não podemos deixar de frisar que a terra de Canaã, ou Terra Prometida, é a gasolina que move a luta. Os fugitivos do Egito encontram YHWH no deserto, com Ele selam uma Aliança. Em troca, YHWH lhe dá como a herança a terra de Canaã, antiga promessa feita aos pais (Js 23,14).

3 Sete chaves de leituras para compreender o livro de Josué

A compreensão do livro de Josué requer a atenção sobre alguns pontos. Selecionamos alguns e os apresentamos como chaves de leitura.

1 A Teologia da Terra: promessa, conquista e dom de Deus 

O rei Josias (622 aE.C.) tentou reverter a situação de injustiça social que reinava no meio do povo. Em 597, com o Exílio da Babilônia, as lideranças do povo foram levadas para o cativeiro. Os que ficaram foram chamados de povos da terra.  O profeta Ezequiel havia prometido que essas terras voltariam para o povo, mas que o dono dela seria Deus. Pergunta que se impõe é o que tem isto a ver com o livro de Josué? Caso o povo mudasse de atitude, a terra de Canaã voltaria para os judeus exilados. Em Canaã, a terra já tinha outros donos.   

A primeira metade do livro de Josué trata da conquista da terra de Canaã, sob a liderança de Josué, o legítimo sucessor de Moisés. Trata-se da promessa de YHWH que deveria ser levada a cabo com o extermínio dos inimigos e conquistas de cidades, como Jericó (Js 6), Ai (Js 8), e outras tantas nas campanhas do sul (Js 10) e nas do norte (Js 11). Conquista e repartição da terra é o tema central do livro. Para a teologia deuteronomista, a Terra é dom de Deus, mas deve ser conquistada.

A conquista, de fato, ocorreu como descreve o livro de Josué? O que poderá ter ocorrido: uma conquista pela espada ou uma ocupação pacífica, a partir de alianças com a população local? Não seriam esses relatos de conquista de terra uma releitura do redator deuteronomista, no tempo do exílio babilônico (587-536 a.C.), com o objetivo de justificar o motivo do exílio? O que significa dizer que Josué conquistou a terra porque era fiel a Deus, mas nós, os exilados, a perdemos por causa de nossa infidelidade e idolatria. Não seria esse o objetivo do(s) redator(es) do livro de Josué, numa releitura dos fatos, colocados por escrito, de forma extraordinária, historiográfica, muito tempo depois?

Acrescente-se a isso o fato de que a conquista, na perspectiva de outra teologia, a da retribuição, trouxe muitos benefícios econômicos para os israelitas do passado, os quais, como Josué, foram fiéis a YHWH e à Torá. Para os exilados, partindo dessa teologia, a retribuição divina era o castigo. Tudo poderia mudar, dependendo da mudança de atitude dos exilados e da misericórdia de YHWH.

Para além da teoria da conquista da terra, o processo não seria uma revolta judaíta contra o poder do estado cananeu? Permanece a questão em aberto.

2 Fidelidade à Aliançae observância da Torá para garantir da terra

A relação de fidelidade à Aliança e à observância da Lei formam uma inclusão, no início e no fim do livro. No início da narrativa, Deus pede a Josué que seja fiel ao livro da Lei, conservando-o ante seus olhos, mediando-o dia e noite e praticando os seus preceitos, de modo que ele pudesse ser bem-sucedido na tarefa a ele confiada (Js 1,8).

O livro termina com o povo declarando fidelidade a Deus, e Josué selando uma Aliança com o povo, estabelecendo para eles leis e mandato em Siquém (Js 24,25). Ele escreveu as cláusulas no livro da Lei de Deus, pegou uma pedra e a ergueu sob o carvalho do santuário do Senhor e disse ao povo: “Olhai esta pedra, que será testemunha contra nós, pois ouviu tudo o que o Senhor nos disse. Será testemunha contra vós, para que não possais renegar vosso Deus” (Js 24,27). Findo esse processo, a Aliança com Moisés foi renovada por Josué.

O amor e obediência à Torá é algo que tudo israelita deveria passar de geração em geração. Foi assim com Moisés, Josué, e deveria ser com os seus seguidores e os israelitas de todos os tempos.

3 Idolatria não pode fazer parte da caminhada do povo

Josué, já no fim de sua missão, insiste com o povo sobre a questão da idolatria. “Se abandonardes o Senhor e servirdes deuses estrangeiros, ele se voltará contra vós e, depois de vos ter tratado bem, vos matará e destruirá” (Js 24,20), disse Josué ao povo. O povo havia-lhe dito:

Longe de nós abandonar YHWH para servir outros deuses! Porque  YHWH nosso Deus é quem tirou a nós e a nossos pais da escravidão do Egito, quem fez diante de nós grandes prodígios, guardou-nos em todo o nosso peregrinar e entre todos os povos que atravessamos (Js 24,16-17).

Ainda que a questão da idolatria apareça, explicitamente, somente no final do livro, isto é, no capítulo vinte e quatro, ela é fundamental na composição do pensamento religioso que articula a redação final do livro de Josué. O que motiva essa visão é a observância da Torá, como atesta a abertura do livro, referindo-se a Josué: “Não te apartes dela, nem para a direita, nem para a esquerda, para que triunfes em todas as tuas realizações. Que o livro da Lei esteja sempre em teus lábios: medita nele dia e noite” (Js 1,7-8a).

Outro ponto importante, que tem relação direta com a idolatria, é a questão da conquista da terra. Um dos motivos que leva Josué a conquistar a terra reside na certeza de que ao fazer isso, ele e seu grupo estariam eliminando monarquias cananeias, lideradas por reis idólatras. Nesse sentido, escreveu SCHWANTES:

Então, é isso que está em jogo: demolir as monarquias militarizadas, idólatras e extorsivas, aquilo que o texto chama de ‘cananeu’. Contudo, disso deriva uma consequência quase inevitável. Ao serem antimonárquicas, as narrativas terão que solucionar aquilo que são a fonte da monarquia, a águas da qual bebem e se abastecem os reis. Uma destas fontes é a idolatria. Ora, contra ela se dirige toda a teologia do livro: alerta contra os ídolos, como razões que fazem perder a terra. [9]   

A promessa do grupo de Josué de que não abandonaria YHWH serviu para incutir nos exilados o desejo de voltar a ser fiel a Deus. E seguir outros deuses significava perder a terra e atrair a ira divina (Js 23,16). O capítulo 22 trata da questão de adorar YHWH fora da Palestina. A resposta é que o culto só é possível em Jerusalém. “Fora da terra é pelo ensinamento e pela observância da Lei que YHWH é venerado”, escreve Rőmer.[10]   O pacto de Siquém (Js 24) foi garantia de seguimento de YHWH.

4 Imagem de Deus violento e guerreiro no livro de Josué

A imagem de Deus que transparece no texto, a de violento, coloca o(a) leitor(a) numa situação difícil. Seria essa a imagem do Deus de Israel?  O livro narra cenas de extermínio sagrado de cidades, como de Ai (Js 8,26). Com o consentimento de YHWH, os homens de Josué passam a fio de espada os habitantes dos lugares ocupados (Js 8,24).

Os israelitas matam, mas quem faz isso é YHWH, o que justifica tais atitudes. Trata-se de uma “guerra santa” criada pelas doze tribos, na época de Josué.[11] Teria, de fato, esse tipo de guerra ocorrido, ou foi uma interpretação teológica ocorrida após a conquista da terra? Ou melhor, é “guerra santa” ou “guerra de YHWH”?

No capítulo cinco YHWH é o chefe do exército (Js 5,14). Jericó cai mediante uma grande procissão litúrgica. O capítulo vinte do livro do Deuteronômio dá as coordenadas de uma guerra santa, ao orientar: “Quando saíres para a guerra contra teus inimigos, e vires cavalos, carros e um povo bem mais numeroso que o teu, não terás medo deles, porque contigo está YHWH, teu deus, que te tirou da terra do Egito” (Dt 20,1). O sacerdote profere palavras de incentivo para os combatentes, garantindo que Deus combate com eles contra os inimigos para lhes dar a vitória.

Ao chegar um uma cidade para atacá-la, a primeira atitude é a de propor a paz e o povo aceitar servir a Israel com trabalhos forçados. Caso isso não acontecesse, os israelitas deveriam passar a fio da espada todos os homens e apossar-se, como despojo de guerra, de mulheres, crianças, gado e os outros bens da cidade (Dt 20,10-20).

Moisés também agira com violência, ao matar um egípcio que maltratava um hebreu (Ex 2,12). Nesse caso, Moisés não tinha a anuência divina. A teologia preferiu o Moisés libertador ao violento. Destruir, matar e apossar-se de terras e bens parece não ter sido problema para Josué e seus liderados. Mas, teremos a oportunidade de aprofundar essa face violenta de Deus no próximo capítulo dessa obra.

  • A arqueologia: a conquista de Jericó não foi bem assim

Desde o seu início, nas primeiras décadas do século XX, sobretudo, a partir da década de 1970, a arqueologia tem sido fundamental para compreender os relatos bíblicos, suas discrepâncias entre o achado arqueológico e o relato bíblico historiográfico. Bíblia e arqueologia estão em campos distintos, mas se complementam.

Não foi diferente com as narrativas no livro de Josué, quando afirma, como vimos acima, que o povo de Deus, vindo do Egito, conquista a ferro e fogo a região de Canaã, a terra prometida aos pais. Descobertas arqueológicas da década de 1980 não sustentam essa hipótese. No congresso de arqueólogos, em 1984, Kochavi afirmou: [12]

A evidência arqueológica indica que muitas cidades cananeias que são consideradas uma conquista de Josué, ou destruídas pelos camponeses rebeldes, simplesmente não existiram no final do Bronze Tardio, dentre elas Jeboson, capital do amorreus, Sijon, Arad, Jericó e Hai, cidades cuja caída é descrita com detalhes. Outras cidades, que se considerava ter sido destruídas com resultado de um levantamento massivo ou de uma conquista feita de uma só vez e em poucos anos de duração, foram, na realidade, destruídas paulatinamente em um período de tempo de várias gerações. Jazor desapareceu em 1275 a.E.C. 

A conclusão que decorre é que não houve uma conquista como descreve o livro Josué e, o que é mais intrigante, Jericó e Haia nem existiam na época de Josué, quando chegou em Canaã. O relato do livro está no campo da fé e nada mais.

6 A liturgia como ponto de partida para garantir a terra conquistada e a tomada de Jericó e na Assembleia de Siquém

O livro de Josué pode ser lido numa perspectiva litúrgica. A terra é o maior dom de Deus dado ao Povo de Israel. Por ela, cada israelita era chamado a lutar para conquistá-la. A tomada de Jericó não passa de uma grande liturgia de entrada na terra da promessa. Muros não caem, berrantes não teriam o poder de derrubar muralhas, mas de alimentar, liturgicamente a fé de um povo que espera e procura sempre voltar para a Terra da Promessa. Foi assim com Abraão, Moisés, Josué e os repatriados do exílio babilônico. Sem a terra a vida não acontece.

Assim como o Pentateuco terminou com a morte de Moisés e a sua não entrada na terra, para lembrar que ela é sempre um dom e uma conquista, Josué entra de forma litúrgica na terra de Canaã. Muitas lutas ainda estariam por vir na vida do povo. Lutas foram colocadas no patamar religioso, litúrgico. Não importavam os que morriam, o que valia é que Deus havia prometido a terra ao seu povo. Reconquistá-la era uma questão de fé e de agradecimento a YHWH.  Esse era sonho de um recomeço, no pós-exílio.

Js 6,1-27 trata da liturgia de entrada na terra da promessa. Muros caem simbolicamente. Trombetas não teriam o poder de derrubar muralhas, mas de alimentar liturgicamente a fé de um povo que ansiava voltar para a Terra Prometida. Sem a terra reconquistada a vida não aconteceria na volta do exílio babilônico (587-536 a.E.C). A presença na terra prometida foi sinal de bênção para Abraão; de luta para Moisés, no Egito; de conquista para Josué, em Canaã; e de esperança para os exilados, ao se recordarem das façanhas do rei Josias (639 a 609 a.EC.). 

Js 24,1-28 relata a reunião de todas as tribos no centro da terra prometida, Siquém, para celebrar a conquista definitiva da terra e reafirmar, liturgicamente, o pacto da Aliança com Javé, o Deus que libertou o povo da escravidão do Egito. Ele fez a sua parte, agora caberia ao povo celebrá-Lo, demonstrando a sua fé e obedecendo as leis previstas na Torá.

Já Js 23,1-16 trata da relação da conquista da terra com o cumprimento da Torá, condição necessária para manter a terra nas mãos do povo da Aliança. Josué faz o seu discurso final apelando ao povo pelos deveres e direitos na terra dada por Javé.   

Nessas três passagens, ainda que tenha enfoques distintos e seja escrita em épocas e contextos diferenciados, em todas elas o tema que as move é a terra da promessa. Ela é o maior dom de Deus dado ao seu povo escolhido. Por ela, cada israelita era chamado a lutar e estar sempre no movimento de conquista. Por isso, o Pentateuco termina com a morte de Moisés (Dt 34) e a sua não entrada na terra para lembrar que ela é sempre um dom e uma conquista. Josué, por outro lado, entra de forma litúrgica na terra de Canaã e nela morre, reafirmando o cumprimento da Torá dada a Moisés, no Sinai.

Uma coisa é certa, muitas lutas ainda estariam por vir na vida do povo. Colocadas no patamar litúrgico, reconquistar a terra era uma questão de fé e de agradecimento a Deus. Recomeçar sempre, seja no exilio da Babilônia (587 a 538 a.E.C.) ou no pós-exílio da dominação persa (538 a 333 a.E.C.).

7 No nome de Josué a relação com a salvação trazida por Jeus  

Conforme atesta Nm 13,1-16, Moisés, por ordem do Senhor, escolhe doze homens, um de cada tribo, para conquistar a Terra Prometida, após a saída do Egito. Eles deveriam ir à frente para explorar, espiar, a terra de Canaã. A lista dos escolhidos termina com a decisão de Moisés de mudar o nome de Oseias, da tribo de Efraim e filho de Nun, para Josué (Nm 13,16). Por que ele fez isso? 

O contexto imediato dessa mudança de nome reside no fato de que o povo estava revoltado contra Moisés e Aarão. Entre gritos e choro de uma noite inteira, eles disseram a Moisés e Aarão: “Oxalá tivéssemos morrido na terra do Egito ou tivéssemos morrido neste deserto! Por que o Senhor nos fez vir para esta terra, a fim de fazer nossas mulheres caírem pela espada e nossas crianças tornarem-se objeto de saque? Não nos seria melhor voltar ao Egito?” (Nm 14,2b-3).[13]

Os acampados no deserto queriam voltar para o Egito sob outra liderança, escolhida por eles (Nm 14,1-3). “Vamos instituir um líder, e voltaremos ao Egito” (Nm 14,4), disseram. Ao ouvir a lamúria do povo, Moisés e Aarão prostraram-se por terra. Nesse momento, Josué, juntamente com outra liderança que tinha ido espiar a terra de Canaã, Caleb, rasgando as vestes em sinal de tristeza e angústia diante da atitude do povo, tomou a palavra e garantiu que a terra espiada era muito boa, que dela manava leite e mel, e que YHWH a daria a seu povo. Ele disse:

A terra que atravessaremos para explorá-la é terra muito boa. Caso YHWH se compraza conosco, então nos fará entrar nessa terra que jorra leite e mel. Tão somente não vos rebeleis contra YHWH! E que vós não temais o povo da terra, porque eles serão devorados como nosso pão! Retirou-se, pois, de cima deles a sombra. Quanto a nós, YHWH está conosco. Que não os temais! (Nm 14,7-9).[14]

A reação do povo foi a de desejar apedrejar Josué e Caleb. Fato que não ocorreu, pois a glória de YHWH apareceu na tenda da reunião, diante de todos os israelitas (Nm 14,10). Com a intervenção de Moisés e Aarão, essas atitudes de infidelidade e desprezo do povo foram perdoadas por YHWH. E o povo continuou a sua caminhada em direção à Terra Prometida.

Moisés morreu avistando, por ordem divina, Canaã, a terra que Deus prometeu dar aos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó (Dt 34,4). As últimas palavras do livro do Deuteronômio são sobre Moisés:

Em Israel, não se levantou mais um profeta como Moisés, um que YHWH conhecesse face a face, por todos os sinais e prodígios que YHWH lhe ordenara fazer na terra do Egito, diante do faraó, de todos os seus servos e de toda a sua terra sua corte e seu país, e por tudo que Moisés, com sua mão forte e com grande terror, fez aos olhos de todo Israel (Dt 34,10-12).[15]

Deuteronômio também não deixa de destacar a liderança e a sabedoria de Josué, o servo escolhido por Moises para ser o seu sucessor: “Os filhos de Israel o escutaram e fizeram como YHWH ordenara a Moisés” (Dt 34,9). Isso ocorre porque Josué, o filho de Nun, já tinha sido escolhido por Moisés para dar continuidade à sua missão.

A predileção de Moisés por Josué justifica-se pelo fato de Josué ser considerado o seu servo desde a juventude, servindo-o junto à tenda da reunião (Ex 33,11; Nm 11,28).  Josué estava com Moisés no monte Sinai, quando ele recebeu as tábuas da Lei, a Torá (Ex 24,13), e quando desceu do monte e viu o povo adorando o bezerro de ouro (Ex 32,17-19).

Prevendo a morte de Moisés, Deus disse a Josué: “Sê forte e corajoso, porque tu farás os filhos de Israel entrarem na Terra que eu lhes jurei! Eu estarei contigo” (Dt 31,23). No livro de Josué, Deus pede a Josué que seja um fiel cumpridor das ordens deixadas por Moisés (Js 1,7). Deus esteve ao lado de Moisés e fará o mesmo com Josué (Js 1,5).

Assim como Moisés, Josué não está acima da Torá, mas dela deve ser fiel seguidor (Js 1,8). O livro de Josué abre-se com a promessa divina de que a terra será entregue por Deus ao povo, por intermédio de Josué, na continuidade da missão de Moisés. 

Oseias, agora Josué, em hebraico Yehôšūaʽ, nome que significa YHWH é/dá a salvação, resultado da junção, da partícula YH, de YHWH, com š’, que significa salvar. Josué recebeu o encargo de manter viva a memória e os ensinamentos da Torá, recebida por Moisés. No Novo Testamento, o Messias enviado por Deus para liderar o seu povo na construção de seu reino recebe o nome de Jesus, que é a transliteração grega do nome hebraico Josué. Com isso, ficou estabelecida uma relação entre o nome e missão de Josué e Jesus, o que nos leva a afirmar que no relato bíblico existem dois Yehôšūaʽ, o filho de Nun, e o Yehôšūaʽ de Nazaré.

Conclusão 

O livro de Josué, no modo como é apresentado na sua redação final, pode parecer ser de um único redator, mas não o é. Ele é fruto de várias épocas e contextos, o que resultou em historiografias diversas. Antes do exílio babilônico a questão da conquista da terra era fundamental e, com a ela, a visão de YHWH, um guerreiro que legitima conquistas sangrentas de povos e da própria terra que Ele prometeu aos pais.

Já na sua redação pós-exílica, a Torá ganhou lugar de destaque. O povo devia segui-la com fidelidade. A idolatria não podia ser permitida em Israel. Após a conquista da terra, tornou-se de fundamental a fidelidade à Torá. Seguir os deuses de outros povos, cometendo o pecado da idolatria, significava perder a terra.

Josué foi o discípulo predileto de Moisés. Com ele, a Torá continuaria sendo observada pelo povo da Aliança. A terra dada como promessa foi conquistada pela habilidade de Josué, um valente guerreiro, que teve sua imagem projetada na figura de YHWH, o Deus dos exércitos que vence as guerras e mata.

Josué é um livro recheado de historiografias de vida. Se os fatos aconteceram, tais como descrevem nos relatos, é passível de controvérsias, uma coisa é certa: na vida não há conquista sem luta e fidelidade a um projeto de esperança. Josué é um livro de esperança de reconquista de terra, de um recomeço sempre, ainda que seja por meios não muito salutares.

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Foto: Cathopic – Banco de imagens gratuito.

Referências

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NOTH, Martin. Das Buch Josua. HAT, 7, Tübingen: Mohr Siebeck, 2 ed. 1953.

PRADO, Jose Luis Gonzaga. A invasão/ocupação da terra em Josué: duas leituras, duas faces. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 88, p. 31, 2005.

VON RAD, Gerard. Der Heilege Krieg im alten Israel. 5 ed.
Göttingen: Vandenhoeck e Ruprecht, 1969. 

WELLHAUSEN, Julius. Prolegomena to The history of Ancient Israel. New York: Merian Boks, 1975, p. 90-134.        


[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Último livro: O Medodo Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte. Petrópolis: Vozes, 2019. Canal no You Tube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos ou <https://www.youtube.com/c/FreiJacirdeFreitasFariaB%C3%ADbliaAp%C3%B3crifos>.

[2] Para o estudo sobre Josué, confira: FARIA, Jacir de Freitas (Org.). Livro de Josué: aspectos introdutórios. In: VITÓRIO, Jaldemir; LOPES, Jean Richard; SILVANO, Zuleica Aparecida (ORGS). Livro de Josué: “Nos serviremos o Senhor”.  São Paulo: Paulinas, 2022, p. 75-90.  Veja também. MOREIRA, Gilvander; FARIA, Jacir de Freitas (ORGS). O livro de Josué: luta pela terra, dom e conquista. Vila Velha: Cebi-Mg, 2022.

[3] WELLHAUSEN, Julius. Prolegomena to The history of Ancient Israel. New York: Merian Boks, 1975. p. 90-134.

[4] NOTH, Martin. Das Buch Josua. 2.ed. Tübingen: Mohr Siebeck, 1953.

[5] DA SILVA, Airton José. O contexto da obra histórica deuteronomista. Estudos bíblicos,Petrópolis, v. 88, n. 4, p. 11, 2005.  

[6] FARIA, Jacir de Freitas (Org.). História de Israel e as pesquisas mais recentes. Petrópolis: Vozes, 2003. 

[7] NIHER, Herbert. O livro de Josué. In: ZENGER, Erich (Org.). Introdução ao Antigo Testamento. Trad. Werner Fuchs. São Paulo: Edições Loyola, 2003. p. 171.

[8] ALMEIDA, Fabio Py Murta.  Uma introdução ao livro de Josué. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG,Belo Horizonte, v. 4, n. 7, p. 4, out. 2010. Disponível em: <http://www. periodicos.letras.ufmg.br/index.php/maaravi/article/view/1786>. Acesso em: 10 ago. 2021. 

[9] SCHWANTES, Milton. Comentários introdutórios sobre Josué e Juízes. Revista Caminhando v. 12, n. 19, p. 15-28, jan-jun 2007, p. 21. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/Caminhando/article/download/1244/1259 > Acesso em: 28 set. 2021.

[10] RŐMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe (ORGS.). Antigo Testamento: história, escritura e teologia. São Paulo: Loyola, 2010, p.319-320.

[11] VON RAD, Gerard. Der Heilege Krieg im alten Israel. 5 ed. Göttingen: Vandenhoeck e Ruprecht, 1969. 

[12] KOCHAVI, M. The Israelite Settlement in Canaan in the Light of Archeological Evidence. Biblical Archaeology Today, Jerusalén, v. 40, n. 3, p. 55, 1985.

[13] A tradução é extraída da A Bíblia: Pentateuco. São Paulo: Paulinas, 2021. p. 324.

[14] A Bíblia: Pentateuco, 2021, p. 325

[15] A Bíblia: Pentateuco, 2021, p. 452.

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