Lideranças da Cúpula dos Povos reforçaram que, à luz do Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis, não há fronteira entre crise ambiental e crise social.
Enquanto negociadores debatem metas climáticas, Cúpula dos Povos em Belém entrega Documento Oficial e celebra eucaristia que une ecologia integral e defesa dos territórios, propondo a “fraternidade cósmica” como antídoto à crise.
Frei Laércio Jorge, ofm [1]
BELÉM/PA 16 novembro 2025 – Em um contraponto direto aos corredores formais da Conferência do Clima da ONU, a Cúpula dos Povos viveu, neste domingo (16 de novembro de 2025), um dia dedicado a fundamentar a justiça climática na justiça social. A data, coincidindo com o Dia Mundial dos Pobres instituído pelo Papa Francisco, foi marcada por um ato político e uma celebração religiosa que traduziram conceitos da ecologia integral em demandas concretas, colocando os mais vulneráveis no centro do debate.
Pela manhã, em um ato carregado de simbolismo, representantes dos movimentos sociais entregaram oficialmente a Declaração dos Povos ao Embaixador André Corrêa do Lago, Presidente da COP30. O documento, construído por mais de 1.100 organizações, é a materialização do que o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos chama de “Epistemologias do Sul”: a reivindicação de que o conhecimento e as soluções para a crise planetária devem emergir a partir dos saberes e das experiências dos povos oprimidos.
A participação massiva evidencia a consolidação da Cúpula como espaço de formulação popular.
“Nosso futuro comum depende de participação social, solidariedade internacional e defesa dos territórios”,
sintetizaram representantes da plenária.
O cerne da mensagem é que não há solução para a crise ambiental sem enfrentar a crise social. Essa visão foi sacramentada, na Igreja Santo Antônio de Lisboa, durante uma celebração eucarística que reuniu lideranças religiosas, militantes e comunidades tradicionais. A homilia proferida por Frei João Paulo (JPCI), franciscano, trouxe uma crítica contundente às contradições entre discurso religioso e prática social. Em sua exortação teológico-político ecoou a crítica do Papa Francisco à “cultura do descarte”, exposta na encíclica “Laudato Si'”, que trata tanto de seres humanos quanto do planeta como objetos descartáveis.
“Onde está nossa profecia?”, questionou o frei, em um momento de exortação contundente. “Diante da COP30, onde estamos? A quem voltamos o nosso olhar?”. Suas palavras articularam uma ecoteologia militante, insistindo que a espiritualidade deve se traduzir em ação concreta. “Falar do evangelho é ouvir a foz de quem sofre. As periferias já vivem a crise climática, experimentando enchentes, ilhas de calor, insegurança hídrica e remoções forçadas. Assim, o chamado espiritual se articula diretamente às lutas por moradia digna, transporte justo e territorialidades protegidas. Exorto-vos a ouvir com-paixão, pois o nosso Deus ouvi o clamor, responde e pratica a justiça”, afirmou, propondo uma escuta radical do “grito da Terra e o grito dos pobres”, outra ideia central da Laudato Si’.
A fala dialogou com debates sociológicos contemporâneos sobre o papel das instituições religiosas nas periferias, onde igrejas funcionam frequentemente como infraestruturas sociais de acolhimento, redes de proteção e mobilização política.
A celebração não se limitou ao espaço sagrado. A inauguração de um painel do artista Marcelo Zuffo (@mzuffoch) nos jardins da Praça Batista Campos funcionou como um marco da “fraternidade cósmica” – um conceito que, na visão de pensadores como Leonardo Boff, entende a humanidade como parte integrante e interdependente de uma grande comunidade de vida. A obra expressa a dimensão simbólica do encontro entre espiritualidade e cuidado com a Casa Comum, vividos intensamente por São Francisco de Assis em seu tempo.
O dia foi encerrado com o “Banquetaço” na Praça da República. Um banquete popular com alimentos agroecológicos que celebrou o “direito humano à alimentação adequada”. O ato foi uma demonstração prática de soberania alimentar, conceito cunhado pelo movimento Via Campesina para defender
que os povos tenham o direito de definir seus próprios sistemas alimentares, em oposição ao agronegócio dominado pelo capital financeiro.
Ao articular comida, território e cultura, o “Banquetaço” conecta temas da COP30 às urgências da vida real: fome, desigualdade nutricional, envenenamento por agrotóxicos e ameaça constante às agricultoras e agricultores familiares.
Lideranças da Cúpula dos Povos reforçaram que, à luz do Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis, não há fronteira entre crise ambiental e crise social. As mesmas populações que sofrem com a pobreza estrutural enfrentam os maiores impactos climáticos. O apelo final dos organizadores sintetiza a filosofia sociopolítica que guiou o dia:
“O pobre sabe do que precisa. É preciso parar de apenas publicar “Notas de Repúdio” e assumir a postura do samaritano do evangelho.”
Assim, a COP30 em Belém se encerra lembrando que a ecologia integral — conceito central do pensamento de Papa Francisco — se realiza antes no cuidado da mesa dos pobres do que na ornamentação das cerimônias oficiais e quiçá das mesas onde se celebram a eucaristia.
A programação do dia deixou claro o principal recado da Cúpula dos Povos para os negociadores oficiais:
a crise é una e indivisível. A solução, portanto, não virá de ajustes técnicos no mesmo sistema que produz desigualdade e extração, mas de uma transformação radical baseada no cuidado, na partilha e no reconhecimento de que, como citou frei João Paulo, “pertencemos a uma fraternidade cósmica, onde tudo está interligado”.
Encerrando nossa participação aqui de Belém do Pará, a Capital do Mundo, nesta COP30, retorno às terras que “jamais esquecemos”, com duas frases que vi por aí. Uma de autor desconhecido para mim, e a outra do mestre, que neste dia dos pobres nos inspira, São Vicente de Paulo:
“A pior pobreza talvez seja não re-conhecer a Deus”.
“Não sei quem é mais carente,
O pobre que pede pão
Ou o rico que pede amor”.
(São Vicente de Paulo)
Para Aprofundar:
- ACSELRAD, Henri (Org.). A Duração das Cidades: Sustentabilidade e Risco nas Políticas Urbanas. Ed. Lamparina, 2009.
- BOFF, Leonardo. A Terra como Pátria Comum. Ed. Salamandra, 1996.
- BOFF, Leonardo. Ecologia integral: a nova grande narrativa. Vozes, 2022.
- FRANCISCO, Papa. Laudato Si’: Sobre o Cuidado da Casa Comum. Ed. Paulinas, 2015.
- MARICATO, Ermínia. O impasse da política urbana no Brasil. Vozes, 2023.
- SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. Ed. Boitempo, 2020.
- SOUZA, JESSÉ. A Elite do Atraso (edição atualizada). Estação Brasil, 2023.
- SUSIN, Luiz Carlos. Ecologia e Teologia na Casa Comum. Paulinas, 2021.
- Via Campesina. Declaração de Nyéléni sobre Soberania Alimentar (2007).
[1] Frei Laércio Jorge, OFM. Professor – Graduado em Filosofia e Teologia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino. Mestre em Ciências Sociais pela PUC-MG.











![Santa Inês de Assis<a href="#_ftn1" id="_ftnref1">[1]</a>](https://ofm.org.br/wp-content/uploads/2025/11/santa-ines-de-assis-copiar-330x242.jpg)


