Nossa Senhora dos Anjos e o Perdão de Assis

<strong>Nossa Senhora dos Anjos e o Perdão de Assis</strong>

Foi sob a singela claridade que emana dessa capela, guardada por um bosque, que os principais eventos carismáticos da Ordem franciscana tiveram seu início.

“Irmãos, quero levar-vos todos para o paraíso!” 

Frei Jonas Nogueira da Costa, OFM

Este chão é santo!

Um significativo número de pessoas, que fazem turismo religioso, quando entram na Basílica de Santa Maria dos Anjos se deparam com algo que soa como uma curiosidade: uma pequena capela dentro de uma magnífica basílica. Não alcançam a grandeza daquela pequena capela. Até sabem sobre sua história e a pessoa de Francisco como seu restaurador, mas o fato de não poder tirar uma simples selfie ali é motivo para torcer o nariz. Não alcançam a experiência mística da filósofa de origem judia, Simone Weil (†1943), registrada em sua Autobiografia espiritual, ao dizer que, estando sozinha naquele lugar de oração de Francisco, foi tomada de um milagre de incomparável pureza e, pela primeira vez, algo de muito forte nela a fez se ajoelhar[1].

Também por ser um santuário mariano perguntam pela imagem entronizada de Maria com o nome de Santa Maria dos Anjos. Talvez se contentem com o magnífico retábulo do Padre Hilário de Viterbo, mas olham e não veem o mistério. A imagem de Maria é a própria igreja da Porciúncula, pois nela se vê a virgem feita Igreja (SM 1), cujo coração pobre e puro guarda a essência da espiritualidade franciscana.

Um antigo lugar de devoção mariana

O coração mariano da nossa Ordem deita suas raízes numa lenda, em que, segundo conta a tradição, a Porciúncula é o lugar onde quatro peregrinos procedentes de Jerusalém chegaram em meados do século IV trazendo uma relíquia do túmulo do Maria. Ali queriam levar uma vida eremítica, construindo uma capela dedicada a Santa Maria Josafat, por recomendação do Papa Libério (352). Ainda segundo relatos lendários, no século VI, o próprio São Bento teria ali fundado um mosteiro[2].

No ano de 1054 encontramos escritos sobre essa capela, contudo só teremos um documento a seu respeito em meados do século XII, numa bula do Papa Eugênio III (†1153) em que se enumera os bens do Mosteiro de São Bento do Monte Subásio[3].

Sobre sua estrutura arquitetônica e material empregado para sua construção se deduz que ela foi construída antes do século X, tendo anexa uma pequena edificação conventual. Não temos dados sobre a origem e o objetivo dessa construção, a hipótese é que era destinada a moradia de algum monge eremita ou algum custódio da capela[4].

A Porciúncula encontra-se a 2,5 Km de distância do centro de Assis, situada na Planície Espoletana (Úmbria). A palavra Porciúncula deriva do diminutivo de portio = porção, ou seja,refere à “pequena porção de terra”, sendo, inclusive a capela, de proporção também diminuta[5].

Um lugar amado por Francisco de Assis

Foi sob a singela claridade que emana dessa capela, guardada por um bosque, que os principais eventos carismáticos da Ordem franciscana tiveram seu início: foi nessa igrejinha que Francisco, ouvindo o Evangelho compreende sua vocação, principiando uma vida de pobreza e pregação itinerante; aqui recebeu seus primeiros companheiros; acolheu a firme e corajosa decisão de Clara de Assis em sua aventura evangélica; celebrou-se os primeiros capítulos da Ordem dos Menores; foi visitado por Jesus e Maria em visão; e sob a luz dessa capela, morreu em 3 de outubro de 1226. Assim, estamos falando de um lugar que guarda o testemunho de eventos fundantes da vida franciscana. Desse testemunho, elegemos a experiência místico-visionária de Francisco com Jesus e Maria que ilumina todo o mundo, pois estende a claridade desse lugar a todos os que buscam a misericórdia divina, a partir daquilo que ficou conhecido como a “Indulgência de Assis”.

Do céu nos vem uma visita sempre esperada e desejada

De acordo com crônicas da Ordem, em 1216, após uma noite em oração, Francisco teve uma visão de Jesus e Maria, que lhe perguntaram qual favor o pobrezinho gostaria de pedir. Ele pede que: “Que todos quantos, arrependidos e devidamente confessados, vierem visitar esta igrejinha possam receber a completa remissão de seus pecados”. O pedido de Francisco é conforme o querer divino de a todos salvar, sendo-lhe recomendado por Jesus a ir ao Papa, na época Honório III, para conceder a aprovação daquilo que ficou conhecida como “Perdão de Assis”.

E Francisco, repleto de alegria, vai ao Papa pedir essa indulgência e, tendo recebido oralmente a aprovação, não se preocupou com um documento que confirmasse tal privilégio, pois para ele bastava o querer salvífico divino e a palavra do Papa, como o vigário de Cristo. E com a aprovação do Papa chega diante do povo e dos bispos com a seguinte exclamação: “Irmãos, quero levar-vos todos para o paraíso!” 

Sobre o modo de receber essa indulgência, temos em Benedito de Arezzo uma das mais antigas explicações, pois nos fala da humildade com que Francisco fez o pedido a Honório III, para que, quem arrependido de seus pecados e os tendo confessado, indo à Porciúncula, receba o Perdão a partir das primeiras vésperas do primeiro dia de agosto até as vésperas do dia seguinte[6].

Porta do paraíso

Desse modo, é oferecida aos cristãos uma alternativa diante de outras formas de lucrar indulgências que não favoreciam os pobres, pois para receber a indulgência da Porciúncula não havia a obrigação de uma oferta em dinheiro, nem de percorrer uma distante peregrinação, seja a Terra Santa, a Compostela ou a Roma (o que implicava uma ausência prolongada do trabalho, algo impossível para os pobres)[7].

Nesse ponto, precisamos estar muito atentos à prática penitencial da Igreja desse período, que era pensada em relação a penitências tarifadas. Era uma compreensão muito diferente da que vivemos em nossos dias com relação ao Sacramento da Reconciliação. E dentro desse contexto, a peregrinação tinha consigo um valor muito apreciado como movimento exterior/interior de purificação e obtenção de perdão. Vale notar que essa compreensão do povo de Deus não era algo exclusivo daquele tempo, pois ainda é vista nos mais diversos santuários em nossos dias, para onde acorrem os peregrinos, como também pode ser vista em outras religiões.

Outro aspecto que nos chama a atenção é que estamos numa época em que as cruzadas eram uma prioridade para a cristandade. Sua promoção e financiamento eram objeto de constante preocupação do papado. Logo, o fato do Papa ter concedido uma nova indulgência plenária, sem exigir nada de monetário é surpreendente naquele contexto[8].

Isso nos leva a perguntar se Francisco tinha conhecimento da questão referente à indulgência plenária oferecida pelo IV Concílio do Latrão aos cruzados, estendida aos seus patrocinadores e aos peregrinos à Terra Santa. Francisco em tudo foi submisso à Igreja, mas não teria aqui, de modo implícito, todo um questionamento sobre a necessidade de ir a Jerusalém, sendo possível receber tal indulgência muito mais perto, em Assis?[9]

Documentação

A excepcionalidade e os questionamentos provocados pela Indulgência de Assis levantaram questionamentos sobre sua autenticidade. Lembremos que para Francisco bastava a palavra do Papa, contudo isso não resolve a questão da veracidade de todo o contexto que envolve a indulgência. Logo nos perguntamos pelas documentações mais antigas. Segundo Frei Celso Márcio

A primeira fonte a falar com clareza da Indulgência da Porciúncula é a Crônica de Francisco de Fabriano, que entrou na Ordem no ano de 1267. No ano seguinte, 1268, ainda como noviço, ele fora a Assis para lucrar a indulgência. Lá, ele viu um escrito com selo autêntico do bispo de Assis a respeito da Indulgência e ouviu de Frei Leão, companheiro de São Francisco, o relato da concessão da Indulgência. É igualmente a crônica de Fabriano que fornece a data da consagração da igreja da Porciúncula e da promulgação da Indulgência[10]: […][11].

E assim, foi se reunindo uma série de fontes históricas, iconográficas, devocionais que, de fato, ligam o Perdão de Assis a uma experiência carismática vivida por Francisco e em comunhão com a Igreja. Estamos realmente diante de algo excepcional enquanto concessão eclesiástica e que implica um conjunto de questionamentos que nunca foram negligenciados na história da Igreja. Vale lembrar as críticas feitas por Pedro Abelardo (†1142) em relação às indulgências como também toda a defesa brilhantemente elabora por Pedro de João Olivi (†1298) em defesa da Indulgência de Assis[12].

Outro testemunho de incontestável valor é o sensus fidei expresso nas multidões que se colocaram, ininterruptamente, diante dessa pequena igreja. O instinto da fé dessas pessoas mostra que o querer salvífico de Deus ao conceder o seu perdão é o incontestável ponto de partida dessa experiência religiosa. E que, se nos dias de hoje, com razão nos perguntamos pelas formas minimalistas ou mágicas em que a questão da indulgência é tratada, não se pode negar o valor dessa busca de reconciliação. O ser humano não reconciliado consigo mesmo, com o outro e com Deus perde-se de si mesmo, se bestializando e transformando sua vida e tudo ao seu redor num “inferno”.

“Irmãos, quero levar-vos todos para o paraíso!” 

Logo, ouvir de Francisco a alegre expressão: “Irmãos, quero levar-vos todos para o paraíso!” é contagiante. Todos ansiamos pelo paraíso, que pode ser entendido em sua realização escatológica de modo definitivo, como o nosso empenho na construção de um mundo melhor, mais justo e ecologicamente viável para toda a criatura.

E é justamente nesse ponto em que o dom de Assis, dado como indulgência, sem perder seu “lugar original”, ou seja, a própria Porciúncula, se estende para todas as igrejas ligadas à Ordem dos Menores e também assume a compreensão que, o Perdão de Assis, não é uma busca pela salvação individual da própria “alma” ou a de seus falecidos pelos quais se busca lucrar a indulgência, mas um ato de reconciliação verdadeira de cada pessoa na comunhão das criaturas de Deus.

Assim, o Perdão de Assis, também é celebrado e recebido, enquanto autêntica experiência religiosa, ligado a questões sociais e ecológicas tão urgentes em nosso tempo. No século XIII, a igreja da Porciúncula era circundada por um bosque; hoje, ao nosso redor, somos circundados de todo o descaso ao meio ambiente, de uma criminosa aporofobia e muitas formas que diminuem o ser humano na sua inalienável dignidade. O Perdão de Assis não é para levar “alguns eleitos” para o paraíso, mas para todas as criaturas de Deus não perderem a esperança de vida que brota desse paraíso.  

Todas as criaturas são vinculadas ao santuário da Porciúncula em sua celebração de 2 de agosto. Nesse vínculo que é o próprio Espírito Santo, manifesto como o poder de perdão dos pecados, todos somos transformados em novas criaturas. Todos nós retornamos ao seio virginal da Igreja do qual fomos dados à luz em nosso batismo. Todos contemplamos Maria como “virgem feita Igreja”, que permite que seu coração seja o receptáculo que guarda a espiritualidade franciscana, para que nunca se desvie do Evangelho.

Sejamos peregrinos

Concluímos pedindo desculpas pelo nosso tom ranzinza para com as pessoas que fazem turismo religioso. Ninguém é culpado pelo que não consegue ver.  A complicação reside quando o cristão pensa a fé como turismo. Todo cristão é um peregrino e um penitente como foi Francisco de Assis. É por isso que precisamos do Perdão de Assis para que, reconciliados, possamos caminhar para o paraíso, que está na origem de todo anseio humano, no desejo salvífico de Jesus, no coração imaculado de Maria, na alegria franciscana e que é a finalidade/concretização escatológica de todo o universo.


[1] ROSATI, Giancarlo. La Porziuncola, Porta santa, sempre aperta. In: RATZINGER, Joseph. Il perdono di Assisi. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2005, p. 8.

[2] URIBE, Fernando. Pelos caminhos de Francisco de Assis. Petrópolis: FFB, 1997, p. 107.

[3] URIBE, Pelos caminhos de Francisco de Assis, p. 107.

[4] URIBE, Pelos caminhos de Francisco de Assis, p. 109.

[5]TEIXEIRA, Celso Márcio. Franciscanismo. Estudos e reflexões. Belo Horizonte: Gráfica do Colégio Santo Antônio, 2019, p. 270.  

[6] IOZZELLI, Fortunato. Pietro di Giovanni Olivi e l’indulgenza della Porciuncola. In: SOCIETÀ INTERNAZIONALE DI STUDI FRANCESCANI. Il Perdono di Assisi e le indulgenze plenarie. […]. Spoleto: Fondazione Centro Italiano di Studi Sull’Alto Medievo, 2017, p. 130.

[7] TEIXEIRA, Franciscanismo, p. 278. 

[8]NÚÑEZ, Martín Carbajo. A guerra dos drones autômatos. In: REVISTA ECLESIÁSTICA BRASILEIRA. Teologia e organização social. Petrópolis: Vozes, vol. 82, n. 322, maio/ago. 2022, p. 437.  

[9] GOMES, Fábio Cesar. Introdução à espiritualidade franciscana. Textos, contextos, atualidade, testemunhos. Petrópolis: Vozes, 2022, p. 144.

[10] 02 de agosto de 1216.

[11]TEIXEIRA, Franciscanismo, p. 274-275.  

[12] Chamamos a atenção para o estudo: IOZELLI, Fortunato. Pietro de Giovanni Olivi e l’indugenza della Porciuncula. In: SOCIETÀ INTERNAZIONALE DI STUDI FRANCESCANI. Il Perdono di Assisi e le indulgenze plenarie. […]. Spoleto: Fondazione Centro Italiano di Studi Sull’Alto Medievo, 2017, p. 117-144.

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