O filho esbanjador e o porco, a misericórdia e a justiça, nas histórias lucanas de perdidos e achados (Lc 15,11-32)

A parábola do filho esbanjador faz parte do capítulo quinze de Lucas, e é precedida pelas parábolas da ovelha e da moeda perdidas (Lc 15, 1-10).

Frei Jacir de Freitas Faria [1]

Misericórdia! Misericórdia! Justiça! Um pai e dois filhos! Dois filhos e um pai! São três personagens utilizados para falar da misericórdia. Qual o significado da misericórdia na parábola do Filho Pródigo, de Lc 15,11-32?Pródigo significa esbanjador.

No imaginário da narrativa aparecem um anel, uma sandália, uma roupa e um novilho, os quais contrastam com um porco e um filho raivoso. Qual o sentido de tudo isso para Lucas, o evangelizador da misericórdia divina? Qual é a relação entre justiça e misericórdia?

A parábola do filho esbanjador faz parte do capítulo quinze de Lucas, e é precedida pelas parábolas da ovelha e da moeda perdidas (Lc 15, 1-10). A mulher que perdeu a dracma e a recuperou. A ovelha que estava perdida e foi encontrada. A ovelha sabe que está perdida, a moeda, não. Os dois filhos da parábola também estão perdidos.

Lucas reuniu, de modo unitário essas narrativas, chamadas “parábolas da misericórdia”. Elas podem ser consideradas uma só parábola (Lc 15,3) em três atos. Cada uma possui a mesma introdução: escribas e fariseus murmuram contra Jesus, porque ele acolhe os pecadores; o mesmo esquema: perdido/encontrado; a mesma mensagem: alegria por um só pecador que se converte; o mesmo protagonista: Deus na figura do pastor, da mulher, do pai. As primeiras semelhanças correspondem aos dois quadros da terceira narração: a ovelha perdida no deserto corresponde ao filho caçula perdido, porque saíra de casa; a dracma perdida dentro de casa corresponde ao filho mais velho, o qual, embora tenha permanecido na casa paterna, recusa-se a entrar[2].

Ainda que sejam filhos de um mesmo pai, eles são diferentes. Sabedor dos seus direitos de herdeiro, o mais novo pede a sua herança, pois o pai é rico. Na verdade, ele não queria bens, mas se libertar do pai. Ele queria conhecer novos valores, em terras distantes. O mais velho segue o curso da vida sob a proteção paterna, isto é, da instituição familiar e da religião judaica. O fim da história revela um misto de misericórdia e raiva do filho mais velho.

O que é a misericórdia? Na Bíblia encontramos três substantivos para falar de misericórdia. Dois no Primeiro Testamento e um, no Segundo. O primeiro deles é hesed, que significa favor imerecido, benevolência, graça que age no tempo. O segundo termo hebraico é rahamim, que significa misericórdia e compaixão. Rahamim provém de rehem, isto é, o seio materno da mulher-mãe com a sua disposição de amar sem exigência, sem favores e trocas. A mãe ama porque ama, com bondade, ternura e compreensão. Desse modo, hesed é o lado masculino da misericórdia (fidelidade para consigo mesmo) e rahamim, o lado feminino (amor doação).  

No Segundo Testamento, o substantivo grego éleos, tradução do hebraico hesed, expressa a emoção que temos diante do sofrimento do outro, isto é, a compaixão e a misericórdia. Daí que esmola, em grego eleemosúne, é o ato de sentir, de ter compaixão em relação ao outro, de fazer justiça.

Ainda que esses termos se refiram ao ser humano, a misericórdia tem relação direta com Deus. Dentre as 296 citações de misericórdia, na Bíblia, 236 referem-se à misericórdia de Deus e somente 60, ao ser humano. Disso resulta que o agir misericordioso é característica de Deus. Para o ser humano, fica sempre o desafio de ser misericordioso como Deus.

Quando a Bíblia foi traduzida, do hebraico para o latim, hesed virou misericórdia, o qual é composto de miser e cor. Miser é a condição extremada de sofrimento e angústia de alguém, de miséria que suplica ao cor, isto é, ao coração, por misericórdia. Diante de uma tragédia, não há como não sentir compaixão, misericórdia por quem sofre a dor. Nessa hora, não há quem não grite a Deus por misericórdia. No findar de nossas vidas, só Deus pode ter misericórdia. Quando alguém perde a capacidade de sentir misericórdia, a sua humanidade não existe mais, pois a essência de Deus, que é misericórdia, morreu dentre dele.

Interessante notar que no texto de Lc 15,11-31 não aparece a palavra “misericórdia”, mas todo o conteúdo da comparação a evidencia claramente. No centro da parábola está, indiscutivelmente, a figura do pai. Ele é que dá unidade a toda a narração. Sobressai seu coração paterno, suas entranhas comovidas, que expressam uma incontida ternura humana. É verdade: o pai se mostra mais pródigo no amor do que o filho no esbanjamento! Vendo, de longe, o filho que retorna à casa paterna, o pai corre ao seu encontro, lançando-se ao seu pescoço e cobrindo-o de beijos: o amor ultrapassa toda lógica! O verbo usado neste ponto da parábola traduz a palavra hebraica rahamim e sublinha a compaixão visceral: o pai não pode ficar à espera de o filho chegar à casa, mas precipita-se ao encontro dele, levado por uma força interior incomparável[3]. O pai da parábola não só acolhe misericordiosamente seu filho perdido, num gesto de perdão e reconciliação, mas devolve-lhe toda a sua dignidade humana, reerguendo-o como filho com pleno direito. Essa atitude paterna contrasta com a imagem do porco que aparece na parábola. Judeu não come carne de porco, pois esta é considerada imunda. O que chama a atenção é que o porco tem comida, o filho esbanjador, não. Falar de porco para judeus que ouviam Jesus era uma ofensa muito grande.

O que mais impressiona, contudo, é a paternidade excepcional do pai: ‘Filho, você está sempre comigo, e tudo o que é meu é seu também’ (v. 31). O pai, Deus, corrige com a misericórdia e na ternura sem medida. Os filhos são iguais para ele. O filho mais novo é igual a todos os adolescentes e jovens que querem se libertar da figura paterna e de todos aqueles que exercem autoridade sobre eles. Faz parte da vida! Na juventude, nós somos assim, queremos tirar o poder de quem o tem. O tempo nos amadurece para a vida. Outra constatação na vida é a de que maioria das pessoas que passam pelas nossas vidas não gostam de nós, mas do que temos para oferecer. Quando você não tem mais nada para oferecer, as pessoas fogem de você. Isso aconteceu com o jovem, depois que ele perdeu tudo.

A segurança do filho mais velho estava no conforto da casa e na certeza da salvação prometida pela religião judaica. Jesus ensina que sem misericórdia religião nenhuma salva. Sem misericórdia a vida não acontece. Tenhamos misericórdia de você mesmo, do outro, de modo que Deus possa agir com misericórdia em sua vida. O amor de Deus só permanece naqueles que exercem a misericórdia (1Jo 3,17) e a justiça, dois elementos essenciais do cristianismo. No exercício da misericórdia na vida, festa, anéis e novilho gordo se encontram. Caso contrário, tudo não passa de uma vida porca, arraigada em costumes que nos atrelam ao poder do ter. Misericórdia, misericórdia, justiça sempre! Paz e bem!

Referências

CPPNE. A confissão: sacramento da misericórdia. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2015.

LIBÂNIO, João Batista. In.: DE AGUIAR, M.M. (Org.), Um outro olhar – Coletâneas de homilias de J.B. Libânio, vol. 2. Belo Horizonte: Big Editora Gráfica.


[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. Presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de treze livros e coautor de quinze. Publicou recentemente Bíblia Apócrifa: Segundo Testamento (Vozes, 2025). São 784 páginas com a tradução de 67 apócrifos do Novo Testamento sobre a infância de Jesus, Maria, José, Pilatos, apocalipses, cartas, atos etc. Canal no Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ 

[2] LIBÂNIO, João Batista. In.: DE AGUIAR, M.M. (Org.), Um outro olhar – Coletâneas de homilias de J.B. Libânio, vol. 2. Belo Horizonte: Big Editora Gráfica, p. 71.

[3] CPPNE. A confissão: sacramento da misericórdia. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2015, p. 51.

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