Os estigmas de São Francisco

No 17 de setembro, celebramos um fato muito importante na vida de Francisco de Assis: o recebimento dos estigmas de Cristo

Frei Celso Márcio Teixeira, ofm

No dia 17 de setembro, a Ordem franciscana celebra a festa da estigmatização de São Francisco de Assis. Segundo a descrição de seus hagiógrafos, Francisco, ao retornar a si de um arrebatamento místico, em que contemplava os mistérios dolorosos de Cristo, sentiu-se assinalado pelas chagas da crucifixão do Senhor, a saber, nas mãos, nos pés e no lado direito.

No contexto da Idade Média, por ser algo absolutamente inaudito, interpretou-se como um fato miraculoso. Hoje, em época de demitizações e de investigações científicas, surgem interpretações a partir de diferentes óticas: psicológica, biológica, psicanalítica, parapsicológica, patológica, etc[i]. Evitamos aqui a discussão se os estigmas constituem milagre ou não, até porque não é tão simples conceituar o milagre. Limitamo-nos à análise de relatos do ponto de vista da redação e da história, isto é, tentamos contextualizar os relatos.

Evidentemente, não se pode pretender ser exaustivo em um tema tão complexo, quando se dispõe de espaço pequeno, mas tentaremos resumir algumas destas argumentações, se não para aprofundarmos o tema, pelo menos, para percebermos a sua complexidade.

Contextualização na história – Os hagiógrafos são bastante precisos na datação do episódio. O primeiro deles, Tomás de Celano, em 1228, afirma que o fato se deu dois anos antes da morte de São Francisco[ii], portanto, em 1224. São Boaventura busca mais precisão, situando-o na quaresma de São Miguel, isto é, num período dedicado ao jejum e à contemplação, o qual se estendia da festa da Assunção de Nossa Senhora (15 de agosto) até a festa de São Miguel (dia 29 de setembro)[iii]. E, juntamente com o autor da Legenda dos Três Companheiros, chega a precisar ainda mais a data da estigmatização: numa manhã na proximidade da festa da Santa Cruz (14 de setembro)[iv]. A terceira consideração dos Estigmas, texto ligado aos Fioretti, afirma categoricamente que a estigmatização se deu exatamente na manhã do dia da Exaltação de Santa Cruz, que, desde épocas antigas, era celebrada aos 14 de setembro. A tradição, a partir daí, sempre manteve esta data, registrada, aliás, na Crônica dos XXIV Gerais: “in die exaltationis Sanctae Crucis valde mane, cum magno doloris sensu et magno Santi clamore”[v]. A festa dos Estigmas de São Francisco era celebrada pelos franciscanos desde 1304 no dia 20 de setembro, visto que não podia prevalecer sobre a festa da Exaltação da Santa Cruz (festa do Senhor). O capítulo geral celebrado em Cahors, França, em 1337, porém, mudou a data para 17 de setembro, que prevalece até os dias de hoje.

Forma literária – Segundo a maneira medieval de escrever hagiografias, o fato teria acontecido após uma visão que Francisco tivera de um serafim dotado de seis asas. A nosso ver, trata-se indubitavelmente de uma forma literária (ou gênero literário), tirada indiscutivelmente da Bíblia (cf. Is 6, 2), embora a descrição do serafim de Isaías difira nos detalhes da descrição feita por Tomás de Celano. Por isso, uma leitura crítica que dispa o fato de elementos míticos (demitização) é necessária, de modo a relativizar a forma que envolve a mensagem ou o fato que se quer transmitir. Hoje, cresce cada vez mais a tendência ou esforço para superar uma leitura fundamentalista, mesmo dos textos franciscanos.

Demitização – Se tomarmos, por exemplo, o relato do primeiro hagiógrafo, Tomás de Celano, em sua Vita Prima, verificaremos que ele passa quase que imperceptivelmente do gênero literário dos grandes visionários da Bíblia (entre outros, Isaias e Ezequiel) a uma descrição que é tão próxima da anatomia moderna: “Suas mãos e os pés pareciam traspassados no meio por cravos, aparecendo as cabeças dos cravos na parte interior das mãos e na superior dos pés, e saindo as pontas deles do lado oposto. E aqueles sinais eram redondos na parte interna das mãos e longos na parte externa, e aparecia um pedaço de carne como se fosse ponta dos cravos, retorcida e rebatida, que surgia da carne restante. Assim também nos pés os sinais dos cravos foram impressos e sobressaíam da carne restante. Igualmente, o lado direito fora como que traspassado por uma lança, ficando fechada uma cicatriz, o qual muitas vezes deixava jorrar sangue, de modo que sua túnica e os calções, muitas vezes, ficavam molhados com o sangue sagrado”[vi].

A descrição do Serafim com seis asas é diferente desta descrição que caracterizamos como anatômica. O hagiógrafo não estava presente e não viu o Serafim, mas as chagas ele viu. Ele constatou um fato e o descreveu de maneira muito pormenorizada. Em outro lugar, o mesmo hagiógrafo, após a descrição, afirma sua condição de testemunha ocular: “O que acabamos de afirmar, nós o vimos. E tocamos com nossas mãos aquilo que com nossas mãos aqui descrevemos; com os olhos marejados de lágrimas registramos aquilo que pelos lábios confessamos; e sustentamos sempre a verdade daquilo que outrora juramos com a mão sobre os objetos sagrados”[vii].

Também aqui, ele usa a terminologia da Bíblia. Mas a mensagem é inequívoca: ele era testemunha ocular de um fato.

Estigmas, uma invenção – No caso dos estigmas de São Francisco, tem surgido ultimamente uma demitização exacerbada, uma espécie de leitura que não apenas coloca em dúvida a forma literária, mas também a veracidade do próprio conteúdo. Em síntese, esta leitura afirma que tudo é apenas gênero literário e que o fato da estigmatização não existiu. O que se relata seria apenas invenção dos hagiógrafos para afirmar Francisco com alter Christus.

Acontece, porém, que a formulação de Francisco como alter Christus teve longo processo histórico. E não aconteceu imediatamente após a morte de Francisco, mas pelo menos cem anos após a morte[viii]. A partir da semelhança dos estigmas de Francisco com as chagas de Cristo é que se começou a pensar em Francisco como alter Christus e a estabelecer o maior número possível de semelhanças (conformitates). Mas este período – deve-se ressaltar para evitar uma descontextualização – não se iniciou logo após a morte dele, porém, depois de decorridos mais de 100 anos. Em outras palavras, os estigmas não constituem o fim deste processo de considerar Francisco como alter Christus, mas o início (depois de mais de um século), a partir do qual se iniciou a busca de outras conformitates.

Busca de uma explicação natural – Há estudos que negam a estigmatização e interpretam as chagas como lepra que Francisco teria contraído em seus múltiplos contatos com os portadores da doença[ix]. Esta é uma leitura feita, por exemplo, pela historiadora Chiara Frugoni[x]. Donald Spoto, em seu livro Francisco, o santo relutante (Rio de Janeiro, Objetiva, 2002), endossa esta leitura, negando não apenas a forma literária do relato, mas também o próprio fato relatado, isto é, que se tratava de estigmatização. Este autor afirma, por exemplo, que os companheiros de Francisco interpretaram a lepra como estigmatização: “Não seria, portanto, surpreendente que os companheiros de Francisco, após a sua morte, logicamente interpretassem a sua lepra como uma participação nos sofrimentos de Cristo. Os leprosos eram os párias da Idade Média, obrigados à segregação e considerados apenas como pecadores repreensíveis que deveriam ser evitados a todo custo”[xi]. Mais adiante, o autor continua: “Não é difícil, portanto, compreender o motivo pelo qual pessoas devotas, assombradas pela dimensão do sofrimento de Francisco, se inclinassem a transformar suas dores em um lembrete das dores de Cristo. Assim, os estigmas, em breve, foram tomados como sinais impostos externamente e não como o que realmente eram: sinais de enfermidade e doença… Como Francisco vivera a imitação de Cristo com intensidade revolucionária e incomum…, era natural que os frades menores estivessem ansiosos por apresentá-lo como homem originalmente semelhante a Cristo”[xii].

Como se percebe, neste tipo de estudos, os estigmas são considerados simples manifestação da lepra, e o relato da estigmatização uma sublimação, uma forma de fugir da horripilante realidade da lepra, uma invenção nobre para camuflar um fato considerado vergonhoso no século XIII.

Uma consideração sobre a hipótese da lepra – A grande dificuldade de se afirmar ou de se negar peremptoriamente que se tratava de lepra ou de estigmas é que não temos o paciente diante de nós para fazermos os exames mais sofisticados propiciados pela medicina moderna. Qualquer afirmação ou negação, portanto, só pode ser feita a partir dos relatos.

É possível que tenha havido certa semelhança entre os estigmas e algum tipo de manifestação da lepra. Na época mesma em que Francisco vivia, devido ao inaudito do fato, sem saber ainda do que se tratava, um cronista já estabelecia uma comparação: “pelo que parece, as suas mãos estão feridas, como se ele tivesse lepra”[xiii]. Mas H. Nolthenius, relativizando os resultados do estudo de Schatzlein e de Sulmasy, diz: “Schatzlein e Sulmasy chegaram à diagnose que Francisco possa ter sido afetado pela então desconhecida lepra tuberculóide (borderline), diagnose que, obviamente, teria consequências muito graves, sobretudo para a avaliação dos estigmas. No entanto, este tipo de doença mostra tantos pontos de contato com a forma conhecida desta doença que os assistentes de Francisco, experientes como eram no cuidado dos leprosos, certamente os teriam reconhecido”[xiv]. Em outras palavras, os frades, acostumados a lidar com leprosos, saberiam distinguir a lepra dos estigmas.

Embora sem ter conhecimentos profundos de biologia, vemos entre a lepra e os estigmas (como são descritos) algumas diferenças: a lepra é indolor, ao passo que os estigmas, segundo a descrição dos hagiógrafos, causavam fortíssimas dores a Francisco; a lepra é degeneração ou decomposição de tecidos, a qual começa nas extremidades dos nervos, e os estigmas são uma formação de nervuras nas mãos e nos pés e uma cicatriz no lado direito; a decomposição da lepra começa pelas pontas, os estigmas são centralizados; mesmo admitindo-se uma forma de lepra localizada não nas extremidades, a coincidência de cinco chagas tão simetricamente dispostas seria um caso raríssimo da lei da probabilidade.

Conclusão – O fato de os mais de trezentos estigmatizados depois de Francisco não apresentarem os estigmas após a morte faz pensar que, no caso de Francisco, pode ter havido algo especial. A ciência ainda não sabe explicar esse fenômeno. Talvez, um dia, terá condições de dar uma explicação cabal.

Quanto ao relato, reconhecemos que há uma roupagem literária, que descreve o momento místico. Mas, depois da descrição da experiência mística, o hagiógrafo descreve um fato que ele pôde comprovar. E ele o fez com muita consciência do que estava fazendo.

Consideramos de pouca sustentação a afirmação de que os frades tivessem inventado os estigmas, pois a população de Assis, à morte de São Francisco, pôde verificá-los. O já citado cronista da época escreve: “No crepúsculo do dia 4 de outubro, Francisco de Pedro Bernardone morreu na Porciúncula… Mas inaudito é o prodígio acontecido ao seu corpo, prodígio que ele manteve escondido por dois anos, mas que se tornou visível depois de sua morte, nas mãos, nos pés e no lado, ele portava as feridas do Senhor sobre a cruz; delas saía sangue, quando ele era vivo, e nas mãos e nos pés se podiam ver os cravos. Que Deus ajude a todos nós”[xv].

Sintetizando, o povo de Assis viu os estigmas, constatou os “cravos nas mãos e nos pés” de Francisco. Os hagiógrafos tinham, assim, um controle público que os impedia de inventar coisas mirabolantes.


[i] Uma crítica que se pode fazer a cientistas de diversos ramos é a de que, por faltar-lhes visão teológica, eles tendem a negar fatos ou fenômenos místicos e, por isso, tentam convertê-los em (ou substituí-los por) “fatos” de suas respectivas áreas.

[ii] Cf. 1Cel 94.

[iii] C. LM 13,1.

[iv] Cf. LM 13,3; LTC 69.

[v] Analecta Franciscana III, p. 374.

[vi] 1Cel 95.

[vii] 3Cel 5.

[viii] Cf. AtF 6; 18, quando se usa a expressão alter Christus; esta fonte foi escrita mais de 100 anos depois da morte de São Francisco.

[ix] Por exemplo, o estudo de Schatzlein J. e Sulmasy D., The diagnosis of St Francis: evidence for leprosy, em Franciscan Studies., 25 (1987), p. 181-217.

[x] FRUGONI CH., Francesco e l’invenzione delle stimmate, Torino, Einaudi, 2010, 3ª Ed.

[xi] SPOTO D., Francisco, o santo relutante (Rio de Janeiro, Objetiva, 2002), p. 282.

[xii] SPOTO D., Francisco, o santo relutante, p. 287-288.

[xiii] NOLTHENIUS H., Um uomo dalla valle di Spoleto – Francesco tra i suoi contemporanei, Messaggero Padova, 1991, p. 137.

[xiv] NOLTHENIUS H., Un uomo…, p. 317, nota 110.

[xv] NOLTHENIUS H., Un uomo…, p. 139.

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