Pacifismo Underhill

Pacifismo Underhill

A Paz e a Alegria são traços permanentes de um cristianismo realista, sinais inseparáveis da presença do Espírito na alma.

Nesta época em que se ampliam e se intensificam os conflitos mundiais, cabe refletir qual seria ou deveria ser a posição cristã frente ao problema da guerra. A questão não é simples, pois a realidade se afasta especialmente do ideal cristão quando nós, humanos, a contaminamos com um mal radical que precisa ser, o quanto antes, interrompido e extirpado. Como cristã anglicana, Evelyn Underhill (1875-1941), primeira conferencista mulher em Religião da Universidade de Oxford, sente-se convocada a dar uma resposta engajada ao problema. Embora preferisse enfatizar, em sintonia com a espiritualidade franciscana que tanto admirava, os vestígios encantadores do Criador no mundo e o itinerário de ascensão espiritual ao qual somos todos convocados, Underhill não poderia permanecer silenciosa diante da ameaça e do avento da II Guerra Mundial. Assim, ainda que com a saúde abalada (em provável resposta ao adoecimento do mundo), a autora e pregadora de retiros dedica-se, nos últimos anos de sua vida, ao tema do pacifismo. Esta é a posição que adota a partir de 1936, após a leitura de What Are You Going to Do About It? de Aldous Huxley, panfleto que sublinha a total incompatibilidade entre o cristianismo e retaliações violentas. A adesão ao pacifismo foi minoritária no período – tendo sido refutada por outros escritores cristãos ingleses, como C. S. Lewis – e contrasta com a própria posição da autora à altura da I Guerra.

O texto aqui apresentado é uma das primeiras defesas do pacifismo escritas por Underhill. Publicado em novembro de 1939, ou seja, dois meses após a eclosão da II Guerra Mundial, na revista inglesa The Christian Pacifist, editado pela organização pacifista Fellowship of Reconciliation, Uma meditação sobre a paz (A Meditation on Peace) expressa não só a perspectiva de uma estudiosa da mística, mas de uma mística sobre o tema. O pacifismo por ela pregado é fruto de uma vivência profunda do Amor divino, que, como já dizia Santo Inácio de Loyola e tantos outros místicos, transfigura nossa apreensão do mundo e de suas ostensivas imperfeições. É bem verdade que o texto não pretende tratar diretamente sobre a condução política ou jurídica em relação às guerras e às suas consequências. O foco da autora sempre foi o processo individual de desenvolvimento da consciência. Embora de difícil aplicação frente à ameaça nazista (como ela mesma reconhece) ou a outros atos irracionais de violência, o pacifismo poderia ser abraçado, em nível individual, nos grandes e pequenos conflitos. Tal posição repercutirá criativamente no âmbito social, constituindo formas de convivência que não se deixam contaminar pelo medo e pelo ódio: sentimentos inexistentes no pomar do Espírito.

Uma meditação sobre a paz

Evelyn Underhill

É claro que, ao elaborar sua notável lista dos frutos do Espírito, São Paulo não os agrupou numa ordem fortuita. Tais frutos representam uma série progressiva de estados ou graças, que se desenvolvem na alma a partir do único botão do Amor: esse amor puro e sem exigências a Deus e às Suas criaturas, boas e más, agradáveis e desagradáveis, em função do próprio Deus, é a matéria-prima da nossa bem-aventurança. Tal amor implica certa participação na generosidade, tolerância e paciência Divina em relação a toda manifestação da vida: “aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele” (1Jo 4,16). Portanto, todo aquele capaz de alcançar esse estado de caridade e espalhá-lo, mesmo que do modo mais singelo, já terá dado uma contribuição verdadeira para a paz no mundo. (Não temos dificuldade de compreender esse ponto, embora a maioria de nós leve toda a vida aprendendo a praticá-lo.) Em seguida, São Paulo ascende ao cume da vida espiritual e, em lugar de dizer que esse Espírito de Amor produzirá certos frutos apropriados, como solicitude, abnegação, bons hábitos sociais e religiosos, identifica, como sinais gêmeos de sua presença viva, a Alegria e a Paz. A Alegria, o espírito de um deleite desinteressado, e a Paz, o espírito de uma aceitação tranquila, são os primeiros frutos da Caridade Eterna recebidos no interior da alma humana.

É oportuno pensar sobre isso, pois, durante os últimos meses, a alegria e a paz parecem ter se afastado cada vez mais de nós e, em especial, daqueles que zelam intensamente e trabalham ardentemente pela paz. O mundo tem se tornado mais louco, mais assustado, mais cheio de ódio e inquietação. Tudo o que lemos ou ouvimos está carregado de sugestões perversas, desconfianças mesquinhas, medo, pessimismo, preconceito, empurrando para o inferno, de modo constante e secreto, nossa civilização. Enquanto isso, aqueles mais conscientes dessa tempestade de insanidade e desamor na qual vivemos estão cada vez mais tentados ao desespero e ao rancor. Os pecados mais comuns daqueles que trabalham pela paz são a tendência a adotar uma visão deprimida e amarga e a defender, assim, seus princípios de modo contraditório. Ao ceder a esses pecados, os pacifistas são derrotados por si mesmos, pois a paz não pode crescer separada da alegria e do amor. Um pacifista amargurado é como um cálice envenenado: fere o humano e difama o divino. A “paz que vem do alto” significa um deleite sereno e desinteressado no esplendor de Deus, uma participação na Sua atitude amplamente tolerante e a confiança no Seu triunfo final, pela qual se superam a depressão e a ansiedade. Toda alma na qual tais disposições estão vivas, toda alma que, haja o que houver, não abdica da caridade, da alegria e da gentileza é um obstáculo para a derrocada do mundo rumo à destruição e, portanto, revela-se como um agente do poder salvífico Divino.

Uma criativa propaganda de paz

É próprio ao cristão crer que toda a Criação é cara ao Criador e, além disso, cara de um carinho especial. Tanto o violento quanto o pacífico, tanto os ditadores quanto suas vítimas, tanto os militares reacionários quanto os pacifistas, tanto o governo quanto a oposição, tanto os pecadores quanto os santos. Todos são filhos da Perfeição Eterna. Alguns habitantes desse lotado berçário são travessos, outros tolos, outros ingovernáveis, outros estão começando ainda a se aperfeiçoar. Todos estão imersos numa mesma corrente de amor criativo que se derrama do coração do universo e atravessa as almas dos homens de valores deturpados. Deus ama – e não só tolera – esses espíritos ingovernáveis, violentos, crescidos pela metade e, sem cessar, busca atraí-los ao Seu amor. Somos, então, chamados a renunciar a atitudes e pensamentos hostis, até mesmo aqueles dirigidos aos nossos companheiros pecadores mais desconcertantes; a sentir uma piedade tão grande por aqueles que perpetram o mal quanto por suas vítimas, a mostrar uma generosidade equivalente tanto pelo justo quanto pelo injusto. Esta é a única propaganda de paz dotada de qualidade criativa e, portanto, alcançará certamente sucesso definitivo. Todo o resto é uma espécie de arranhão sobre a superfície, com maior probabilidade de irritar que de curar.

A Paz e a Alegria são traços permanentes de um cristianismo realista, sinais inseparáveis da presença do Espírito na alma. Elas não são atingidas ao término do nosso crescimento, mas estão presentes desde o início, escondidas nas profundezas, muito antes que a inquieta superfície da mente seja capaz de recebê-las. Um dos pastores de confissão alemã presos por sua fé enviou uma carta à sua casa, dizendo: “embora, na superfície, o tempo possa estar agitado, o mar, vinte braças abaixo, está bem tranquilo”. É exatamente assim. Lá, para além da sucessão, onde o fundo da alma toca o Ser essencial, encontra-se a fonte inesgotável de paz. Lá ela deve ser nutrida, por contemplação e não por negociação, e, de lá, deve irradiar-se em vagarosos círculos em expansão, para, finalmente, alcançar o mundo revolto.

Tal paz criativa, se realmente for gerada pelo Espírito, significará uma aquiescência total e tranquila à ação e à não ação de Deus, não só no tocante às nossas vidas, mas, o que é bem mais difícil, no tocante aos sofrimentos, necessidades e males do mundo. Uma paz e uma alegria que persistem em situações e através de situações de compaixão, de indignação, de impotência, de desorientação mental com as quais vemos a crueldade e a injustiça da vida, a violência do forte, os sofrimentos do fraco e do oprimido. Devemos chegar ao ponto de compreender essa dor e esse mal – assim como o futuro sombrio do planeta – envolvidos numa vida mais profunda, imperecível: e é quando vemos o mundo, portanto, sob a perspectiva divina, que lidamos melhor com seus problemas.

O peso terrível da confusão do mundo

Paz é uma palavra que ecoa ao longo do Novo Testamento. Era um dos principais presentes oferecidos por Cristo àqueles que O seguiam; uma paz que vinha do Transcendente, que era baseada numa profunda confiança em Deus e numa aceitação total da ação e da não ação de Deus. “‘Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo dá. Não se perturbe nem se intimide vosso coração.’” (Jo 14,27) “Ele próprio se apresentou no meio deles e disse: ‘A paz esteja convosco!’” (Lc 24,36). Se reinserimos estas passagens no contexto em que aparecem no Novo Testamento, constatamos que, exatamente ao se aproximar da crise e da agonia da Paixão e, assim, da tensão máxima da sua vida, Cristo passou a enfatizar com mais veemência a Paz. A Paz, não como o mundo a dá: a tranquilidade interior de uma mente que avista para além da ansiedade, para além de uma atitude sempre posta para o conflito e, até mesmo, para além da própria destruição: acreditando em tudo, esperando por tudo, confiando em tudo. Uma paz que nunca perde completamente a alegria objetiva e sobrenatural na ação de Deus e o privilégio de ser capturado no seio dessa ação, custe o que custar. Isso soa plausível, e há momentos em que parecemos nos aproximar dessa paz. No entanto, o desafio ocorre quando ela deve ser alcançada em oposição às contradições e crueldades, às inquietações, aos males e às agressões: quando devemos ser pacíficos não em contraste com os belicosos, mas com os belicosos, mostrando às suas vítimas uma compaixão destituída de ódio e amargor, e suportando com tranquilidade o terrível peso da confusão, do sofrimento e do pecado do mundo. Então haveremos de descobrir se nossa paz é um sentimento natural ou um fato sobrenatural. Isso porque a paz de Deus não significa indiferença a esses pecados e sofrimentos. Ela pode coexistir com a dor mais lancinante, com a suprema agonia da compaixão. Assim o constatamos nos santos, que suportaram o fardo do sofrimento que redime com serena alegria. “Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, dai-nos a Vossa Paz.” Esta é uma formidável oração a ser pronunciada por nossos lábios: a oração do amor heroico. Ela significa a Paz adquirida por um grande preço; o preço da Cruz, da aceitação absoluta, do completo abandono a Deus, uma paz inseparável do sacrifício. O verdadeiro pacifista é um redentor e deve aceitar com alegria o quinhão do redentor. Também ele se auto-oferece, sem nada exigir, pela paz do mundo.

Tradução e introdução: Clovis Salgado Gontijo (Doutor em Estética, Professor do Seminário Provincial Sagrado Coração de Jesus)

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