Para além do interesse próprio: uma atitude possível em relação aos animais?

Para além do interesse próprio: uma atitude possível em relação aos animais?

14 de março – Dia Nacional dos Animais

Clovis Salgado Gontijo – Professor e Pesquisador Visitante na Universidade de Salerno

De acordo com Immanuel Kant, a contemplação do belo deve ser vivida a partir de uma atitude desinteressada, isto é, que não busque a satisfação dos apetites, a realização de finalidades pragmáticas ou a conquista de benefícios pessoais.  No documentário Por que a beleza importa?, Roger Scruton apresenta um exemplo não convencional, mas potente, de tal atitude. Trata-se do momento em que nos deparamos com uma criança de colo, cativante por sua simples presença e não pelo que, eventualmente, seria capaz de nos proporcionar.

Uma situação semelhante ocorre em alguns de nossos encontros com os animais não humanos. Peço aqui licença para narrar uma experiência pessoal. Em fevereiro de 2018, tive a preciosa oportunidade de visitar a Austrália. Depois de participar de um simpósio filosófico, tomei um ônibus rumo à região de Blue Mountains. De repente, o motorista parou no acostamento da rodovia e pediu para nós, turistas, descermos, em silêncio. Aguardava-nos ali um jovem canguru, extremamente dócil, já acostumado a receber “agrados” de outros turistas. Ao ser surpreendido pelo exótico animal, vivi algo muito próximo de uma experiência estética. No lapso de alguns minutos, sua presença se tornou a única para minha visão, transportei-me para um lugar imune aos conflitos da existência cotidiana, fui tomado pela expressividade singular irradiada por seus olhos. Além disso, percebi que minha experiência não era individual, mas partilhada pelo grupo, outro ponto definidor – assim defende Kant – do juízo do belo.

Se os interesses próprios nos dividem e nos tornam concorrentes uns dos outros, o belo nos aproxima. E aquele canguru também, que nos permitiu vivenciar essa relação tão rara – e, por vezes, desacreditada – com o mundo, descrita como atitude desinteressada. Uma expressão que, hoje, carrega novas dificuldades, especialmente no tocante à nossa interação com o meio ambiente ameaçado. Contudo, se pensarmos no desinteresse como a ausência de um desejo de posse, imagino que cada um de nós, naquela excursão, vivenciou a original “epifania” sem a pretensão de levar o marsupial para casa…

Quanto a mim, como já mencionei, o olhar do canguru me tocou de maneira especial. A ele poderia se aplicar, em certa medida, a observação do psicanalista Massimo Recalcati acerca do olhar do “melhor amigo do homem”:

Por que o olhar de nosso cão traz consigo algo de tão comovente? Seus olhos não conhecem o abismo do fim e, por esse motivo, confiam sem qualquer reserva no olhar do tutor. (…) O olhar de um cão não conhece o subterfúgio, a mentira, a encenação. Sua profundidade está toda na superfície.[1]

Também o canguru confiava irrestritamente nos turistas que lhe traziam alimento. Se, de fato, ele e o cão ignoram sua finitude seria arriscado dizer, pois, como membros de outra espécie, somos incapazes de adentrar na perspectiva de um animal não humano. Ainda assim, interpretamos essa expressão cativante e encontramos nela algo da inocência. Esse termo bem traduz, como explica Vladimir Jankélévitch, a ausência de pose, o mistério de uma transparência incompreensível.[2] Reencontramos aqui a aproximação entre o animal e a criança, por mais controversa que seja a questão da inocência infantil.

De qualquer modo, o que nos parece inocente possui grande potencial de encanto, seja na arte, seja na vida. Isso não é difícil de se explicar, pois o encanto, na estética ocidental, confunde-se com a graça, termo que remete à gratuidade. E o que é a gratuidade senão o desinteresse? Logicamente, no bebê que busca o afago ou o leite materno, no animal que espera pelo alimento, há um interesse, mas não se trata do interesse dissimulado em afeto, arquitetado, que, quando descoberto, desfaz imediatamente o encanto.

Lembro-me aqui do poeta Manoel de Barros, sensível, como São Francisco de Assis, aos encantos das criaturas, sobretudo, daquelas mais insignificantes dentro de certa lógica (interessada e interesseira) de progresso. Os encantos de um sabiá não se medem[3], pois têm algo de impalpável e, além disso, os sistemas de medida costumam atender a propósitos utilitários. Não podemos nos apropriar do encanto, do mesmo modo que não reproduzimos a inocência.

A constelação formada pela combinação entre desinteresse, inocência, encanto e graça é vislumbrada em momentos privilegiados da experiência humana. A contemplação estética é uma delas, assim como a interação com a infância e com o mundo animal. Nestes tempos em que a adoção de animais domésticos se expande a ponto de os cães, em particular, serem introduzidos em ambientes anteriormente exclusivos aos humanos (restaurantes, hotéis, shopping centers), cabe colocar, ao fim desta reflexão motivada pelo Dia Nacional dos Animais, uma questão crucial. Até que ponto a atitude positivamente desinteressada – impossível de se reter, mas, quiçá, exercida “em horinhas de descuido” – ainda estaria presente em nossa relação não só com os animais que constituem nosso ecossistema, mas com nossos animais de estimação? Embora nos pareça que o desinteresse implique certa espontaneidade, poderíamos ao menos nos atentar para que o interesse próprio não seja a tônica de todas as nossas relações. Descobrimos, assim, que a estética tem muito a contribuir tanto para a apreciação da natureza quanto para a ética ambiental.


[1] RECALCATI, Massimo. La luce delle stelle morte: saggio su lutto e nostalgia. 6.ed. Milano: Giangiacomo Feltrinelli, 2023, p. 22 (tradução minha).

[2] JANKÉLÉVITCH, Vladimir. A música e o inefável. Tradução: Clovis Salgado Gontijo. São Paulo: Perspectiva, 2018, p. 136.

[3] BARROS, Manoel. Livro sobre nada. 3 ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1996, p. 53.

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