A encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, inspira Leão XIV ao abordar justiça social, dignidade e trabalho, propondo uma síntese entre fé e economia diante de novos desafios tecnológicos.
No dia 8 de maio de 2025, a fumaça branca na Capela Sistina anunciou ao mundo a eleição de um novo Papa, que adotou o nome de Leão XIV. Em audiência com os cardeais no dia 10 de maio, Robert Francis Prevost, agora sentado na Cátedra de Pedro, justificou a escolha de seu nome como Romano Pontífice, inspirado em Leão XIII.
Disse o Papa: “São várias as razões, mas a principal é que o Papa Leão XIII, com a histórica Encíclica Rerum Novarum (1891), abordou a questão social no contexto da primeira grande Revolução Industrial; e, hoje, a Igreja oferece a todos a riqueza de sua doutrina social para responder a outra Revolução Industrial e aos desenvolvimentos da inteligência artificial, que trazem novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho”.
A esse respeito, a Equipe Provincial de Comunicação conversou com Gustavo Andrade, economista, professor de Economia no Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec-BH) e leigo atuante na Paróquia Santo Antônio, na Savassi, em Belo Horizonte, sobre essa importante encíclica, que inaugura a Doutrina Social da Igreja.
1. Qual o contexto da Rerum Novarum?
A Rerum Novarum surge no contexto pós-Revolução Industrial (que teve grande impacto, inclusive na Itália, de onde o Papa certamente extraiu os principais exemplos e fontes para sua reflexão), bem como se apresenta como uma resposta ao socialismo, que ganhava cada vez mais força entre os cidadãos comuns (não tanto por convicção ideológica, mas claramente por necessidade).
Vale lembrar que a Itália havia sido unificada apenas trinta anos antes, o que certamente influenciou o formato do texto, com forte apelo à sequencialidade argumentativa adotada por Leão XIII. O mais interessante é que a encíclica consegue propor uma resposta cristã, como sistema econômico e social, tanto aos socialistas quanto aos capitalistas, agora cada vez mais antagonistas, após os efeitos da Revolução Industrial.
A Doutrina Social, inaugurada no texto, reafirma que a opção preferencial pelos pobres e a defesa da dignidade humana são parte do Evangelho; enquanto a luta de classes, oriunda do marxismo, deve ser refutada. Por fim, o texto parte de um contexto social relevante: o dinheiro ganha ainda mais importância, e seu uso correto torna-se cada vez mais necessário.
2. Quais as principais passagens dessa Encíclica?
A encíclica é estruturada em cinco grandes linhas argumentativas:
a) Uma linha histórica (utilizada como preâmbulo pelo Pontífice);
b) A refutação do socialismo, com ênfase na defesa do direito à propriedade privada, inclusive como um direito divino e necessário para a promoção integral do indivíduo na sociedade;
c) A inserção da Igreja nesse contexto, como detentora do verdadeiro processo de integração social. O capítulo mais importante, o de número 28, argumenta contra o julgamento separatista entre classes sociais. Essa linha argumentativa funciona como elo da encíclica, permitindo, quase como uma “concessão”, que se argumente fora do âmbito eclesial a partir de questões econômicas nos capítulos seguintes;
d) O papel do Estado como auxiliar nas grandes questões sociais. O parágrafo 47 é talvez o mais direto ao tratar do poder real do Estado: servir ao povo, de onde emana toda autoridade;
e) As argumentações protoeconômicas sobre o equilíbrio natural entre patrões e operários: salários, jornada de trabalho, geração de poupança, definição de impostos e o problema da escassez de recursos.
Os parágrafos 47 a 69 são particularmente relevantes por dar o tom da Doutrina Social, em diálogo direto com a economia, políticas públicas e, mais do que isso, com o eterno dilema econômico: eficiência versus equidade. A encíclica mensura, a seu modo, os custos de oportunidade envolvidos, reafirmando a centralidade da propriedade privada como fonte de motivação produtiva e econômica, inclusive por meio da concorrência, em equilíbrio com o conceito de “salário justo”, que possibilita a geração de riqueza para todos.
Um exemplo emblemático aparece no parágrafo 65, que traz o que pode ser considerado o primeiro “conselho financeiro” de um Papa:
“Se for avisado, seguirá o conselho que parece dar-lhe a própria natureza: aplicar-se-á a ser parcimonioso e agirá de forma que, com prudentes economias (ou seja, não gastar muito, e nem com coisas desnecessárias), vá juntando um pequeno pecúlio”.
3. Fora dos muros da Igreja, esse documento tem alguma relevância?
Fora do contexto eclesial, este talvez seja o mais importante documento “não econômico” em defesa de uma economia que reconhece a propriedade privada como força motriz do processo produtivo, com real capacidade de geração de bem-estar.
Vale refletir que o fluxo circular da renda, base da macroeconomia pós-Keynes, se ancora no acordo entre famílias e empresas: as primeiras fornecem os fatores de produção (mão de obra, capital, terra) e recebem em troca as rendas econômicas (salários, lucros, juros, aluguéis); as empresas, por sua vez, utilizam esses fatores para produzir bens, que serão consumidos pelas mesmas famílias.
O fluxo circular da renda apresenta dois grandes grupos: famílias e empresas. A economia inteira se baseia nisso. Uma coisa é a curva de demanda, que são as famílias, outra coisa é a curva de oferta. As famílias, por definição, são os detentores dos meios de produção, são as famílias que têm a mão de obra, é a família, que é detentora do capital, das terras, etc.
O que ocorre é uma troca desses fatores de produção para as empresas que, para usar a mão de obra, pagam salários, e outros benefícios. Mas a renda que as famílias recebem, que são salários volta para a economia porque elas gastam comprando os produtos das empresas. Esse é o fluxo circular da renda. A macroeconomia inteira é baseada nisso: mais demanda, mais produção, mais produção, mais renda, mais renda, mais demanda, mais demanda, mais produção, mais renda e por aí vai.
Essa dinâmica é descrita com clareza ao longo do texto da encíclica, culminando em um apelo nos parágrafos finais dirigido a patrões e operários, conclamando-os à ação conjunta em prol do bem comum. O processo de determinação salarial, portanto, é tema central não só na economia, mas também para a Igreja.
A Rerum Novarum, além de inaugurar a Doutrina Social da Igreja, implicitamente propõe algo novo: uma síntese entre economia e fé cristã, em que o fim monetário ideal é a justa distribuição de renda e a redução da pobreza, que são, afinal, os grandes temas da economia moderna.
A economia, nesse sentido, é um instrumento legítimo e necessário para os objetivos da Igreja Católica, e isso, longe de ser pecado, deve ser incentivado, como bem demonstra a relação proposta por Leão XIII.
4. Que atualidades podemos ver na Rerum Novarum em relação ao mundo do trabalho?
O mundo vem passando por transformações significativas, sobretudo com os avanços da inteligência artificial e seu potencial de elevar a produtividade econômica. Concordo que esse ganho é real, mas levanta-se um paradoxo: se a produtividade determina os salários, e se há impulso ao crescimento econômico, por que esse ganho não tem sido convertido em maior bem-estar social?
Como destacou o Papa Leão XIV ao justificar a escolha de seu nome, a “nova Revolução Industrial da IA” exige que a Doutrina Social da Igreja volte a ser refletida nas políticas públicas e econômicas, propondo, como já fez antes, uma alternativa de integração econômica que respeite a tradição e o Evangelho, sem concessões à luta ideológica.
Essa linha de pensamento é uma evolução da proposta do Papa Francisco, na “Economia de Francisco”, em que se reafirma a necessidade de repensar as relações entre patrões e operários, reconhecendo que uma economia bem gerida é, sim, geradora de bem-estar.
Não nos enganemos: é o crescimento econômico, antes de tudo, que permite o real aumento do bem-estar social. É preciso, sim, fazer o bolo crescer, mas também discutir corajosamente como dividi-lo com justiça, por meio de políticas públicas bem orientadas.
Não à toa, grande parte dos recentes vencedores do Prêmio Nobel de Economia tem se dedicado a estudar as causas do crescimento, da desigualdade e da má distribuição de renda, temas também presentes na Rerum Novarum.
Assim como a primeira Revolução Industrial provocou desarranjos institucionais e sociais, essa nova era também o fará. E, assim como em 1891 um Papa enfrentou as tensões de seu tempo, reafirmando a verdade de fé de que a opção pelos pobres é Evangelho, e não luta de classes, hoje precisamos de um novo Leão, que atualize com coragem os escritos de seu predecessor. Afinal, “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre”.