São Boaventura: uma teologia da contemplação

São Boaventura: uma teologia da contemplação

Em 14 de abril de 1482, o Papa Sisto IV presidiu a cerimônia de canonização de Boaventura, listando seu nome entre o santos da Igreja. Mais tarde em 1588, ele foi declarado Doutor da Igreja e recebeu o honroso título de “Doutor Seráfico”.

Frei Eduardo Vely de Mesquita, OFM

Na data de 15 de julho a Igreja celebra São Boaventura de Bagnoregio, Bispo e Doutor da Igreja. Sua Memória Litúrgica vem acompanhada de seu exemplo de vida, e em especial de sua teologia refinada pela contemplação do Sumo Bem. Foi Superior Geral da Ordem Franciscana e dedicou a sua vida para que os frades pudessem atualizar e vivenciar o “carisma” de seu fundador. Com este intuito escreveu legendas biográficas narrando a vida de São Francisco e cartas destinadas a todos os frades para impeli-los a abandonar os vícios humanos e a se espelharem na vida do Poverello de Assis. Escreveu também várias obras de teologia e mística, e seu mais famoso tratado teológico é o “Itinerário da mente para Deus”

BIOGRAFIA

A história narra que ele nasceu entre os anos de 1217 e 1218 na localidade de Bagnoregio, na região de Viterbo na Itália. Seu pai era médico e sua mãe era uma piedosa senhora. Ao ser batizado recebeu o nome de João, homônimo de seu pai. Apesar da profissão do pai, o pequeno João caiu gravemente enfermo e por isso sua mãe acorrera com a criança junto a São Francisco que traçou uma cruz na fronte do menino e exclamou “Oh! boa ventura!”.

Graças à intervenção de Francisco, a criança se recuperou, mas ficou profundamente marcada por aquele encontro. Foi durante a sua juventude que irrompeu o desejo de seguir a Jesus nas pegadas de São Francisco e já demonstrava sinais de uma sabedoria ímpar.  Conta-se que certa vez Frei Egídio perguntou-lhe como ele próprio, sem conhecimento teológico, poderia se salvar e obteve como resposta “Se Deus dá ao homem somente a graça de poder amá-Lo isso basta… Uma simples velhinha poderá amar a Deus mais que um professor de teologia”.

Com a idade de dezoito anos ele se dirige à cidade de Paris com o intuito de ingressar na universidade onde foi aluno do franciscano Alexandre de Hales (Proclamado Doctor Irrefragabilis pelo Papa Alexandre IV) e colega do dominicano Santo Tomás de Aquino, com quem manteve profunda interlocução e até posicionamento contrário. Mais tarde, recebeu da mesma universidade a titulação de Mestre de Teologia, dando-lhe a autoridade para lecionar.

Boaventura foi eleito Ministro Geral da Ordem Franciscana em 1257, com a idade de 36 anos. Ele não estava presente no Capítulo Geral que o elegeu, uma vez que as assembleias eram realizadas por representação, mas seu nome foi indicado pelo Ministro cessante: Frei João de Parma. Uma antigo cronista narra que a notícia de sua eleição alcançou Boaventura enquanto ele realizava alguns trabalhos domésticos no convento dos frades em Paris.

Como Ministro Geral da Ordem, Boaventura empreendeu um longa série de reformas internas como a elaboração das primeiras Constituições Gerais (Constituições de Narbona), combateu a acédia espiritual e o joaquinismo entre os frades. Fora da Ordem, batalhou pelo direito das Ordens Mendicantes (franciscanos e dominicanos) de estudarem nas universidades, e garantiu a existência destas mesmas ordens, ao provar seu valor e “utilidade”, assim como as ordens monásticas, as ordens canonicais e o clero secular.

Em novembro de 1256 foi nomeado bipo de York, mas por convicções pessoais não aceitou o encargo. Contudo, por ter uma relação de proximidade com o Papa Gregório X foi seu conselheiro pessoal e mais tarde recebeu a nomeação de cardeal-bispo da Diocese de Albano em 03 de junho de 1273.

Sua atuação no episcopado durou pouco tempo, pois veio a falecer em 1274, enquanto era realizado o II Concílio de Lyon, e recebeu das mãos do Papa Gregório X, os últimos sacramentos. Antes de sua morte repentina, Ele havia trabalhado na preparação do próprio concílio e chegou a participar das primeiras sessões conciliares. Sua atuação foi importante para apaziguar os ânimos entre o clero secular e as Ordens Mendicantes, além de contribuir para uma reunificação, mesmo que breve, entre as igrejas Latina e Greco-ortodoxa.

Em 14 de abril de 1482, o Papa Sisto IV presidiu a cerimônia de canonização de Boaventura, listando seu nome entre o santos da Igreja. Mais tarde em 1588, ele foi declarado Doutor da Igreja e recebeu o honroso título de “Doutor Seráfico”.

TEOLOGIA E MÍSTICA

A espiritualidade de São Boaventura parte de seu ardente amor para com Jesus Cristo, pois para ele, Deus é “único mestre verdadeiro” do qual brota todo conhecimento, que só pode ser compreendido pela contemplação racional e pela fé. Desta forma, o Doutor Seráfico nos ensina que fé e razão são complementares, pois para ele a fé precisa ser compreendida e a razão precisa ser elevada pela espiritualidade. Por isso escreve: “Não basta a leitura sem a devoção, a especulação sem o sentimento religioso, a pesquisa sem o maravilhar-se; não basta a circunspecção sem o júbilo, o trabalho sem a piedade, a ciência sem a caridade, a inteligência sem a humildade, o estudo sem a graça divina”.

Para São Boaventura Deus é o criador de todas as coisas existentes e por isso mesmo é o próprio Deus quem garante a ordem e o princípio universal. Mas ao criar o universo, Deus deixou impresso nele seus vestígios como uma assinatura na obra de arte. E todos nós podemos enxergar os vestígios de Deus em sua criação, pois Ele capacitou o ser humano de um corpo capaz de sentir e refletir sobre a natureza transcendental e espiritual que é tocada pela fé. Por isso o homem só chega ao conhecimento de Deus através da contemplação dos vestígios divinos na criação por meio dos cinco sentidos corporais: visão, audição, olfato, tato e paladar.

Para o Santo franciscano, isso só é possível porque Deus criou o homem em uma unidade perfeita de corpo e alma. O Criador gera uma alma especifica para um corpo especifico e vice-versa, pois o corpo permite à alma aprender e sentir, e a alma permite o corpo raciocinar e se organizar. Um foi criado para o outro de forma unitiva e perfeita.

Dessa forma, filosofia e teologia ganham um sentido prático para São Boaventura, pois permite ao homem se aproximar e amar mais Deus, na medida que se aproxima e ama mais as criaturas de Deus: buscar a Deus na sua Criação!

UM ITINERÁRIO PARA SE CHEGAR ATÉ DEUS

Um dos textos mais famosos de São Boaventura é o “Itinerário da mente para Deus”. Nesta ele propõe um caminho espiritual de sete degraus para se chegar à contemplação perfeita de Deus. Por isso não é de se estranhar que o tema da sensorialidade e da relação corpo, alma e contemplação estejam presentes do início ao fim.

O primeiro passo da jornada espiritual é purificar os olhos da alma, permitindo se enxergar a luz da verdade divina impressa na beleza da criação. Por tanto, o universo pode ser compreendido através dos sentidos corporais e revela a onipotência de quem criou tudo em perfeita ordem e harmonia. Todavia é a alma quem irá julgar como bom ou mal aquilo que os sentidos percebem. E para isso, a alma conta com três potências: Memória, Inteligência e Vontade.

A atividade da Memória consiste em reter e representar realidades. Retém as coisas passadas com lembranças, as presentes com a visão perceptiva e as futuras com previsão. Por sua vez, a atividade da inteligência consiste em compreender os fatos e suas ligações. Já a vontade é a capacidade de julgar os fatos e saber fazer as escolhas certas, além de desejar estar em perfeita harmonia com o criador. Assim, em todos os desejos o ser humano é atraído para Deus ou para aquilo que se assemelha a Ele (beleza, bem, virtude), a não ser que o humano se deixe atrair pela ilusão.

Por isso se deve buscar a Deus com toda as forças de sua vontade, pois à alma humana pode ficar distraída pelas preocupações da vida e não conseguir contemplar a Deus. A alma não entra em si mesma pela memória, não se recolhe em si pela inteligência e não volta a si mesma pela doçura da inteligência, mas é movida pela força do desejo.

Contudo, Boaventura aponta que o ser humano conta com um mediador: Jesus Cristo. É Ele quem atua em nós e nos ajuda a chegar à contemplação, por meio da fé, da esperança e da caridade, pois as virtudes teologais purificam, iluminam e aperfeiçoam a nossa alma.

Para o Doutor Seráfico, o ser humano pode chegar à contemplação de Deus através de seus vestígios na natureza, mas ele também pode chegar ao conhecimento de Deus através da contemplação filosófica e do estudo da Sagrada Escritura. Pois para Boaventura a filosofia tem por finalidade aperfeiçoar o ser humano, além de liberta-lo da ignorância. Da mesma forma o estudo da Sagrada Escritura presta-nos um precioso auxilio, pois aponta para nós o caminho da salvação que foi aberto por Jesus. Através da Sagrada Escritura a Graça divina age em nós e abre-nos as portas do paraíso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao olharmos para São Boaventura, nos deparamos com um gigante de seu tempo. Primeiro porque era um exímio teólogo e por isso mesmo foi consultor de papas e intelectuais. Soube responder na medida certa às demandas de Seu tempo e às necessidades dos cargos que desempenhou. Não é sem razão que a Igreja lhe atribui o título de doutor.

Como Frade Menor demonstrou ser um dos mais fervorosos filhos de São Francisco. Homem de grande pobreza, se recusava andar a cavalo em obediência a Regra do Seráfico Pai. Não mediu esforços para admoestar e corrigir seus irmãos garantindo que a Ordem Franciscana sobrevivesse em meio ao mar bravio. Exatamente por isso muitos estudiosos lhe atribuem o título de segundo fundador da Ordem.

Mas com toda certeza a característica mais marcante de São Boaventura é a sua espiritualidade expressa em seus escritos. É verdade que seus textos são complexos e rebuscados pelo estilo e linguagem medieval. Contudo são permeados de mística, poesia e beleza. Foi justamente esta força espiritual que o torna um referencial que atravessa séculos e continua a nos ensinar os caminhos de Jesus de Nazaré e Francisco de Assis.

Referencias Biográficas:

  1. BOAVENTURA DE BAGNOREGIO. Escritos Filosóficos e Teológicos. Introdução, tradução e notas: Luís Alberto De Boni e de Jerônimo Jerkovick. Porto Alegre: EDIPUCRS; USF, 1999. (Coleção Pensamento Franciscano, v. 2).
  2. DE BONI, Luis Alberto. Boaventura: filósofo, teólogo e místico. Porto Alegre: Fi; UPorto, 2016.
  3. IRIARTE, Lázaro. História Franciscana. Tradução: Adelar Rigo e de Marcelino Carlos Dezer. Petrópolis: Vozes; CEFEPAL, 1985.
  4. MERINO, José Antonio; MARTÍNEZ, Fresneda (Org.). Manual de teologia franciscana. Petrópolis: Vozes, 2005.
  5. SÃO BOAVENTURA. Obras Escolhidas. Tradução: Luís A. De Boni e de Fr. Saturnino Schneider. Porto Alegre: EST; Sulina; UCS, 1983.

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