Nos últimos dias de vida, São Francisco escreveu um Testamento. E ali ele faz uma retrospectiva de sua vida a partir do momento de sua conversão.
Frei Celso Márcio Teixeira ofm.
Neste ano de 2023 se comemora o Oitavo Centenário da confirmação da Regra Franciscana com bula. Aprovada oralmente em 1209, circunstâncias históricas exigiram que a Ordem Franciscana pedisse à Santa Sé uma bula que a confirmasse.
No entanto, é muito comum ouvir que São Francisco não queria uma regra, mas simplesmente que seu propósito era viver o Evangelho. Num primeiro momento, tal afirmação soa grandiosa, revolucionária. Mas contém dois elementos que não condizem com o pensamento de São Francisco, colocando primeiro a espiritualidade de Francisco em um genérico “viver o Evangelho” e em segundo lugar introduzindo sorrateiramente uma dicotomia alheia ao modo de pensar de Francisco. Trata-se, portanto, de uma afirmação enganadora, capciosa. Nesse caso, nada melhor do que tomar as próprias palavras de São Francisco para responder à pergunta se ele queria ou não uma regra.
Nos últimos dias de vida, São Francisco escreveu um Testamento. E ali ele faz uma retrospectiva de sua vida a partir do momento de sua conversão. Fala de seu encontro com os leprosos, afirma que decidiu “deixar o mundo”, expressão corrente para indicar a opção pela vida religiosa. Em seguida aborda as origens da Ordem com a acolhida dos primeiros: “Depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que eu devia fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do santo Evangelho, e eu o fiz escrever com poucas palavras e de maneira simples, e o senhor Papa mo confirmou” (Test 14-15).
Nessa frase de Francisco, destacam-se três pensamentos que se imbricam:
1 – A revelação ou inspiração do Senhor que ele vivesse segundo a forma do santo Evangelho. Ele atribui a inspiração unicamente ao Senhor. “Ninguém me mostrou, mas o Senhor mesmo me revelou”.
2 – A afirmação inequívoca de sua autoria da regra: “Eu o fiz escrever com poucas palavras e de maneira simples”.
3 – A confirmação por parte da Santa Sé na pessoa do papa: “E o senhor Papa mo confirmou”.
Se o propósito de Francisco fosse um genérico viver o Evangelho, ele não precisaria escrever uma regra nem pedir aprovação do papa.
Pode-se argumentar que a regra teria sido uma imposição da Santa Sé. As próprias palavras de Francisco, porém, responderiam a essa objeção: “ninguém me mostrou o que eu deveria fazer”. Portanto, Francisco assume para si toda a iniciativa da redação da regra.
Isto é confirmado também pelos seus hagiógrafos. Tomás de Celano, primeiro a escrever a vida de São Francisco, é também o primeiro a confirmar que a autoria da regra foi iniciativa de Francisco: “Vendo o bem-aventurado Francisco que o Senhor Deus a cada dia aumentava o seu número, escreveu para si e para seus irmãos presentes e futuros, de maneira simples e com poucas palavras, uma forma e regra de vida, utilizando principalmente palavras do santo Evangelho, a cuja perfeição unicamente aspirava.Por conseguinte, chegou a Roma com todos os ditos irmãos, desejando muito que lhe fosse confirmado pelo senhor Papa Inocêncio III o que ele escrevera” (1Cel 32, 1.3). Outros hagiógrafos confirmam as palavras do primeiro (cf. Jul 21, 1.3; LTC 51, 7.9; LM III, 8, 1-2; LL 1, 10).
Igualmente, todos os grandes estudiosos da história e da espiritualidade franciscana são concordes na afirmação de que São Francisco escreveu a regra, se dirigiu a Roma para pedir a aprovação papal, e o papa a aprovou oralmente em 1209 e a confirmou com bula em 1223.
Não subsiste, portanto, a afirmação de que Francisco não queria uma regra. Mais ainda: ele não considerava a regra como oposição ao Evangelho. O valor dela está fundado exatamente no Evangelho. Importante é ouvir a opinião de quem conviveu com ele: “Zelava ardorosamente pela profissão comum e pela regra e dotou-a com bênção especial aos que zelassem por ela. Pois dizia aos seus que ela é o livro da vida, a esperança da salvação, a medula do Evangelho, a via da perfeição, a chave do paraíso, o pacto de eterna aliança (2Cel 208, 1-2).