É um momento de fazermos memória, de olhar para nossa história e levantar nossas bandeiras.
Frei Renieverton Telles de Oliveira, ofm
Não é uma semana de comemoração. É um momento de fazermos memória, de olhar para nossa história e levantar nossas bandeiras. A data de 20 de novembro foi instituída oficialmente pela Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. Essa data faz referência à morte de Zumbi dos Palmares – líder do movimento negro que lutou pelo fim da escravidão.
Quando refletimos sobre a relação étnico-racial, precisamos entender que impera no Brasil uma normalidade na forma subalternizada como as pessoas negras ocupam lugares na sociedade. Assim, ver “pessoas ditas de cor” em lugares sociais inferiores é percebido como algo dentro da ordem das coisas, seja pedindo esmola na rua, limpando espaços públicos e privados ou residindo em lugares sem o mínimo de infraestrutura e dignidade humana. Isto se deve a uma ideologia arraigada pelos séculos de escravidão que o país viveu a maior parte de sua História. Características de uma sociedade escravocrata são muito mais comuns em nosso cotidiano do que se supõe, elas se manifestam e se reproduzem no discurso dominante, na mídia, nos espaços de poder, nas igrejas e nos comportamentos, ou seja, em todas as esferas da vida social, daí seu caráter estrutural e sistêmico.
É preciso reconhecer e afirmar que a escravidão no Brasil não se constituiu apenas num rentabilíssimo negócio, ela imprimiu marcas profundas na sociedade brasileira, possíveis de serem vistas até os dias de hoje. Moldou ações e atitudes, estabeleceu discrepâncias socioeconômicas, fez do tom de pele e dos traços fisionômicos um modo de diferenciação essencial e ordenou comportamentos de autoridade, mando/obediência e subserviência, num sistema hierárquico bastante visível.
A abolição em 1888 não foi uma ação benevolente do Império, embora a imagem da princesa Isabel tenha permanecido no imaginário popular por décadas como “a redentora dos escravizados” – reflexo sobretudo da forma errônea como a escola nos ensinou a história.
A maneira como a abolição foi apresentada oficialmente – como um prêmio e não como uma conquista – levou a uma percepção equivocada de todo esse processo, marcado pelo envolvimento decisivo dos próprios escravizados na luta. Dandara, Luiz Gama, Anastácia, André Rebouças, Tereza de Benguela, José do Patrocínio e tantos outros agentes que combateram o regime escravocrata foram colocadas em papéis secundários ou silenciados pelos registros historiográficos posteriores. Processo de silenciamento e apagamento que conhecemos bem.
A dita “libertação” do povo negro não apagou os mais de três séculos de resistência dos escravizados, representada por insurreições, revoltas, aquilombamento e ações que desafiaram o sistema.
É preciso admitir e reafirmar que o regime de escravidão brasileiro foi extremamente cruel e violento. Os negros escravizados eram submetidos a toda uma sorte de castigos, suplícios e torturas, seus corpos ficavam deformados após sessões de chibatadas. Suas peles eram expostas ao ferro em brasa.
É preciso admitir e reafirmar que vivemos em uma igreja racista, que finge não ver o pecado do racismo. Que invisibiliza pessoas que trabalham voluntariamente em nossos movimentos e pastorais. O racismo religioso está mais próximo de nós do que imaginamos. Ele é perverso, é cruel e é sutil.
É preciso admitir e reafirmar o rosto negro de Jesus, interpretado erroneamente desde as imagens mais antigas de Jesus encontradas nas catacumbas e lugares cúlticos dos séculos III e IV e por isso, foram pautas de discussão nos Concílios de Hiera e Nicéia. Daí as pinturas de Jesus Cristo passam a ter traços mais visíveis através dos pintores pagãos, que por sua vez, deram a Jesus uma fisionomia dos deuses também pagãos, como por exemplo Orfeu.
Ora, Jesus tinha uma aparência mais próxima de um deus grego do que de um homem que vivera sob um sol forte do Oriente Antigo. Jesus tinha nariz alongado e fino, boca pequena, cabelos compridos, olhos azuis, barba ruiva e sobrancelhas pretas – o questionamento que se faz é: como a Sagrada Família poderia se esconder no Egito tendo características europeias? Lembremos que os egípcios são africanos. Lembremos, ou para alguns essa seja uma novidade, o Egito é um país africano.
Jesus foi um homem judeu do seu tempo e espaço, vivendo numa região de sol forte e desértica, Ele não foi atemporal ou um ser divinizado fora da realidade. Jesus foi um homem terreno, “histórico, humano e, portanto, um ser imanente, por isso mesmo vinculado (e de forma inseparável) ao que é próprio à nossa condição terrena, mortal e humana”.
É preciso admitir e reafirmar que a cada 12 minutos uma pessoa morre em nosso país pelo simples fato de ser preta. É preciso combater a necropolítica – ações sociais que determinam quais corpos podem viver e quais devem ser exterminados.
É preciso admitir e reafirmar a importância de uma Educação Antirracista, que valorize os nossos, a nossa história preta, a nossa arte preta, a nossa música preta, a nossa ancestralidade, a nossa espiritualidade, o nosso saber que é emancipatório, o nosso corpo preto, o nosso cabelo crespo e a nossa existência.
É preciso admitir, reafirmar e denunciar que a lei 10.639/2003, prevista no Plano Nacional de Educação, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro Brasileira e Africana nas escolas não está sendo executada, e por isso somos omissos e continuamos perpertuando o selenciamento.
É preciso desnaturalizar o racismo. Práticas racistas em qualquer ambiente deve ser tratada com seriedade e com denúncia. Racismo é crime, previsto na lei 14.532/2023. A mesma reflexão se aplica ao ambiente eclesial: se falamos de conversão e construção do Reino de Deus, devemos também estar atentos ao pecado do racismo. “Amarás teu próximo como a ti mesmo, fazeis bem; se, todavia, se fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado”. Está escrito no livro de Tiago, capítulo 2, versículo de 8 a 9. Também em Atos dos apóstolos, capítulo 10, versículo 34 podemos ler: “Deus não faz acepção de pessoas”. Por que nós então fazemos? Desnaturalizar o racismo é fazer uma leitura racializada da Bíblia. Denunciar o racismo é uma ação profética. O racismo jamais deve ser naturalizado.
É preciso admitir e reafirmar que nossa linguagem reflete um longo e perverso legado de escravidão, e, por isso, nosso vocabulário também se tornou um lugar de marginalização da população preta.
Algumas palavras e expressões são reproduzidas sem que as pessoas tenham o conhecimento histórico, o que evidencia o não cumprimento da lei citada anteriormente – o fato desses termos ainda serem usados mostra o quanto o problema segue enraizado nos costumes da sociedade.
Evite usar expressões: “a coisa tá preta”, “inveja branca”, “nasceu com um pé na cozinha”, “amanhã é dia de branco”, “serviço de preto”, “cor do pecado”, “cabelo ruim”, “preto de alma branca”, “mercado negro”, “ovelha negra”, “criado-mudo”, “não sou tuas negas”, “feito nas coxas”, “samba de crioulo doido”, “denegrir”, “mulata” e tantas outras.
Nosso vocabulário e nossa forma de entender a sociedade foram pautadas na subalternização de pessoas pretas, por isso é preciso repensar nossa estrutura social e eclesial.
Inclua no material de estudos personagens negros, princesas e príncipes negros, filósofos negros, artistas negros, pesquise sobre as questões étnico-raciais.
Pesquise sobre nosso vocabulário e o quanto ele perpetua uma relação de subalternidade de pessoas pretas, não espere que apenas pessoas pretas possam promover uma Educação Antirracista.
Por fim, é preciso reverenciar todos e todas que vieram antes de nós, que abriram esses caminhos, que lutaram para que possamos continuar reexistindo.