“Das feridas a vida nova”, nas chagas de Francisco, as chagas de Cristo, nas dores de Francisco, as dores de Cristo, que são as dores do mundo e da humanidade inteira, que são abraçadas pelo próprio Deus, em um ato de amor, para nos dar a plenitude de uma vida que não acaba jamais.
Frei Matheus Sanches, OFM
Cristo sempre teve um papel central na vida de São Francisco de Assis, e sua encarnação, morte, paixão e ressurreição fez parte de sua vida desde o início de seu processo de conversão. O Cristo pobre, humilde e crucificado, o Cristo do presépio, da Eucaristia e da Cruz, um Cristo feito homem por amor de nós, que Francisco quis ver nos irmãos, escutar na palavra, comungar no pão sagrado, sentir no corpo e unindo-se à Ele, identificar-se totalmente àquele amor capaz de criar, salvar, plenificar e unir todas as coisas.
Completando essa experiência com o Cristo, em 1224 ocorre o evento que coroa a vida e a missão do Pobrezinho de Assis. Enquanto ele rezava a quaresma de São Miguel Arcanjo, no monte Alverne, ocorre um prodigioso sinal. Em visão maravilhosa, o Alverne se converte no Tabor e das nuvens celestes surge a admirável figura de um Serafim, que trazia em seu centro a imagem do Cristo Crucificado. Essa dulcíssima visão, do Senhor do céu e da terra, tão glorioso e tão sofredor, faz surgir em Francisco um misto de amor e de dor, alegria e tristeza, sofrimento e prazer.
Após nutrir com o Altíssimo, santa conversação, vai-se a imagem e ficam em Francisco os sinais. Aquele amor que ele já carregava na alma, irrompe na carne, e premiado pela Trindade, vê-se ele transfigurado no próprio Senhor. Surgem nas mãos, nos pés e no lado, os sinais da dolorosa e santa paixão de nosso Senhor Jesus Cristo, e o Seráfico é transfigurado no próprio Cristo, unido a Ele, a sua encarnação e paixão, identifica-se totalmente ao Senhor do céu e da terra, empunhando não em escudo, mas no próprio corpo, o brasão do Grande Rei, carregando de forma visível Aquele que quisera abraçar, sentido correr em suas veias, seiva de vida nova que escorre nas feridas, que inflama o coração, exala pelos poros e se faz presente em um luminoso olhar.
“Das feridas a vida nova”, nas chagas de Francisco, as chagas de Cristo, nas dores de Francisco, as dores de Cristo, que são as dores do mundo e da humanidade inteira, que são abraçadas pelo próprio Deus, em um ato de amor, para nos dar a plenitude de uma vida que não acaba jamais. 800 anos se passaram, e as chagas de Francisco, que são as chagas do próprio Jesus, dão sentido às nossas chagas e dessas feridas, surgem vida nova.
Nas chagas das mãos, a dor de um mundo preso no apego a coisas que passam, ao acúmulo, a posses, ideias e tudo quanto sugere uma falsa impressão de poder e controle. A dor de um mundo que escolhe pela indiferença, pela negligência, pela violência e destruição. Nestas feridas a cura, nas mãos abertas de Cristo, o desapego, o abandono, a confiança em um Deus que nos dá tudo, em um Pai que nos ama. Nos seus braços abertos, em um gesto de abraço acolhedor, a compreensão da pequenez, da vulnerabilidade, e o convite à acolhida, a escuta e o cuidado que restaura, constrói e transforma.
Nas chagas dos pés, a dor de um mundo que não sabe mais esperar, que corre, que produz, que se ocupa a todo momento, que consome, que devora, que vive na insatisfação. A dor de um mundo que prega estabilidade, que se esqueceu que a vida é caminho, que escolhe pelo egoísmo e a autorreferência e se esquece do encontro. Nessas feridas a cura, nos pés atados e feridos de Cristo, um Deus que nos espera a todo momento e nos ensina a esperar, um Deus que caminha com seu povo, que vem ao nosso encontro e que nos ensina a pôr-se a caminho, em serviço e missão, prontos para o encontro, para a escuta, para a acolhida, para o perdão.
Na chaga do lado, as feridas de um mundo que por muitas vezes não sabe amar, que não se afeta, que recusa a proximidade, que desaprende a cada dia como comunicar, que pensa sempre na retribuição e ignora a gratuidade, que nutre um amor baseado no egoísmo e nas relações frágeis e passageiras. Na chaga redentora, que faz jorrar sangue e água do peito de Cristo, encontramos um amor genuíno que cura, cria, lava, restaura e transforma. Amor completo, que é proximidade, que é afeto verdadeiro e que se deixa afetar, que é gratuito, que se doa a todo momento, que é um amor sempre lançado para fora de si, que se comunica e nos introduz em uma comunicação de amor, que é relação verdadeira, sem arestas, sem limites, sem preconceitos e definições. Um amor que quer somente amar, que por não caber dentro de si, transborda, cria e recria a todo momento, nos convidando a participar de sua obra criadora e geradora de vida.
As chagas do Senhor, não são somente sinais de dor, elas não se resumem ao sofrimento, mas pela ressurreição de Cristo, estas chagas são para nós sinais comunicadores de vida nova. Não mera poesia, discurso metafísico ou ideal, mas sim um sinal visível que nos implica diretamente e nos impele a responsabilidade total de cantar e fazer acontecer com a vida, os louvores de um Deus que ama. Em Cristo somos tocados por esse amor comunicativo, e assim participamos da unidade integral, universal e cosmológica, participantes da dança geradora de diálogo e vida no seio da gloriosa, una, santa e indivisa Trindade, comunidade de Amor que dá sentido e plenitude a todas as coisas.