A consciência de ser pecador, de buscar a misericórdia divina e de enveredar por outro caminho faz parte de um itinerário bastante conhecido na vivência cristã.
Frei Oton da Silva Araújo Júnior, ofm
A dimensão pessoal costuma ser a mais destacada quando se pensa em conversão. A consciência de ser pecador, de buscar a misericórdia divina e de enveredar por outro caminho faz parte de um itinerário bastante conhecido na vivência cristã. Porém, esta percepção do pecado pessoal não pode isolar o fiel de seu contexto, de sua participação nas estruturas da sociedade.
O ato de contrição nos recorda de nossas faltas mediante pensamentos, atos e omissões, relembrando-nos que nossa relação com Deus e os irmãos e irmãs é bem mais ampla do que parece.
Sem um itinerário de conversão, o próprio sacramento da penitência (ou da reconciliação como muitos preferem) cai na banalidade, num ping-pong entre pecado e perdão, sem romper com este círculo. No cristianismo, sabemos como foi dada mais ênfase no pecado do que o anúncio da graça e da misericórdia de Deus.
O relato da conversão se torna um gênero literário, narrado muitas vezes com acontecimentos mirabolantes, efeitos cinematográficos. Paul Ricoeur (+2005) já destacava que a identidade do indivíduo é sempre uma identidade narrativa, sobretudo quando esse indivíduo atravessa uma crise. Ora, a conversão é uma dessas crises. O convertido experimenta, pois, sempre a necessidade de expressar sua mudança a si mesmo, e frequentemente falar dela aos outros (THEVENOT, 2008, p. 230). Não é incomum que alguém que tenha passado por um processo de deixar um vício, por exemplo, goste de recontar sua experiência, ressaltando atitudes quase heroicas do “era quase impossível, mas eu venci”.
Nessas narrativas de conversão, é necessário separar o que é narrado diretamente pelo sujeito, de forma oral ou escrita, e o que vem elaborado por um biógrafo, tempos depois. “O oral, por causa de sua fragilidade, está aberto a manuseios contínuos que integram pouco a pouco as modificações hermenêuticas trazidas pelo devir pessoal; aliás, com o risco de uma reinterpretação do passado, que o remodela totalmente, sob o efeito dos desejos do presente. O escrito, ao contrário, por seu caráter congelado, representa uma resistência do passado a uma releitura que desdenharia o que foi uma das interpretações do indivíduo em um momento importante de sua história, mas, ao mesmo tempo, corre o risco de convidar o convertido a tomar o seu relato como uma realidade na qual ele deve se reconhecer totalmente, hoje” (THEVENOT, 2008, p. 231).
No caso de Francisco de Assis, cuja conversão é uma das mais conhecidas na história cristã, é possível ter acesso ao que ele passou, narrado em primeira pessoa. Em seu testamento, ele disse da amargura que sentia em simplesmente ver os leprosos, mas que depois, essa amargura se lhe converteu em doçura da alma e do corpo. Francisco não usa a palavra ‘conversão’, para dizer de sua mudança de vida prefere a expressão ‘iniciar uma vida de penitência’, o que naquele contexto dizia desse acolhimento radical do evangelho.
Ora, Francisco é um bom exemplo de como a conversão não é algo superficial na vida cristã. Ele, que era um rapaz honesto e caridoso, na loja do pai, rompeu com a casa paterna, foi morar entre os leprosos, em lugares ermos, trabalhando em atividades modestas e anunciando o evangelho de modo simples e itinerante.
Para a maioria das pessoas, não haverá essa ruptura radical entre um antes e um depois, mas serão feitos pequenos ajustes, porém sinceros, de rever e adequar a vida conforme o Evangelho e a pessoa de Jesus Cristo.
Papa Francisco nos recorda: “Querer estar perto de Cristo exige fazer-se próximo dos irmãos, porque nada é mais agradável ao Pai do que um sinal concreto de misericórdia. Por sua própria natureza, a misericórdia torna-se visível e palpável numa ação concreta e dinâmica. Uma vez que se experimentou a misericórdia em toda a sua verdade, nunca mais se volta atrás: cresce continuamente e transforma a vida. É, na verdade, uma nova criação que faz um coração novo, capaz de amar plenamente, e purifica os olhos para reconhecerem as necessidades mais ocultas. Como são verdadeiras as palavras com que a Igreja reza na Vigília Pascal, depois da leitura da narração da criação: ‘Senhor nosso Deus, que de modo admirável criastes o homem e de modo mais admirável o redimistes…’ (Misericordia et misera, n. 16).
Na encíclica Fratelli Tutti, que inspira a Campanha da Fraternidade de 2024, Francisco destaca a solidariedade, como virtude moral e comportamento social, a qual exige empenho por parte duma multiplicidade de sujeitos que detêm responsabilidades de caráter educativo e formativo (n.114).
Prossigamos nosso caminho quaresmal, abrindo nosso coração, aproximando nossa vida ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Referências
FRANCISCO, Fratelli Tutti, 2020.
FRANCISCO, Misericordia et misera, 2016.
THEVENOT, Xavier, “Conversão cristã e mudança psíquica”, in: Contar com Deus: estudos de teologia moral, Loyola, 2008, p.229-242.